Os EUA e o padrão de abandono de aliados: da Guerra Fria à Ucrânia

Ao longo de décadas, os Estados Unidos se posicionaram como defensores globais da democracia e da liberdade, oferecendo apoio militar e político a nações alinhadas aos seus interesses. No entanto, um padrão inquietante emerge: aliados são frequentemente abandonados quando os objetivos estratégicos de Washington mudam ou os riscos se tornam altos demais.

Por Ricardo Fan – DefesaNet

Por trás da fachada de “defesa da democracia” e da liberdade global, os Estados Unidos consolidaram um padrão histórico: apoiar aliados enquanto atendem aos seus interesses estratégicos, mas abandoná-los quando o custo político, militar ou econômico se torna inconveniente. Esse comportamento, que atravessa décadas desde a Guerra Fria até os conflitos contemporâneos, como o da Ucrânia contra a Rússia, alimenta uma desconfiança crescente entre parceiros internacionais – incluindo o Brasil.

Um general brasileiro, sob condição de anonimato, confidenciou: “Os EUA agem por conveniência. Hoje são aliados, amanhã podem virar as costas. Não dá para confiar plenamente em sua palavra.” Essa percepção pode ter influenciado a decisão da Força Aérea Brasileira (FAB) em rejeitar o caça americano F/A-18 Super Hornet em favor do sueco Gripen, uma escolha que reflete o desejo de autonomia e a cautela com um parceiro visto como volátil em compromissos de longo prazo.

Ucrânia: promessas que não se sustentam

A relação dos EUA com a Ucrânia ilustra esse padrão de forma contundente. Desde a Revolução de Maidan em 2014, Washington incentivou ativamente a guinada ucraniana rumo ao Ocidente. Vazamentos envolvendo Victoria Nuland, então subsecretária de Estado, expuseram o papel americano na articulação do movimento que derrubou o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovych, com promessas implícitas de respaldo político e militar. Contudo, a resposta russa – anexação da Crimeia e apoio aos separatistas no leste – revelou os limites desse compromisso. Inicialmente, os EUA reagiram com sanções econômicas e ajuda militar não letal, insuficientes para conter Moscou, deixando Kiev em uma posição vulnerável contra uma potência militar superior.

Após a invasão em larga escala de 2022, embora bilhões em equipamentos como mísseis Javelin e sistemas HIMARS tenham sido enviados, a recusa americana em impor uma zona de exclusão aérea ou mobilizar tropas evidenciou uma hesitação que muitos ucranianos interpretam como traição. Esse cálculo pragmático – evitar um confronto direto com a Rússia, uma potência nuclear – expõe a fragilidade das garantias americanas e reacende o debate sobre a confiabilidade dos EUA como aliado.

Guerra Fria: Polônia e o silêncio diante da repressão

O histórico de abandono remonta à Guerra Fria, com a Polônia como um dos primeiros exemplos marcantes. Na Conferência de Yalta, em 1945, os EUA e o Reino Unido aceitaram a divisão da Europa em esferas de influência, cedendo a Polônia à União Soviética apesar das promessas de apoiar a autodeterminação dos povos europeus. O governo polonês no exílio, baseado em Londres e fiel aos aliados ocidentais, foi ignorado enquanto Stalin consolidava um regime comunista em Varsóvia.

A resistência polonesa ao nazismo, que contava com o respaldo do Ocidente, foi traída por uma decisão que priorizou a estabilidade global sobre a lealdade. Mais tarde, revoltas anticomunistas na Hungria (1956) e na Tchecoslováquia (1968) seguiram o mesmo roteiro: mensagens da Rádio Europa Livre, financiada pelos EUA, alimentaram a esperança de apoio ocidental, mas, quando tanques soviéticos sufocaram os levantes, Washington limitou-se a condenações diplomáticas. Envolvidos na Guerra do Vietnã e temerosos de uma escalada nuclear, os EUA optaram pela inação, deixando aliados à mercê da repressão.

