Exército vai “desidratar” kids pretos, diz jornalista

Comando de Operações Especiais será desidratado com a perda de cursos e diminuição de unidades; integrantes da tropa participaram de operações clandestinas durante a tentativa de golpe bolsonarista

As medidas do Exército para reformular e diminuir o poder dos kids pretos após o plano do golpe
Marcelo Godoy
O Exército decidiu diminuir as vagas e retirar curso de formação de militares, além de enxugar o efetivo do Comando de Operações Especiais (COpEsp). Após dois meses de estudos, o Estado-Maior da Força Terrestre começou a reformulação da tropa que esteve no centro das operações militares clandestinas durante a tentativa de golpe bolsonarista para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O tema foi discutido por generais na semana passada em Brasília, quando o general Guido Amin tomou posse como ministro do Superior Tribunal Militar (STM) e o Alto Comando do Exército (ACE) se reuniu para decidir promoções. O diagnóstico no Estado-Maior é de que o COpEsp, cuja sede fica em Goiânia, tornou-se uma espécie de “exército dentro do Exército”, com autossuficiência excessiva, desempenhando funções além daquelas para as quais foi programado: ações de comandos e de forças especiais.

A primeira medida do general Richard Nunes, chefe do Estado-Maior do Exército, para reverter esse quadro foi retirar do COpEsp do curso de operações psicológicas. Ele foi transferido para o Centro de Estudos de Pessoal (CEP), no Rio. Além disso, o Exército decidiu diminuir o total de vagas no Curso de Ações de Comandos (CAC) de 70 para 48. O curso é feito no Centro de Instrução de Operações Especiais (C I Op Esp), em Niterói (RJ). Ele é obrigatório para quem pretende ser um kid preto.

A redução das vagas serve para adaptar seu número à necessidade real de formação de militares para o setor. Além da redução na porta de entrada para o COpEsp, um grupo de trabalho da Força Terrestre vai entregar neste mês um relatório para propor o enxugamento de suas organizações militares. A ideia é preservar dos cortes apenas as unidades centrais do COpEsp: o 1.º Batalhão de Ações de Comandos (1.º BAC) e o 1.º Batalhão de Forças Especiais (1.º BFEsp).

Além dessas duas organizações, o COpEsp tem outras unidades, como a de guerra bacteriológica e nuclear, o Batalhão de Apoio às Operações Especiais, o Batalhão Administrativo e também a que se tornou um dos alvo do inquérito da Polícia Federal sobre o golpe: o 1.º Batalhão de Ações Psicológicas (1.º B Op Psc), cujo comandante, o tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida, foi preso na Operação Tempus Veritatis, em 14 de fevereiro de 2024.

Naquele dia, ao ser questionado por seus superiores, o oficial negou ter feito qualquer coisa de errada. Almeida permanecia preso no Batalhão da Polícia do Exército, em Brasília, quando os generais finalmente tiveram acesso aos áudios apreendidos pela PF, cujo sigilo foi retirado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada.

Em um deles, o tenente-coronel afirmou, após o segundo turno das eleições de 2022: “Esse é o nosso mal: a gente não está saindo das quatro linhas. Vai ter uma hora que a gente vai ter que sair ou então eles vão continuar dominando a gente. É isso cara, infelizmente é isso”. A revelação dos áudios de Almeida e de outros militares presos renovou o desconforto no Exército e a decisão de se mudar o COpEsp.

O então presidente da República, Jair Bolsonaro é cumprimentado pelo comandante de Operações Especiais, o general Mário Fernandes, na sede do COpEsp, em Goiânia Foto: Isac Nóbrega/PR
Trata-se de um ponto central para recuperar a disciplina e manter a hierarquia na Força Terrestre, evitando a atuação ilegal de militares, fora da cadeia de comando. O material reunido no inquérito do golpe mostrou aos generais que alguns dos réus foram além da simples discussão e das bravatas na internet, colocando o “tanque na rua” ou seja, eles executaram um tipo de ação militar – Operação Psicológica (Op Psico) – para encurralar os generais contrários à ruptura da legalidade.

Essas operações podem ser executadas no meio cibernético mais facilmente sem o conhecimento dos superiores, dentro e fora das casernas. Para os generais, apenas uma parcela pequena de oficiais que se deixou levar por interesses pessoais, colocando-os acima da instituição e da Pátria aderiu à tentativa de golpe. Esta é uma das lições aprendidas em razão da sequência de conversas e de documentos apreendidos pela PF.

De acordo com a PF, coronéis sob a influência do general Mário Fernandes, então 2.º homem na hierarquia da Secretaria Geral da Presidência, fizeram operações por fora da cadeia de comando para desacreditar os comandantes do Exército, chamando-os de melancias e os pressionando com o objetivo de facilitar o golpe. E, para os generais, não há dúvida de que os acusados tinham ciência do que estavam fazendo.

O Manual de Operações Psicológicas do Exército: militares acusados pela PF usaram essas técnicas para executar ação militar, durante a tentativa de golpe Foto: Reprodução/Estadão
Exemplo disso é a mensagem do coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros para o tenente-coronel Ronald Ferreira de Araújo Júnior, no dia 28 de novembro de 2022, sobre uma carta que haviam enviado ao comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes: “Logicamente que, ‘acidentalmente’, irá vazar”, escreveu Cavaliere. Ele ainda afirmou que sua turma teria feito “uma Op Psico (Operação Psicológica) forte”.

Esse tipo de operação está descrito no Manual de Campanha C-45-4, do Estado-Maior do Exército. O documento afirma: “As Op Psico constituem uma parte essencial do poder. Os chefes militares e políticos das nações têm utilizado, quer na paz, quer na guerra, as Op Psico como forma de persuasão ao longo da história”.

