80 Anos – A HISTÓRIA DA CONQUISTA DE MONTE CASTELO

A HISTÓRIA DA CONQUISTA DE MONTE CASTELO
21 Fevereiro 1945

Joel Silveira
Fonte: Grande crônica da Segunda Guerra Mundial.
In: Seleções do Reader’s Digest, Rio de Janeiro, 1969, Editora Ypiranga, volume 3.

Cortesia Cel Caminha da AHIMTB/RS.

Nota DefesaNet

Joel Silveira, correspondente dos Diários Associados, assim se refere ao cotidiano dos pracinhas brasileiras na Itália: “Sofremos bastante lá nos Apeninos. Medo, frio-muito frio, desconforto e aquele constante odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra”. (SILVEIRA, Joel. “O Inverno da Guerra”.

Cobriu as ações da FEB na linguagem dos pracinhas, como eram chamados os soldados.

O Editor

A conquista de Monte Castelo inscreve-se entre os episódios mais notáveis da campanha da Força Expedicionária Brasileira na Itália. O feito dos nossos “pracinhas” é narrado nestas páginas pelo escritor e jornalista Joel Silveira (abaixo) que, na qualidade de correspondente de guerra, acompanhou de perto o desenrolar dos acontecimentos.

Na véspera do dia 21 de fevereiro de 1945 eu havia pedido um jipe ao Major Souza Júnior, encarregado dos correspondentes (de guerra), para ir a Nápoles esperar o 4º escalão de tropas brasileiras que chegaria a 23. O major, então, me perguntou: Você prefere esperar o escalão ou uma coisa melhor? A “coisa melhor” era a ofensiva brasileira do dia 21 sobre o Monte Castelo.

Pela manhã, cedo, no QG recuado, fomos avisados de que a nossa artilharia abrira cerrado fogo, naquela noite, contra posições inimigas nas montanhas que há três meses nos barravam o caminho.
Tomamos um café apressado, enchemos os bolsos de chocolate e chiclete, e soltamos nossas viaturas até o QG avançado. Os jipes necessários já esperavam os correspondentes, cada qual subiu no seu e pro-curou, na frente, o melhor lugar para uma observação total da luta. Creio que a sorte me protegeu, que meu jipe andou mais depressa, não sei: o certo é que tomei de assalto o PO avançado do General Cordeiro de Farias e lá me instalei por todo o dia. Eram 8 h da manhã quando o general me cedeu seu lugar diante da luneta binocular e me disse:

Começamos a atacar às 6 da manhã. As tropas em ofensiva constituem o 1º Regimento de Infantaria, o Sampaio. Os seus três batalhões avançam na seguinte ordem: o 1º, comandado pelo Major Olívio Gondim Uzeda, segue pela esquerda; o 2º, comandado pelo Major Sizeno Sarmento, vai pelo centro; o 3º, comandado pelo Tenente-Coronel Franklin Rodrigues de Morais, partirá da direita. Nossa intenção é envolver todo o morro e, em coordenação com a ofensiva americana que já conquistou Belvedere, arrancá-lo das mãos nazistas até o fim da tarde de hoje.

Vejo, através da luneta, os nossos pracinhas agachados lá na frente, grupos aqui e ali rastejando em direção ao cume de onde atiram, com suas curtas e sinistras gargalhadas, as terríveis “lurdinhas” alemãs. Agora mesmo um deles encostou-se num pedaço de muro destruído e aponta sua Thompson para qualquer lugar lá em cima. Os morteiros nazistas rebentam nas faldas do sul, mas nossa artilharia reinicia seu canhoneio sistemático e certeiro, como fizera toda a noite. Escuto os silvos das granadas sobre nós, vejo-as explodirem lá adiante, numa coroa de fumaça que cai sobre o Castelo como uma auréola de chumbo.

