Doutrina militar americana: quando a teoria encontra a prática (artigo)

 

Subtenente do Exército faz uma interessante análise sobre a doutrina militar dos EUA


Antonio Vagner Machado Pires*

Toda categoria profissional desenvolve e utiliza uma específica área de conhecimento. Na profissão das Armas, esta área de conhecimento é chamada de doutrina. A doutrina militar reúne um conjunto de princípios que guiam as ações militares para atingirem seus objetivos. Ainda, a doutrina militar estabelece uma linguagem comum utilizada em operações, com símbolos e termos que podem ser entendidos mesmo por militares de outras nações. Outro ponto destacado da doutrina militar é que esta pode ser entendida como um compêndio de documentos vivos, constantemente revisados e atualizados.
 
O Exército Americano divide suas publicações doutrinárias em três níveis (Department of the Army, 2019a):

  • Nível 1 – Army Doctrine Puplication (ADP): estas publicações trazem os princípios fundamentais que guiam as ações militares. Alguns exemplos são ADP 3-0 Operations e ADP 6-0 Mission Commnad. São consideradas publicações impositivas, devem ser utilizadas, mas requerem julgamento por parte dos líderes.
  • Nível 2 – Field Manual (FM): os manuais de campanha apresentam as táticas de emprego e organização das forças militares. Ainda, trazem procedimentos prescritivos, com detalhados passos para executar tarefas. São exemplos FM 3-0 Operations e FM 5-0 Planning and Orders Production.
  • Nível 3 – Army Techniques Publication (ATP): trazem maneiras não impositivas para cumprir uma tarefa, permitindo ajustamentos baseados nas circunstâncias apresentadas. São exemplos: o ATP 2-01.3 Intelligence Preparation of the Operational Environment e o ATP 5-0.1 Army Design Methodology.

Líderes militares devem conhecer e saber aplicar os fundamentos e princípios da doutrina, além de manterem-se atualizados com as constantes mudanças impostas pelo volátil ambiente operacional, exponencial avanço tecnológico e complexidade das relações culturais entre diferentes nações. Nos bancos escolares são ministradas as instruções necessárias para formar os futuros comandantes militares, em diferentes níveis, habilitando-os a interpretar a doutrina e fazer o seu melhor uso para atingir os objetivos militares. Aqueles responsáveis para conduzir essa tarefa, os instrutores, precisam ter um profundo conhecimento do tema, além de superar o desafio de manterem-se constantemente atualizados, na vanguarda do conhecimento doutrinário.

A função de instrutor militar é de extrema relevância em qualquer exército. Aqueles que desempenham importante função são, ou acabam tornando-se, especialistas em determinadas áreas da doutrina. Entretanto, ainda enfrentam o desafio de manterem-se a par das melhores práticas aplicadas na execução das operações militares, o que pode ajudar a aprimorar sua abordagem na sala de instrução, resultando em uma aproximação importante da teoria e prática. O Exército Americano, entendendo este desafio, criou programas de intercâmbio, possibilitando e incentivando a participação de instrutores em diferentes exercícios militares, a fim de aprimorarem-se em suas funções.

I Corps Pacific Exchange Program

O I Corps Pacific Exchange Program é uma iniciativa do Comando do Pacífico do Exército Americano que visa possibilitar a participação de instrutores, de diferentes instituições daquele exército, como observadores/pesquisadores em um dos seis grandes exercícios realizados anualmente por aquele grande comando (Bocanegra, 2024; Pargett, 2024). Estando na função de instrutor da Sergeants Major Academy (SGM-A), Fort Bliss – Texas, tive a oportunidade de inscrever-me no programa e ser selecionado para participar do Joint Pacific Multinational Readiness Center (JPMRC) 25-01, exercício realizado no período de 2 a 16 outubro do corrente ano, atividade de adestramento escalão divisão de exército e que contou com tropas de 9 diferentes países.

Durante o exercício, realizado no centro de treinamento localizado no Havaí, pude observar briefs de sincronização da 25ª Divisão de Exército, brief de análise pós-ação da 2ª LBCT (Brigada de Infantaria Leve), entrevistar militares que trabalhavam nos postos de comando, em diferentes escalões, comparando com o que ministro em sala de aula e como aquela doutrina é aplicada nas operações. Ainda, pude observar os ajustes/adaptações da doutrina, considerando as características da tropa empregada. Por exemplo, por ser uma brigada leve, a 2ª LBCT precisa ser ágil e estar sempre pronta a se deslocar, neste sentido, observei que o posto de comando daquela brigada operava com mais de 90% dos produtos de forma digital, evitando utilizar mapas físicos, tabelas e outras matérias que demandam tempo e espaço.