Para o Exército, as “fronteiras físicas já cederam lugar à fronteira psicológica”. Esse tipo de operação “procura influir em convicções mais profundas, tal como a decisão de abandonar a luta e render-se”. O manual reconhece que entre os objetivos da Op Psico está “enfraquecer, em caso de guerra, a vontade de grupos inimigos e o moral de suas tropas e Influenciar a opinião pública”, podendo ser dirigidas a três públicos: a população, o adversário e as próprias tropas. Busca-se levar confusão ao “inimigo, desestabilizar sua retaguarda e induzi-lo a tomar medidas que lhe são desfavoráveis”.

Trecho do inquérito da PF no qual coronéis defendem a exoneração de generais do Alto Comando do Exército a quem chamavam de ‘melancias’ por se operem ao golpe bolsonarista Foto: Reprodução/Estadão
O campo que se pretendia atacar em 2022 eram os generais do Alto Comando. Além da Op Psico, foi do COpEsp que saíram os militares que executaram a Plano Copa 2022 (e sua variante, o Punhal Verde e Amarelo), a vigilância sob o ministro Alexandre de Moraes com o objetivo de neutralizá-lo, o que estaria de acordo com a chamada minuta do golpe, com a qual, segundo áudio do general Fernandes e a delação do tenente-coronel Mauro Cid, Jair Bolsonaro anuiu.

O então presidente teria reformulado a minuta do decreto do golpe, deixando ali a previsão de prisão de Moraes, mas excluindo da medida o ministro Gilmar Mendes e o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Pensava conseguir assim obter o apoio dos comandantes do Exército e da Força Aérea para o golpe.

Por fim, existe a certeza de que a indisciplina, a ruptura da hierarquia, a deslealdade com os comandantes e com a instituição teria levado à prática de uma dezena de delitos, comuns – os crimes contra o estado democrático de direito – e militares, como a participação em reuniões ilícitas (art.165), a incitação à indisciplina (art. 155), o aliciamento para a prática de crime militar (art. 154), a crítica indevida (art. 166) e operações militares feitas à revelia do comando (art.169).

A coluna não conseguiu localizar a defesa dos coronéis citados. Também não conseguiu localizar a defesa do general Mário Fernandes. Bolsonaro nega que tivesse participado de uma tentativa de golpe ou mesmo que alguma ação tenha sido empreendida por militares. A maior parte dos militares acusados procura afirmar que as conversas mantidas entre eles não passava de bravatas.

A virada da página e o medo de uma vingança em 2027
Os comandantes do Exército querem virar a página do golpe, mas sabem que a polarização política deve tornar essa tarefa difícil nos próximos anos. Eles temem agora, em caso de vitória de um candidato bolsonarista na eleição de 2026, a repetição no Brasil do que Donald Trump está fazendo nos EUA.

O presidente americano leva adiante, o que está sendo descrito por analistas militares, uma espécie de vingança contra os oficiais que se colocaram contra a tentativa de impedir a posse de Joe Biden. Trump, assim como Jair Bolsonaro, alegava falsamente que as eleições de 2020 nos EUA haviam sido fraudadas. Bolsonaro e seus aliados repetem o mesmo discurso sobre as eleições de 2022, no Brasil.

Após ter sido alvo de severas críticas do ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o general Mark Miley, Trump e seus aliados passaram a dizer que as Forças Armadas estavam tomadas pelo que chamam de ideologia woke. Trata-se de artifício semelhante ao usado pela extrema direita brasileira ao classificar como “melancias” os generais que defenderam a legalidade em 2022.

Trump resolveu iniciar um expurgo na cúpula das Forças Armadas. Demitiu há dez dias o general Charles Brown Jr., então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos, o mais alto cargo militar do País. Em seu lugar, em vez de nomear um general quatro estrelas, nomeou um três estrelas aposentado, Dan Caine, a quem seria ligado politicamente.

Além disso, o governo demitiu a chefe de operações navais, Lisa Franchetti, e o vice-chefe do estado-maior das Força Aérea, general James Slife. A reação veio na semana passada, quando cinco ex-secretário de Defesa, entre os quais James Mattis, que serviu no primeiro governo Trump entre 2017 e 2019, escreveram uma carta ao Congresso pedindo aos representantes que contenham a politização das Forças Armadas pretendida por Trump, pois ela enfraqueceria a segurança nacional.

Também pedem que o nome de Caine seja rejeitado pelos senadores. Os ex-secretários lembraram a advertência de George Washington a Alexander Hamilton em 1783, que incentivava os oficiais a se envolver na política: “O Exército é um instrumento perigoso para se brincar”. “Não estamos pedindo um favor aos membros do Congresso, mas que façam o seu trabalho. Pedimos para que George Washington lhes toque o coração”, escreveram os signatários.

Trump e o general Mattis durante encontro em New Jersey, no mês passado Foto: Drew Angerer/AFP
No Brasil, enquanto setores da esquerda ainda enxergam contas a acertar com o Exército em razão do regime militar (1964-1985), a extrema direita acalenta o ressentimento de as Forças não terem se colocado à sua disposição para dar o golpe em 2022.

Militares presos nas operações Tempus Veritatis e Contragolpe não se viam como criminosos; consideravam-se vítimas de perseguição e se mostravam ressentidos com os colegas que, em vez de os apoiar, cumpriram a lei. Agora pedem anistia.

Caso seja aprovada, ela pode inocular nas Forças Armadas o mesmo vírus que tomou conta das PMs após as anistias a policiais grevistas. Quem pagará a conta será a população e o País, que ficarão entregues à ameaça de arruaça e de baderna nos quartéis, o que transformaria o Exército em um mero bando armado.
ESTADÃO – Edição: Montedo.com

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