Uma de nossas baterias parece que perdeu a mira, e seis tiros caem muito aquém, quase num determinado setor brasileiro. O General Cordeiro dá ordens secas e rápidas, e durante alguns minutos seus ajudantes-de-ordens procuram, através dos cinco telefones de campanha e dos dois rádios, localizar o canhão amalucado. Finalmente o Capitão Durval de Alvarenga Souto Maior, comandante da 1ª Bateria do 1º Grupo, descobre que o canhão pertence à sua unidade. Há uma ordem rápida pelo rádio, e os tiros agora estão perfeitamente ajustados no eficiente conjunto de toda a artilharia.

À esquerda, sobre posições americanas além de Belvedere, cinco ou seis Thunderbolts descem em picada, rápidos como um peso despencado de cima, e metralham impiedosamente os nazistas em defensiva.
Quando cheguei ao Posto de Observação do General Cordeiro, duas ou três horas depois de iniciada a ofensiva, a situação era mais ou menos esta: os batalhões avançaram, com exceção do 2º, comandado pelo Major Sizeno, que partiria às 11h 35min de Gaggio Montano.

Os nazistas tentavam impedir a progressão dos brasileiros com um fogo concentrado de morteiros. Eu sabia que a conquista de Castelo só seria efetuada depois que os americanos, que partiram de Belvedere, houvessem se apoderado de Monte dela Torraccia, um pico que, atrás, dominava certa parte do morro sob o qual avançavam nossos homens.

O ataque americano, que começara na noite anterior, estava sendo efetuado por toda uma divisão especializada, a 10ª de Montanha, recentemente chegada a este setor. Naquele momento, 10 da manhã, os norte-americanos se encontravam em determinado ponto além de Menzacona, meio caminho entre Belve-dere e Torraccia. Menzacona ficara em poder de um dos batalhões brasileiros, com o qual os americanos haviam-se encontrado pela manhã.

Então a ofensiva combinada, no lado direito, tomou o seguinte aspecto: os brasileiros deixaram alguns homens em Menzacona e seguiram em direção a Castelo, pela esquerda, comandados pelo Major Uzeda. Os americanos foram à frente, em direção a Torraccia. Daí por diante, os acontecimentos se sucederam nesta ordem, conforme me dizem os quase indecifráveis apontamentos que fui tomando, às carreiras, entre uma olhada de binóculo e uma informação dos rádios:

Ao meio-dia o General Mark Clark, comandante da frente italiana, o General Lucien Truscott, comandante do Quinto Exército, o General Willis Crittenberger e o comandante-chefe das Forças Aéreas do Mediterrâneo estiveram em visita ao General Mascarenhas de Moraes, no seu Posto de Observação precisamente três quilômetros à direita do PO do General Cordeiro.

Às 12h 30min, o Major Uzeda, que avança pela esquerda, pede proteção da artilharia para que possa alcançar um ponto na sua frente, e o General Cordeiro ordena as baterias: “Cinco rajadas de morteiros sobre 813”.

Às 13h 55min, um dos batalhões avisa que foram avistados reforços alemães que começam a chegar a Castelo. Ao lado direito, o Tenente-Coronel Franklin está detido com o seu terceiro batalhão. O Major Uzeda previne pelo rádio que tentará envolver Castelo pela esquerda.

Às 14h 20min, o Major Uzeda avisa que vai atacar 920, penúltimo ponto antes da crista de Castelo. Pede mais tiros ao General Cordeiro, que transmite, através de seus auxiliares (o Coronel Miranda Correia e o Capitão Souto Maior são dois deles), ordens às baterias. O Major Uzeda se encontra precisamente a cinco quilômetros do PO, tendo realizado já uma progressão de mais de dois quilômetros. O diálogo entre Alma I, Alma II e Alma III (observadores junto aos batalhões) e Lata I, Lata II e Lata III (oficiais de ligação em plena luta) se repete de minuto a minuto.

Às 15 horas, o Major Uzeda se encontra firme em 930, mas neutralizado por metralhadoras alemãs. Seu objetivo final será 977, ou seja, o cume do Castelo, onde tenciona chegar depois das 16h 30 min. Fica combinado, então, que, às 16h 20min, quando seu batalhão iniciar a definitiva marcha sobre a crista de Castelo, toda a artilharia divisionária concentrará seus fogos sobre as faldas e o cume do monte. Estamos disparando com canhões 105, 155 e morteiros.

