Sem USA e sem armas: como a Europa vai se defender?

 

Segundo a ONU, Moscou produz três vezes mais armamento que todo o Velho Continente
João Guerreiro Rodrigues
A Europa está a acordar para o fim da ajuda militar americana na Europa, mas o tempo não está a seu favor
Enquanto a Europa debatia, os seus adversários agiam. Junto à fronteira, a Rússia de Vladimir Putin, a braços com a invasão da Ucrânia, colocou o país numa economia de guerra. O resultado preocupa os militares ocidentais: Moscovo produz três vezes mais armamento que toda a Europa, segundo a NATO. Agora, pressionada por uma América sem vontade de defender o velho continente, a Europa está a acordar para a necessidade de comprar armamento que, neste momento, não é capaz de produzir. As hipóteses são reduzidas e os especialistas acreditam que a resposta europeia pode demorar mais de uma década.

Tropas americanas na Europa

“O complexo militar industrial europeu não está a conseguir dar uma resposta suficientemente rápida para as necessidades do continente. A curto prazo, nos próximos três anos, é possível. Temos capacidade, mas a curto prazo vamos ter de encontrar noutros países a solução para o desinvestimento que tem existido na indústria da defesa. Devemos procurar outros fornecedores”, alerta o major-general Isidro de Morais Pereira.

A dimensão do que é pedido à Europa é enorme. A Europa pode demorar mais de uma década até conseguir assumir para si as capacidades defensivas que o exército norte-americano assumia. De acordo com um estudo do think tank belga Bruegel, os países europeus precisam de aumentar o seu exército em 300 mil soldados e adquirir mais 1.400 tanques, dois mil veículos blindados de infantaria e, pelo menos, 700 obuses de artilharia. Estas estimativas serviriam apenas para colmatar os militares americanos enviados para a Europa em caso de um conflito direto com a Rússia.

Este reforço, que serviria para construir 50 novas brigadas, é superior ao poder de combate terrestre inglês, alemão, francês e italiano combinado. E a fatura de um aumento desta dimensão é significativa. Os autores do estudo, Alexandr Burilkov e Gundam Wolff, calculam que estas necessidades façam disparar os gastos em defesa na Europa dos 2% para os 3,5%, o que representaria um custo de 250 mil milhões de euros por ano. Só que muitos temem que esse dinheiro não seja gasto no velho continente e vá contribuir para fortalecer a indústria de outros países.

Segundo um estudo do think tank International Institute for Strategic Studies (IISS), durante os dois primeiros anos da guerra da Ucrânia os países europeus da NATO adquiriram 52% dos seus equipamentos militares a empresas da indústria de defesa europeia. Este número só não é maior porque a indústria europeia não consegue produzir o que precisa nas quantidades em que precisa, nem mesmo de alguns dos sistemas mais simples.

Quando os sistemas são mais complexos a dependência americana é quase total. Os países europeus compram 34% de tudo aquilo que precisam aos Estados Unidos. Aviões de combate furtivos, mísseis e sistemas de defesa antiaérea de longo alcance, sistemas de lançamentos de rockets e capacidades de satélite são algumas das compras que a Europa faz quase em exclusivo aos aliados americanos. Muitos destes sistemas são cruciais para a sobrevivência da Ucrânia e os países europeus estão a testemunhar na primeira fila as consequências desta dependência em tempo de guerra.

“A Europa ainda tem tempo, mas começa a esgotar-se. Enquanto a Ucrânia estiver a combater a Rússia, não há invasão da Europa. Ainda temos algum tempo. Neste momento, somos demasiado dependentes da tecnologia norte-americana, particularmente na aviação. Um dos nossos grandes erros, na Europa, foi nunca ter desenvolvido um avião furtivo de quinta geração”, defende Isidro de Morais Pereira.