Vietnã, Iraque e Afeganistão: lições de abandono Pós-Guerra Fria

Fora do contexto da Guerra Fria, o padrão persiste. Na Guerra do Vietnã, os EUA sustentaram o Vietnã do Sul por mais de uma década, mas a retirada de tropas em 1973, sob o Acordo de Paz de Paris, abriu caminho para a queda de Saigon em 1975 diante do avanço comunista do norte. Milhares de sul-vietnamitas que confiaram na aliança americana foram abandonados à repressão do regime vitorioso.

No Iraque, a invasão de 2003 trouxe promessas de democracia e reconstrução, mas a retirada precipitada em 2011, sob a administração Obama, deixou um vácuo de poder que favoreceu o surgimento do Estado Islâmico. Forças locais treinadas pelos EUA e aliados tribais foram largados à própria sorte contra a ascensão jihadista.

O caso mais recente, no Afeganistão, é ainda mais emblemático: após 20 anos de ocupação e investimentos bilionários, a saída caótica em 2021 entregou o país ao Talibã em questão de semanas. Soldados afegãos treinados pelos americanos e civis que colaboraram com a coalizão foram abandonados, com cenas de desespero no aeroporto de Cabul chocando o mundo.

Baía dos Porcos: o fracasso em cuba

Outro episódio revelador é a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Exilados cubanos, armados e treinados pela CIA para derrubar Fidel Castro, foram lançados à batalha com a expectativa de suporte americano. No entanto, no momento crítico, o presidente Kennedy cancelou o apoio aéreo essencial, condenando a operação ao fracasso. Centenas de combatentes foram capturados ou mortos, e Castro saiu fortalecido. O abandono dos exilados cubanos reforça a percepção de que os EUA descartam aliados quando os riscos superam os ganhos.

Implicações globais: Ucrânia, desconfiança e a escolha brasileira

Na Ucrânia atual, o padrão se repete com nuances modernas. Após incentivar a integração ao Ocidente, os EUA hesitaram em oferecer um escudo militar robusto contra a Rússia, temendo uma guerra direta com uma potência nuclear. A ajuda substancial, mas limitada a equipamentos e treinamento, deixa a Ucrânia carregando o fardo de um conflito assimétrico. Esse pragmatismo americano – evitar escaladas enquanto usa aliados como tampões geopolíticos – alimenta a narrativa de que Washington trata parceiros como peças descartáveis em seu tabuleiro estratégico. Para os ucranianos, que apostaram tudo na aliança ocidental, o risco de um desfecho semelhante ao de Saigon ou Cabul é cada vez mais palpável, minando as ilusões de um compromisso inabalável.

Essa percepção reverbera globalmente, influenciando decisões como a do Brasil. A escolha da FAB pelo Gripen sueco, em detrimento do F/A-18 americano, não foi apenas técnica, mas também estratégica. Segundo o general brasileiro, o histórico dos EUA – da Polônia ao Afeganistão – pesou na decisão, evidenciando a busca por autonomia e a rejeição de uma dependência que poderia se mostrar arriscada. A Suécia, neutra na época da escolha e confiável em transferências tecnológicas, representava uma alternativa segura diante de um parceiro que, repetidamente, priorizava seus próprios interesses em detrimento da lealdade.

Uma lição para o futuro

O padrão de abandono americano – seja na Polônia entregue a Stalin, no Vietnã do Sul perdido para o comunismo, no Iraque vulnerável ao terrorismo ou no Afeganistão reconquistado pelo Talibã – revela uma constante: na geopolítica dos EUA, a lealdade é subordinada à conveniência.

A Ucrânia, enfrentando a Rússia com apoio americano limitado, é o mais novo capítulo dessa história. Para nações como o Brasil, a mensagem é clara: confiar exclusivamente nos Estados Unidos é jogar um dado viciado. Diversificar parcerias e fortalecer a soberania são imperativos em um mundo onde promessas de Washington frequentemente se dissipam quando o custo sobe.

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