Às 15h 5min, escuto do General Cordeiro que, até aquele instante, calculava já ter gasto uns 8 milhões de cruzeiros de munição com os disparos de sua artilharia.

Às 15h 30min o Major Uzeda diz pelo rádio: “Meus homens estão prontos para atacar”. Olho pelo binó-culo que me emprestou o Coronel Miranda Correia e vejo lá em cima, no 930, os soldados em formação de ataque, esparsos pelos pequenos vales e deitados na pouca neve que o sol ainda não conseguira mandar embora.

Entre 13h 30min e 13h 50min há uma relativa calma: somente os morteiros nazistas, os aviões mer-gulhando nas faldas de Torraccia e um teco-teco brasileiro, plácido como uma asa estendida, que navega solitário sobre o campo de luta.
O PO do General Cordeiro de Faria fica localizado numa elevação do terreno lá embaixo; é o vale que nos separa de Castelo, e aqui atrás, seiscentos metros distante, está localizado um dos grupos de nossa artilharia. Quando suas peças disparam, há um violento estremecimento de toda a casa, e xícaras e copos trepidam na mesa com um barulho cristalino.

Os paisanos que aqui residiam, neste chalé amarelo, foram expulsos pela guerra e parece que não tiveram tempo de levar suas coisas. Os móveis estão intatos, há litogravuras nas paredes, um Cristo desa-lentado e pálido, fotografias de cavalheiros fardados e senhoras em trajes de inverno. Num dos cantos da sala onde o general colocou sua luneta, descubro um “ricordo nuziale” cercado por uma moldura dourada. Ali se recorda que, no dia 11 de dezembro de 1927, numa igreja de Bolonha, se consorciaram Dino Bettochi e Caterina Cioni. Uma paz distante.

Às 16h 5min o Coronel Franklin Informa pelo rádio que seus homens ocuparam Fornelo, à direita de Castelo e próximo ao seu cume. Tratava-se de um ponto forte inimigo, eriçado de metralhadoras, que foi dominado pelos nossos soldados. Fornelo foi um dos pontos em que foram barrados, em novembro e dezembro últimos, os anteriores ataques brasileiros contra a montanha tão cruel. Continua progredindo o batalhão do Coronel Franklin.

Sem dúvida alguma, o instante mais sensacional de toda a luta do dia 21 aconteceu às 16h 20min, quando toda a Artilharia Divisionária concentrou seus fogos sobre Castelo. Já havia lá fora qualquer coisa da noite, e os obuses explodiam em chamas altas, que o binóculo me mostra, tão próximas e reais.
As faldas do monte estão cavadas e lá em cima o cume ficou transformado numa cratera de vulcão em erupção. O Major Uzeda avança protegido pela função dos tiros de fuligem, e nossas metralhadoras estão trabalhando ativamente. Aqui dentro, ninguém diz nada. O general colocou definitivamente os olhos na luneta, e seus dedos, vejo bem, alisam automaticamente um pedaço da mesa. O Coronel Correia diz num fiapo de voz:

Todo mundo está andando…

Às 17h 40min os homens do Major Uzeda alcançam Esperança, outro ponto forte nazista no setor 930.

Às 17h 45min o General Cordeiro de Farias afasta-se das lunetas, vira-se para mim e diz: “Praticamente Castelo está conquistado.”

Chegam também informações sobre a situação dos americanos: eles não conseguiram ainda tomar Torraccia, e o avanço brasileiro sobre Castelo terá que ser feito com aquela estratégica posição ainda em mãos dos nazistas.

Às 17h 50min a voz do Coronel Franklin vem, forte, pelo rádio: “Estou no cume do Castelo.” E pede fogos da artilharia sobre pontos inimigos além do monte. “Castelo é nosso”, diz-me o general. Mais três minutos, e as baterias estão canhoneando Caselina, La Serra e Bela Vista. Os nazistas respondem com morteiros. Mas nada mais adiantaria, porque, como me diria no dia seguinte o Coronel Franklin, “estamos em Castelo e ninguém mais nos tira daqui”.

