Custeado com dinheiro público, acontecimento pode indício de que o Estado não tem cuidado com a própria história
Aquidauana (MS) – A intenção era boa: lembrar os 80 anos da entrada em ação da Força Expedicionária Brasileira – FEB, homenageando a primeira unidade a tomar parte do conflito na Itália, que foi o 9º Batalhão de Engenharia – 9º BE, em 06 de setembro de 1944 (com a montagem de um ponte em auxílio à tropas americanas). Porém, em Aquidauana/MS, sede da engenharia enviada para o conflito e hoje casa do 9º Batalhão de Engenharia de Combate, o que se viu foi uma encenação que não remetia muito ao legado dos soldados que partiram dali décadas antes, para lutar contra o nazifascismo.
Havia uniformes fora do regulamento do próprio exército, montagens fora de contexto e um muro que fazia chacota da equipe da Sociedade Esportiva Palmeiras, dizendo que o clube não tinha um campeonato mundial de futebol. Tal acontecimento é sério, uma vez que foi custeado com dinheiro público e que pode ser um indício de que o Estado não tem cuidado com a própria história.
Ato 1 – Vestimentas
Os uniformes escolhidos para representar os soldados da FEB, destoavam daqueles utilizados pelos brasileiros entre 1944 e 1945. Parte por conta de uma falha no Regulamento de Uniformes do Exército – RUE, que orienta errado as Organizações Militares – OMs e parte por descuido do próprio 9º Batalhão de Engenharia, que acrescentou outros problemas, como altura de colocação dos distintivos (patches), uniformes em tamanhos errados e/ou de cores imprecisas, capacetes de fibra com cores totalmente diferentes daqueles utilizados em combate e coturnos modernos no lugar de representações fiéis.
Abaixo como os uniformes da FEB deveriam ser, se tivessem sido feitos corretamente.
Abaixo, como foram apresentados em Aquidauana.
Só para se ter uma ideia em como o dinheiro público é investido pelo Exército em uniformes históricos, entre 2018 e agosto de 2021, foram gastos nada menos que R$ 6.822.163,56, tanto com peças corretas, quanto incorretas, da FEB e de outras unidades tradicionais.

Ato 2 – PVCs
Mesmo com a boa intenção de representar o navio USS General Mann, que levou o primeiro contingente brasileiro para o combate, o que era para ser uma homenagem ficou parecendo uma sátira, com forro de PVC e colagens dispostas em cima de um chassi de caminhão.

Da mesma maneira, um trem, que deveria representar o transporte que moveu muitos dos soldados de Aquidauana para o Rio de Janeiro, foi montado também de forma improvisada e com um erro de data. Foi pintado o símbolo da Rede Ferroviária Federal S/A – RFFSA, empresa que só existiria 12 anos depois do final da guerra, sendo criada em 1957.

Fora isso, os militares fizeram uma estrutura de materiais plásticos, para representar a Torre de Pisa.
Ato 3 – Postura

Havia ainda manequins de palha ou tecido, obstáculos distintos dos utilizados pelos alemães e mesmo soldados vestidos com uniformes que não lembravam em nada as tropas de Hitler, a não ser pelo capacete, e ainda ostentando armas aliadas.
Barracas, barricadas e mesmo mochilas, também eram de décadas mais recentes e em nada lembravam as do front italiano.

Ato 4 – O muro do Palmeiras sem mundial
- Brasilianer sind Schweine = Brasileiros são porcos
- Führer nationalhe(L)d = Führer herói nacional (houve ainda um erro de grafia, pois o termo seria HELD, ou “herói” em alemão)
- Juden nicht = judeus não!
- Deutschland ist groß = A Alemanha é difícil (que também poderia ser uma redução de Deutschland ist großartig, que significa: a Alemanha é fantástica, ótima ou em sentido informal/coloquial, a Alemanha é foda)

Além da escrita antissemita, outra frase que se destacou, em tradução literal, era uma que zombava do Palmeiras[1], afirmando que o time não possuía mundial de futebol, escrita com alemão ortograficamente questionável. “Palmen haben keine Welt [Palmeiras não tem mundial]”. Conforme a Fifa, entidade máxima do futebol, o Palmeiras teve o título de 1951 reconhecido em 2014, porém, na recente atualização da lista de campeões mundiais, divulgada no último mês de setembro, o nome do time não constava. Ou seja, a própria Fifa é ambígua se o time teve ou não um campeonato mundial reconhecido. O ponto é que a “brincadeira” ou “zoação”, nada tinha ligação com FEB ou o evento da guerra.