Força na diversificação
Face a esta dependência, e com o relógio a contar, a Europa terá de diversificar os seus fornecedores a curto prazo. Um exemplo dessa política está a ter lugar na Polónia, onde, logo após a invasão russa, o governo deu início a uma subida significativa dos gastos em defesa de 2% do PIB em 2022 para 4,7% em 2025. Só que para cumprir a promessa de aumentar o exército de 150 mil para 300 mil efetivos, o governo polaco precisava de enormes quantidades de equipamento militar que nem Estados Unidos nem aliados europeus eram capazes de entregar a curto prazo.

A resposta polaca foi procurar países que tivessem os equipamentos com qualidade necessária para fazer frente ao potencial inimigo e que tivessem capacidade de produção suficiente para entregar o elevado número de veículos e sistemas num prazo temporal reduzido. Só que o número de países que preenche estes critérios é reduzido. A Alemanha, que produz os famosos tanques Leopard 2, não tinha capacidade para entregar os mais de 1.250 carros de combate que Varsóvia queria e os Estados Unidos podiam entregar parte dentro do prazo, mas não todos.

Parte da solução foi encontrada na Ásia, onde a constante tensão na península da Coreia obriga o governo de Seul a manter abertas as linhas de produção e a desenvolver todo o tipo de veículos militares. Isto permitiu à Coreia do Sul assinar contratos milionários com Varsóvia para a venda de mil tanques K2 Black Panther, bem como 672 unidades de artilharia de longo alcance K9 Thunder, 288 unidades de lançadores de rockets 239 Chunmoo e até 48 caças FA-50 Golden Eagle. Ao todo, a Polónia investiu 16,4 mil milhões de euros na compra de armamento da indústria de defesa coreana.

Outras soluções foram encontradas num país que viu os seus sistemas ganharem notoriedade nos primeiros meses da guerra na Ucrânia. A Polónia viu com bons olhos o sucesso do drone turco Bayraktar e fez um acordo de mais de 250 milhões de euros, em 2022, para adquirir uma quantidade não especificada destes drones e das munições inteligentes que eles disparam. Além disso, o governo polaco está a estudar a possibilidade de comprar centenas de veículos blindados de infantaria Tulpar.

“A Turquia tem um complexo militar industrial muito avançado, particularmente no que toca a drones e mísseis, apesar de produzir um pouco de tudo. Até mesmo armamento mais simples, como munições e explosivos. Se os países europeus tiverem muita pressa em rearmar-se, devem olhar com seriedade para o complexo industrial turco”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

Os especialistas sublinham também o potencial valor de uma parceria com Israel para a compra de sistemas de defesa antiaérea, como o David’s Sling. Estes sistemas são capazes de atingir alvos a distâncias de 300 quilómetros que sobrevoem os seus a uma altitude até 15 quilómetros. Tendo em conta a ameaça para a qual a Europa se está a preparar, com o potencial confronto com o exército russo, este equipamento permite abater os mísseis balísticos táticos de curto e médio alcance Iskander, que têm feito grandes estragos às defesas ucranianas. A Finlândia acredita que estes sistemas podem ser cruciais para proteger o espaço aéreo contra ameaças russas e investiram 345 milhões na compra deste sistema.

Reforço das capacidades
Os especialistas são unânimes ao apontar que independentemente do caminho escolhido a longo prazo, a União Europeia poderá desenvolver as capacidades que não produz e também para intensificar a produção daquilo que já fabrica. Esta opinião vai precisamente ao encontro dos líderes da indústria militar europeia, como Armin Papperger, CEO da gigante Rheinmetall. Em declarações à Reuters, o industrial garantiu que se houver compras por parte dos governos ocidentais, a empresa vai expandir as suas linhas de produção e dar resposta às necessidades europeias.

“A Europa tem capacidade própria e deve focar-se internamente. Neste momento, tem pouca capacidade porque o mercado assim o dita. Se a Europa transitar para um esforço de guerra maior, pode produzir aquilo que precisa. Não se monta uma empresa tecnológica industrial num ano. Atualmente não temos capacidade de produção e isso tem de mudar”, sublinha Agostinho Costa.