São mais de sete da noite quando seguimos, eu e o fotógrafo Horácio, pela estrada deserta e fria a caminho do nosso jipe que ficou distante. Nossa artilharia continua incansável. O Castelo está bem na nossa frente, mas é agora uma coleção de faldas amansadas. Já não nos domina com suas casamatas, já não vigia implacável nossos caminhos e estradas, já não nos segue com seus mil olhos nazistas. É um morro brasileiro, e amanhã estarei lá em cima, junto com os pracinhas vitoriosos, passeando pela sua arrogância domada.

No dia seguinte, logo cedo, o jipe me deixou em Abetaia um agrupamento de dez ou onze casas esfarinhadas pela guerra. É um nome que está definitivamente seguro na lembrança de todos os soldados da Força Expedicionária Brasileira: aqui sofreram eles alguns dos instantes mais sérios e cruéis da guerra, e neste chão, na falda frontal do traiçoeiro monte, muitos dos seus companheiros caíram para sempre. O cume do Monte Castelo, que visitaríamos depois, está aqui na nossa frente, arrebitado, liso, como certos morros da Tijuca.

Abetaia, durante perto de quatro meses, foi “terra de ninguém”. Os paisanos foram expulsos daqui de suas casas, e seus lares, com o passar dos dias, foram-se transformando num aglomerado de ruínas. Noite e dia, patrulhas brasileiras e nazistas aqui se encontravam em combates violentos, numa dessas disputas que pertencem ao quotidiano da guerra e que nunca são mencionadas nos comunicados de guerra.

Na noite do dia 20 de fevereiro, véspera do definitivo ataque ao Monte Castelo, o Segundo-Tenente Kleber Gomes Ferreira, da 6ª Companhia do 11º Regimento de Infantaria, recebeu ordem de executar uma tarefa difícil e perigosa: com os seus homens, precisamente trinta e oito, ele teria que ocupar Abetaia, diante da próxima e insone vigilância nazista. Informaram ao Tenente Kleber que aquela seria uma “operação diversionista”, isto é, uma manobra que fizesse crer aos alemães que o ataque a Castelo partiria de Abetaia.

O Tenente Kleber se pôs à frente dos seus homens, à meia-noite de 20 e marchou para o ponto indicado. A branca lua, luz de montanhas geladas, caía sobre suas casas destruídas, sobre os campos em derredor, tão lisos, e era um silêncio espesso de lugar morto. “Todos nós esperávamos um choque com os nazistas, sempre atentos. Mas Abetaia estava deserta”.

A morte, porém, se multiplicava por todo aquele silêncio e aquela tranquilidade, escondida atrás de mil surpresas. Havia somente um caminho estreito e enlameado que uma vanguarda de mineiros libertara das minas: campos, autoestrada, atalhos, pontes e bifurcações estavam impraticáveis. Os homens tiveram que marchar através de uma estreita via e o aviso de todo instante é que “não deixassem um só minuto a reta aberta e livre”. Uma pisada em falso na grama dos lados ou a tentativa de apanhar qualquer souvenir tedesco abandonado, um capacete ou um cantil seria a morte.

O resto da noite, para aquele oficial e seus trinta e oito homens, foi demorado e cheio de apreensões. Trincheiras individuais foram cavadas, e cada pracinha, dentro delas, transformou todos os seus sentidos num único. Um único sentido em direção ao Monte Castelo, por cujas faldas se derramava a lua.
Menos de trezentos metros além, encontravam-se os alemães defendidos pela sua montanha e pelas suas casamatas.

Depois que o ataque ao Monte Castelo chegou ao seu ponto vitorioso às cinco e meia da tarde do dia 21 – o Tenente Kleber pôde continuar sua tarefa com mais tranquilidade. Uma tarefa ao mesmo tempo trágica e penosa: seus homens teriam que demarcar, com longas fitas brancas, todas as zonas do terreno
minadas pelos nazistas: e depois, numa busca de cortar o coração, descobrir os cadáveres de soldados brasileiros tombados na luta do dia 12 de dezembro. “Passamos toda a manhã recolhendo os cadáveres, em número de vinte e seis”. Outros corpos de nazistas foram encontrados, e alguns deles estavam carregados de booby traps e de outras armadilhas.