Toda encenação foi feita com dinheiro público. Mesmo questionado sobre o assunto, o 9o Batalhão de Engenharia de Combate não informou o valor. No dia, pelo menos dois generais acompanharam o evento: o Chefe do Departamento de Engenharia e Construção, General de Exército Anisio David de Oliveira Junior e o Comandante Militar do Oeste, General de Exército Luiz Fernando Estorilho Baganha.
Porém, conforme se pode interpretar nas palavras do general Anisio, mesmo com equívocos, a encenação o agradou. “Hoje o Comando Militar do Oeste apresentou uma aula ao vivo. Trouxe para nossas crianças, para nossa população, vivendo, nos emocionando, a epopeia dos nossos Pracinhas na Segunda Guerra Mundial”, declarou ao jornal O Pantaneiro.
Nota oficial do Comando Militar do Oeste:
“A apresentação ocorreu durante as comemorações dos 80 anos da Força Expedicionária Brasileira (FEB), promovida pelo Comando do Exército, através do DECEx e do DEC, e executada pelo batalhão com o apoio dessas diretorias. O roteiro da encenação baseou-se no relato do Marechal Machado Lopes, comandante do 9º Batalhão de Engenharia de Combate (9º BE Cmb) durante a campanha da FEB. A ambientação foi cuidadosamente elaborada para proporcionar uma maior imersão do público no contexto histórico. A dramatização utilizou elementos visuais para enriquecer a compreensão dos eventos retratados.
Os uniformes dos figurantes foram confeccionados especialmente para o evento, enquanto alguns fazem parte do acervo do 9º BE Cmb. Buscou-se uma representação que capturasse a essência do tema, mesmo com algumas variações, enriquecendo a experiência visual e narrativa da apresentação. O tempo dedicado à confecção dos materiais foi de três meses. Durante esse período, os militares envolvidos na preparação dos elementos visuais também se dedicaram a outras missões, não estando integralmente focados na montagem.
O evento do dia 27 de setembro contou com a presença de autoridades civis e militares de diversas localidades do Mato Grosso do Sul, além de familiares de pracinhas, membros de associações dedicadas à preservação da memória da FEB e alunos da rede pública. Devido à repercussão positiva, uma nova apresentação será realizada em 4 de outubro, como parte das comemorações do aniversário do 9º BE Cmb, e estará aberta ao público em geral. Muitos alunos de escolas da cidade já confirmaram presença.
A escolha da música “Trem”, de Almir Sater, foi inspirada na beleza poética e na conexão que a canção estabelece com a natureza, a cultura e a identidade do Brasil. A obra do artista é admirada por sua profundidade e sua representação da rica tradição brasileira, especialmente da região Centro-Oeste. O envolvimento com sua música valoriza não apenas a arte, mas também as raízes que nos unem.
[…]
Em conclusão, a apresentação em homenagem aos 80 anos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) foi uma poderosa manifestação de respeito e gratidão aos heróis do nosso Exército, destacando a importância de preservar a memória de suas conquistas. A integração com a sociedade, refletida na participação de autoridades, familiares de pracinhas e alunos, fortaleceu os laços entre a instituição militar e a comunidade, promovendo um sentimento de unidade e valorização das raízes nacionais. Este evento não apenas celebrou o legado dos que lutaram pela liberdade, mas também reafirmou o compromisso de educar as novas gerações sobre a história do Brasil, assegurando que o espírito de bravura e sacrifício continue a inspirar futuras ações”.
Sobre quanto o Exército investiu no evento, não foi informado e sobre as frases do muro, a assessoria informou que se pronunciará na segunda-feira (07/10/2024). O espaço segue aberto para a resposta das autoridades e atualização do conteúdo. Um pedido via Lei de Acesso à Informação – LAI, também foi protocolado, para saber quanto em verbas públicas foram utilizadas.
Ofuscado
Tão importante quanto o evento, foi o lançamento do livro “Diário de Guerra do Coronel Machado Lopes”, que foi o comandante do Batalhão de Engenharia durante a Segunda Guerra Mundial. Porém, devido à encenação, a obra ficou em segundo plano, ofuscada. Conforme nota do Comando Militar do Oeste, o ““O Diário de Guerra do Marechal Machado Lopes” foi especialmente editado para o evento em Aquidauana e está sendo digitalizado, com previsão de disponibilização na página do Departamento de Engenharia e Construção”.
A entrada em ação que se tentou representar