ADP 6-0 Mission Command – teoria e prática

Uma das instruções que ministro em sala, e pude observar o emprego no terreno, vem do manual ADP 6-0 Mission Command, uma doutrina relativamente nova, utilizada pelo Exército Americano a pouco mais de uma década. A ideia central desta doutrina é empoderar os subordinados para tomarem decisões em operações ou situações descentralizadas, seguindo a intenção do comandante (Department of the Army, 2019b). Mission Command pode ser utilizada em sua máxima eficácia se sete princípios forem desenvolvidos em uma equipe: competência, confiança mútua, entendimento compartilhado, intenção do comandante, ordens da missão, iniciativa disciplinada e aceitação de riscos. Sendo um manual de nível 1, como descrito anteriormente, é uma publicação impositiva, ou seja, deve ser empregada, mas como ressaltado, baseado no julgamento dos comandantes.

O que observei no Exercício JPMRC 25-01, relativo a Mission Command, foi o emprego desta doutrina entre militares mais experientes, por exemplo, o comandante de brigada ou de batalhão visivelmente empoderavam seus Adjuntos de Comando para tomarem decisões. Estes, também fortemente influenciados pela confiança mútua, empoderavam os seus Operations Sergeant Major (Sargento Maior de Operações). Todos os militares citados possuem mais de 20 anos de serviço e são considerados líderes seniores, fato que provavelmente facilitou a utilização da arte do comando, quando o comandante militar utiliza sua experiência para avaliar e entender a situação, explicar sua intenção e empoderar subordinados, assumindo a responsabilidade pelas consequências.

Por outro lado, a ciência do controle está relacionada com o microgerenciamento, onde o comandante emite uma ordem e garante seu cumprimento. Apesar da ciência do controle ser necessária em algumas situações, a doutrina americana destaca que a arte do comando, diretamente relacionada com Mission Command, deve prevalecer em todos os níveis, porém não observei esta aplicação na íntegra. Na medida que descia escalões e conversava com militares mais modernos, como capitães, tenentes e jovens sargentos, ficou evidente a prevalência da utilização da ciência do controle pelos comandantes, o que pode evidenciar o resultado da falha do desenvolvimento dos princípios de Mission Command, uma importante informação para trazer aos bancos escolares.

FM 5-0 Planning and Orders Production – teoria e prática

Outra oportunidade de observação no Exercício JPMRC 25-01 foi relacionada ao processo de planejamento militar ministrado na SGM-A, visto no capítulo 5 do Manual de Campanha FM 5-0, chamado Military Decision-Making Process (Estudo de Situação no Exército Brasileiro). Tal instrução normalmente gera dúvidas nos estudantes devido aos desafios de sincronizar as funções de combate em um ambiente operacional complexo. Em sala de instrução, o processo é estudado e conduzido passo a passo, por vezes dando uma errônea impressão da real aplicação na prática.

Durante visitação ao posto de comando de uma brigada e de um batalhão de infantaria, observei que alguns passos do processo são mesclados, por exemplo, o passo número 1 – Recebimento da Missão com o passo número 2 – Análise da Missão, assim como alguns subpassos são mesclados ou até mesmo suprimidos. Tal postura agiliza o processo e somente é possível devido à experiência dos planejadores. Explorar esta abordagem nas instruções em sala de aula certamente agregará na formação.

Conclusão
Sendo a doutrina entendida como um compêndio de documentos vivos, constantemente revisados e atualizados, os instrutores militares também devem estar constantemente atualizados e, não apenas na vanguarda do conhecimento doutrinário, mas também devem entender as boas práticas desenvolvidas diariamente nas operações e exercícios militares, assim como os desafios destas atividades. Sair da sala de instrução e ter uma conversa franca com os executores, no calor de uma operação ou exercício, enriquece sobremaneira a abordagem na sala de instrução.

Acredito que o EB poderia adotar prática semelhante, incentivando a participação de instrutores, de nossas diferentes escolas, como observadores/pesquisadores nas diversas operações realizadas em território nacional.

Referências

Bocanegra, J. (2024). America’s First Corps Launches Professional Writing Program. https://www.usarpac.army.mil/Our-Story/Our-News/Article-Display/Article/3772163/americas-first-corps-launches-professional-writing-program/

Department of the Army (2019a). Doctrine Primer (ADP 1-01). https://armypubs.army.mil/epubs/DR_pubs/DR_a/pdf/web/ARN18138_ADP%201-01%20FINAL%20WEB.pdf

Department of the Army (2019b). Mission Command: command and control of army forces (ADP 6-0)https://armypubs.army.mil/epubs/DR_pubs/DR_a/ARN34403-ADP_6-0-000-WEB-3.pdf

Pargett, M. (2024). Pacific Exchange Program: Developing Leaders to Meet Challenges across the IndoPacific. https://www.army.mil/article/274325/pacific_exchange_program_developing_leaders_to_meet_challenges_across_the_in

Subtenente Antonio Vagner Machado Pires
CURRÍCULO
– Cursos Militares: Curso de formação de Sargentos – Artilharia – 1999 – EsSA; Curso de Artilharia de Costa e Antiaérea – 2006 – EsACosAAe; Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – 2010 – EASA; Curso Sargeant Major – U.S. Army Sergeants Major Academy (USASMA) – Fort Bliss, Texas – Mai 2018/Jun 201…
9; Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais – 2020 – EsIE. – Cursos em instituições civis: Graduação em Física – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – 2013. – Atual função: instrutor na Academia de Sargentos Maiores do Exército Americano.

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