“A estratégia nazista é de opinião que um alemão morto ainda pode matar alguém”, me disse o Tenente Kleber. Em Abetaia, o Tenente Kleber e seus homens varriam o terreno, espremidos entre as minas e as armadilhas. E as armadilhas se disfarçavam nas coisas mais inocentes: num pedaço de palha, numa casca de granada esquecida no chão, numa caneta-tinteiro, no vão de uma janela, dentro de um armário. Ainda hoje deve existir, lá em Abetaia, aquele minúsculo galho de árvore, pendente de um monte macio de feno, diante do qual os pracinhas passam sem coragem de pegar. “Aquilo pode ser passagem para o outro mundo”, me disse o Terceiro-Sargento Amadeu Boanerges Cardona Pereira, um pernambucano do Recife.

Falemos um pouco dele: é um rapaz avermelhado, com o olho esquerdo meio torto, e os pracinhas o chamam de louco. O Sargento Boanerges já esteve cercado duas vezes pelos nazistas, em patrulhas. De um dos cercos ele conseguiu livrar-se com sua “lambedeira” na mão, um souvenir que ele trouxe de Pal-meira dos Índios, quando esteve lá num destacamento. Boanerges tem sua filosofia: “A gente tem que dar duro, senão eles não respeitam a gente”. Eles são os nazistas.

A tranquilidade que recebeu os brasileiros, na madrugada de 21, em Abetaia, foi precisamente até meia-noite do dia 23, quando os alemães desfecharam sobre os pracinhas do destacamento um violento e concentrado fogo de artilharia. O Tenente Kleber e seus homens tiveram que se meter nos fox-holes, à espera que “as coisas melhorassem”.

Mas as coisas só melhoraram lá para as duas, quando voltou o silêncio. “A gente nem podia pensar”, disse-me o Tenente Kleber. E o pracinha Geraldo Vitor da Costa, um civil de Guiricema, na Zona da Mata, em Minas, que a guerra convocou, me falou: – ”Morteiro faz barulho de busca-pé. Aprendi isto nas duas horas que passei aqui, na madrugada de 24, debaixo do bombardeio alemão”.

É de Abetaia que trago as primeiras lembranças desta ofensiva: uma bandeira da República Fascista de Mussolini, com suas bordas pipocadas de bala, jornais de Bolonha e Milão mais ou menos recentes, o estojo de uma metralhadora “lurdinha”, o distintivo de um SS nazista e, não sei por que, um volume em alemão das Bucólicas, de Virgílio. Trouxe também comigo um folheto de perto de cem páginas intitulado Soldaten-Kameraden! da autoria de um tal Andreas Weinberger. Disse-me o Tenente Stahl, que entende e fala alemão, que se trata de uma série de exortações ao soldado em luta. A edição é de Munique, agosto de 1943. O penúltimo dono do livrinho (o último sou eu) foi um praça alemão de nome Karl Loezer, que espero já nos tenha dado a graça do seu falecimento.

Quanto às Bucólicas, creio que as passarei adiante, ao cabo José César Borba ou ao correspondente Raul Brandão, criatura dos clássicos.

Vinte horas depois da conquista de Monte Castelo, os caminhos lá na frente ainda não estavam inteiramente transitáveis. Havia muitas armadilhas, campos e estradas estavam minados, mas o sargento me disse que, “com cuidado”, eu poderia chegar até ao PC do Coronel Franklin. “A ordem é não deixar a estrada”.

Quando o jipe começou a galgar, quase alpinista, o coleante e íngreme caminho que leva à montanha, lembrei-me de certo pedaço de “estrada” que existe entre Rio Bonito e a margem do Araguaia, em Goiás: apenas duas linhas paralelas que as viaturas abriram na lama e às quais a neve, depois, deu uma dureza de ferro. Os alemães foram expulsos de suas posições altíssimas e privilegiadas, mas ainda continuam com seus esparsos tiros de morteiro e artilharia.