Só que para que isso aconteça é preciso avançar com uma enorme quantidade de dinheiro. Historicamente, os processos de militarização são financiados com emissão de dívida, seguida de um aumento de impostos para pagar a fatura. Só que os países europeus, como Portugal, França ou Itália, têm pouco espaço orçamental para contrair dívida na escala necessária para atingir os 250 mil milhões anuais que a União Europeia precisa a curto prazo para fazer frente à ameaça russa.

A União Europeia está equacionar duas hipóteses. A primeira foi proposta por Ursula von der Leyen e passa pela ativação da “cláusula de escape”, permitindo aos governos que emitam mais dívida durante um período limitado de tempo, em resposta a uma emergência. Este mecanismo foi utilizado para fazer frente à pandemia de covid-19. A outra hipótese é o fim completo dos limites da dívida, dando aos governos mais liberdade para pedir dinheiro. Só que ambas as sugestões têm o mesmo problema: preocupam os investidores que compram dívida europeia, o que pode levar a juros mais caros, tornando o processo mais dispendioso.

O financiamento destes gastos pode vir a ter um sério impacto social nas famílias europeias, particularmente em países pequenos como Portugal, onde os aumentos de impostos seriam sentidos com mais intensidade. Em Portugal, passar de 1,5% para 3,5% do PIB em defesa significa mais 5,1 mil milhões de euros por ano. Isso pode representar, por exemplo, um aumento mensal de dezenas de euros na despesa de um agregado familiar. Sem subir impostos, este aumento da despesa teria de resultar em cortes em serviços prestados pelo Estado, como no SNS ou nas escolas.

Novas capacidades
Mesmo com financiamento, os desafios práticos que a Europa tem pela frente são significativos. Por um lado, treinar o número de soldados sugerido pelo Bruegel, com a criação de 50 novas brigadas para substituir o apoio americano, é um esforço complexo. Um exemplo disso são as capacidades que a Europa está a pensar destacar para cumprir a missão de paz na Ucrânia, após um cessar-fogo. Apesar de o número de militares que está a ser debatido ser relativamente baixo, a maior parte dos países envolvidos não consegue reunir pouco mais do que alguns milhares de soldados e, nalguns casos, só o consegue fazer enfraquecendo capacidades cruciais da NATO noutros locais.

A Alemanha, em particular, está a apresentar sérios problemas em gerar as forças necessárias. No início da invasão russa, em 2022, o chanceler Olaf Scholz prometeu colocar à disposição da NATO duas divisões – cerca de 40 mil soldados – em 2025 e 2027. Só que este plano está a enfrentar sérios problemas, com Berlim a não conseguir equipar na totalidade a unidade que estava planeada ser a base das defesas da NATO contra um possível ataque russo na frente de leste. Segundo fontes militares alemãs, que falaram sob anonimato à Reuters, o cenário da segunda unidade é bem pior e dificilmente vai estar pronta em 2027.

Os autores do estudo argumentam que a Europa teria de investir fortemente na criação de aviação capaz de competir com os modelos norte-americanos, bem como capacidades de transporte aéreo, mísseis, drones e capacidades de comunicação e de captação de informação. E isso poderia ser uma oportunidade de revitalizar a indústria europeia, fortemente afetada nos últimos anos. Rheinmetall, a gigante alemã de armamento, é um exemplo claro: desde 2022, contratou dois mil novos trabalhadores para responder à procura crescente por munições e veículos blindados.

.Os especialistas concordam que o objetivo pode ser alcançado, mas exige um investimento significativo de tempo e recursos, dado o esforço substancial necessário. É crucial, no entanto, que o trabalho comece imediatamente devido à urgência da situação. A incapacidade de agir ou atrasos podem ter consequências graves e impactar a capacidade de responder a desafios futuros e aproveitar oportunidades emergentes.

“A Europa tem capacidade de substituir os sistemas mais complexos americanos, mas tem de se empenhar em desenvolver capacidades. Em dois anos, é muito difícil, mas temos de começar algum dia. Já devíamos ter tratado deste assunto há muito tempo. Não é preciso amuar com os Estados Unidos, precisamos de criar capacidade estratégica autónoma o quanto antes”, defende Agostinho Costa.
CNN PORTUGAL – Edição: Montedo.com

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