“A primeira tropa brasileira a cumprir missão de combate, em território italiano, foi a 1ª Cia do 9º BE Comb. (9º Batalhão de Engenharia), comandada pelo Capitão Floriano Möller. Esta Companhia, desde o dia 6 de setembro de 1944, vinha operando ativa e eficientemente numa das pontes do rio Arno, às ordens do IV Corpo de Exército. (Coronel Machado Lopes, livro 9º Batalhão de Engenharia de Combate na Campanha da Itália, p.41)
Especialista analisa o evento
Outra razão, segundo o especialista, é que reencenações ou dramatizações servem também para a manutenção do espírito de corpo de uma organização militar, rememorando o passa dela. “Memória e história são elementos importantes no espírito de corpo de uma instituição. Na formação, na reformulação, na reafirmação de uma identidade institucional. Então, você precisa conferir legitimidade a esse passado, a partir de pesquisa séria, a partir de um cuidado com os materiais que serão mobilizados para essa reencenação”, comentou Wilson.
Wilson lembrou ainda, que Exército possui recursos humanos e materiais para que boas reencenações sejam produzidas, dando como exemplo os museus militares, nas próprias guarnições, que podem ser utilizados para reencenar ou para pesquisar. “Nós temos no Exército Brasileiro, no seu quadro de carreira, graduados e oficiais que são egressos dos cursos de História, que possuem pós-graduação em História e experiência em pesquisa, e que podem muito bem, serem mobilizados para produzir conteúdo e fazer uma curadoria dessas reencenações”, reflete o pesquisador, ressaltando que além dos militares, o país já possui há algum tempo, pessoal civil bastante qualificado para auxiliar quando acionados.
Eventos caricatos também são criticados por Wilson. “A a caricatura nunca é positiva, né? Ela acaba tornando uma visão distorcida do passado e a ideia de que [fazer] qualquer coisa está bom, e não está. Principalmente quando a gente fala de aspectos tão sensíveis como a história militar, a memória militar. […] A caricatura desrespeita o passado, principalmente a memória das pessoas que se envolveram com esse passado. Então, eu vejo de maneira muito negativa a caricatura, e gostaria muito que o Exército Brasileiro passasse a enxergar essas reencenações de efemérides militares de maneira mais séria. Porque não basta somente fazer algo, tem que fazer bem feito. Porque se for para fazer malfeito, então não se faça”, argumenta.
Do ponto de vista financeiro, também deve haver cuidado quanto à aquisição de materiais fidedignos. É o que defende, Wilson, que entende haver problemas com os atuais uniformes usados nas comemorações do Exército. “É um mau uso do dinheiro público. Fala-se tanto em corrupção, fala-se tanto em mau uso de dinheiro público, [aí] eu vou lá e utilizo uma verba pública, alta, para adquirir uniformes que, na verdade, não têm nada a ver com os uniformes que os expedicionários brasileiros utilizaram na campanha da Itália. E a gente pode pensar isso para outros casos, em que são produzidos por terceiros, supostos uniformes históricos, em que o custo não é barato, e que são uniformes completamente anacrônicos e, muitas vezes, caricatos mesmo, ridículos. […] E em um país que tem tantos problemas com o mau uso de verba pública, esse é um ponto de atenção”, acrescenta.
Quartel já tinha errado anteriormente
Em 2018, ao retratar a passagem do Exército Aliado pelo Chaco paraguaio, em 1868, durante a Guerra do Paraguai/Tríplice Aliaça, soldados do 9º Batalhão já tinham se apresentado com uniformes imperiais e paraguaios duvidosos, com cores e armas erradas, além de materiais de baixa qualidade. Veja abaixo as várias sugestões de uniformes brasileiros e paraguaios.
Agora, compare com o que foi apresentado em Aquidauana:
Cidadãos podem e devem denunciar
Nos casos de uniformes históricos que estejam equivocados quanto às características físicas, com qualidade inferior ou mesmo completamente errados, o Exército indica que os cidadãos devem denunciar pela “Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação (Fala.BR) ou, se preferirem, diretamente ao Comando Logístico por meio do endereço eletrônico ([email protected])”
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OBS: todas as fotos com logomarca de O Pantaneiro, são reproduções so site do mesmo nome, o maior daquela região do Mato Grosso do Sul, que pode ser acessado em https://www.opantaneiro.com.br/.
[1]A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, obrigou o Palestra Itália a mudar de nome. A nova denominação, Palmeiras, foi escolhida para homenagear o passado e simbolizar a força e a adaptação do clube. Não pegaria bem ter o nome do país inimigo, a Itália.
Jornalismo de Guerra – Edição: Montedo.com
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