Quando chegamos no meio do caminho deserto e calado como se ainda fosse “terra de ninguém” avistamos as granadas nazistas que, por cinco ou mais minutos, explodiam lá embaixo, em Gaggio Montano. O pracinha que ia guiando perguntou se eu queria ir para ali. Respondi que estávamos muito a descoberto e o melhor seria andar mais para frente, até a próxima casa. “E veja se você pode andar mais depressa”. Três pracinhas brasileiros nos receberam no bangalô abandonado – estavam estirados nos montes de feno e se levantaram rápidos imaginando que eu era qualquer capitão.

Todas as casas desta região não estão mais desertas e caladas, como lares mortos de um mundo impraticável. Agora, em todas elas, é fácil divisar a presença de um pracinha brasileiro, com seu fardamento amarfanhado, a barba por fazer e um tremendo cansaço dormindo nos olhos pesados de sono. Quando há qualquer instante de folga e tranquilidade – e eles são, hoje, tão raros os pracinhas se estiram ao comprido em qualquer pedaço de chão, nas colinas de feno ou na grama rala, e ficam minutos e minutos sob o primeiro e pouco “caldo” sol deste fim de inverno. São pequenas reivindicações dos nossos pracinhas, agora praticáveis depois da expulsão dos nazistas.

Quarenta e oito horas antes, tudo isto aqui era chão ingrato e inimigo, batido pela artilharia, pelas metralhadoras e morteiros, à noite iluminado pelos foguetes alemães um campo de luta onde as sestas eram impossíveis.

A fadiga do pracinha é, nesta frente, a fadiga do tenente e do coronel, e o Tenente-Coronel Franklin me recebe com uma fisionomia típica de soldado de vanguarda. Há mais de duas noites que ele não dorme, duas olheiras roxas e espalhadas enrolam seus olhos. Mas a luta não terminou, e o PC avançado do terceiro batalhão do 1º Regimento, um dos primeiros a galgarem o cume de Castelo, ainda apresentava, na manhã do dia 22 e nas seguintes, um aspecto de trincheira.

As informações chegam de minuto em minuto, o rádio está aberto, os telefones tilintam. Na porta do PC do Coronel Caiado de Castro, alguns metros à direita, eu havia esbarrado com um grupo de prisioneiros nazistas seis ou sete, alguns muito moços, alguns muito velhos, e entre eles um alto e espigado sargento cuja especialidade, parece, é fazer continências seguras e prussianas. Uma das coisas mais ou menos incomodas que acontecem com os correspondentes, aqui na frente, é que não os deixam revelar conversas tidas com nazistas presos.

O Major Uzeda (Olivio Gondim Uzeda) falou alguns instantes com o comandante americano do grupamento de tanques. Vejo de longe os dois conversarem, e o major aponta para a frente, onde está um dos morros recém-conquistados. É de lá, detrás, que estão chegando estas granadas que, de cinco em cinco minutos, como numa aritmética, vão explodindo a duzentos ou trezentos metros de nós.
O comandante dos tanques leva suas máquinas e seus homens para uma ravina, adiante, e mais tarde todos estão em posição de combate. São quatro horas da tarde, mais ou menos, quando os tanques começam a atirar, uns tiros secos que seguem acompanhados e abençoados por um unânime “vai com deus” dos pracinhas brasileiros.

Como costumo fazer sempre, peço ao Major Uzeda que me mostre, no mapa, onde estou. Não é um lugar do Senhor: quatrocentos e cinquenta metros além (“Às vezes menos”, me diz o major) se encontram os alemães, expulsos de suas casamatas no dia 20 último e agora fincados nas suas posições no vale. “Tudo isto aqui era terra deles”. É um dos lugares mais belos de toda esta frente. Há pequenas porções de pinheiros compridos e verdes, há pequenas árvores em fileiras que naturalmente rebentarão em flores na primavera, há o clássico riachinho de toda paisagem italiana.

Mas, de cinco em cinco minutos, os alemães intranquilizam e tornam impraticável este cartão-postal. Lá da janela dos fundos do PC, para onde me leva o Major Uzeda, pode-se ver quando as granadas chegam e explodem numa nuvem de areia negra e lodosa. Muitas vezes, centenas ou milhares, tenho perguntado a mim mesmo por que os obuses nazistas nunca desabam sobre mim, tão próximo. Ali está uma granada que veio do outro lado, que passou sobre o PC e que vai explodir lá embaixo. Creio que qualquer manobra despreocupada do pracinha nazista na sua artilharia, e aquela bomba seria para nós. Mas o major me explica que “ninguém morre na véspera”, e continuamos os dois a assistir, “de palanque”, ao estrago inútil lá de baixo.

Há precisamente oito dias que o Major Uzeda e seus homens vêm “dando um murro” dos mais pesados. Venho encontrar o 1º Batalhão do Regimento Sampaio um dos primeiros a chegar à crista do Castelo transformado numa coleção de cavalheiros afobados e barbudos. Muitos deles não dormem direito há muito tempo suas olheiras roxas dizem isso. Chegaram a 19 em Gaggio Montano, partiram a 21, de lá, para a perigosa manobra envolvente que venceu os nazistas. Durante doze horas, debaixo de uma barragem de fogo, estes homens avançaram, expulsaram os alemães de suas posições, destruíram casamatas, lutaram aqui e ali de baioneta e corpo-a-corpo, instalaram-se definitivamente no cume do monte eriçado de metralhadoras e morteiros. Desceram de Castelo anteontem, depois de serem substituídos por outra tropa. Mas não vieram para um mundo de paz. Vieram para aqui, chão recém-tirado dos alemães, campo de guerra. É lógico que não voltaram todos: entre mortos, feridos e desaparecidos, o 1º Batalhão teve 47 baixas, entre os quais 13 mortos.

Agora, defronte do mapa e com a ajuda do Major Uzeda (estou já há dois dias aqui no PC, e ontem oh! surpresa da guerra, dormi numa igreja) posso reconstituir a marcha do batalhão: ele partiu de Gaggio Montano em direção a Mazancana, um lugarejo dois quilômetros adiante. Mazancana foi ocupada na noite do dia 20 e no começo da madrugada de 21.

Os homens do 1º Batalhão encontraram o povoado atapetado de minas e booby traps. Algumas armadilhas constituíam novidade para os pracinhas brasileiros, particularmente aquelas que, quando tocadas, explodiam em luzes coloridas ou começavam a gemer como uma coisa mal-assombrada.
O Segundo-Tenente Dulcelino Tavares, que comandou um dos pelotões, me conta que quando seus soldados escutaram aqueles gemidos pela primeira vez não se assustaram muito e um deles havia dito: “Isto é coruja. Conheço pelo pio”. Mas quando a primeira “coruja” explodiu e espalhou um inferno de estilhaços por todos os lados, os pracinhas começaram a ter mais cuidado. “Não apanhem nada do chão: nem relógio, nem caneta-tinteiro, nem capacete abandonado. Não mexam nos cadáveres alemães. Não abram nem fechem portas ou janelas. Não peguem em nada” ordens assim eram repetidas de minuto a minuto, porque esta é também uma guerra de cuidado contra o ardil.

Na manhã do dia 21, o 1º Batalhão deixou Mazancana atrás com seus pios agourentos e continuou o avanço. Pode-se dizer que os segundos-tenentes Dulcelino Tavares e Fredímio Trota pegaram Fornaci de surpresa. Eles haviam preparado o assalto durante a noite, e quando veio a primeira luz do dia caíram em cima dos despreocupados nazistas. Muitos alemães foram pegados em pleno café. Um deles fazia a barba.

Nossas metralhadoras fizeram uma regular chacina entre os nazistas, que não tiveram tempo de responder ao ataque. Meia hora depois, o batalhão mandava para a retaguarda seis prisioneiros, duas “lurdinhas”, e vários pacotes de bolachas alemãs, muito saborosas.

Pouco depois das cinco horas o 1º Batalhão estava em cima de Castelo.

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