Para explicar o “cangaço digital” é preciso ressuscitar o repórter de polícia

Criminosos evoluíram inventando novos golpes e a polícia, novas técnicas de investigação Foto: EBC

Carlos Wagner
Blog Histórias Mal Contadas
14 Março 2025

“Não mate o mensageiro”. Essa é uma antiga frase, repetida por jornalistas para alertar que não se deve culpar quem traz notícias ruins. Cito-a na abertura da nossa conversa porque considero que se encaixa como uma luva para explicar a trajetória de um personagem que desapareceu das redações dos jornais.

Lembrei-me deste personagem por conta de uma discreta manchete publicada no canto da capa dos jornais na última quarta-feira (12/03). Em resumo, a matéria dizia que as fraudes bancárias digitais e os golpes por cartão atingiram a significativa soma de R$ 10,1 bilhões em 2024, segundo a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).

A maioria das vítimas (36%) são pessoas acima de 60 anos. Tenho 75 anos e recebo, por semana, cinco a seis ligações de golpistas. Os golpes mais comuns são a troca do cartão bancário por quadrilheiros nas salas dos caixas eletrônicos (44%), as falsas centrais de cartões, que ligam para as vítimas alegando tratar-se de uma emergência (32%), e, por último, pedidos de dinheiro pelo WhatsApp, usando a identidade de uma pessoa conhecida (31%).

Consultado pela imprensa a respeito do assunto, o diretor-geral da Polícia Federal (PF), delegado Andrei Passos Rodrigues, assim descreveu a situação: “É o cangaço digital”. O delegado referiu-se ao fato de que, nos anos 2000, existiam quadrilhas que foram apelidadas pela imprensa de “Novo Cangaço”, porque cercavam pequenas cidades do interior e roubavam as agências bancárias, imitando o modo de agir dos cangaceiros que atormentaram sobretudo os sertões nordestinos no início do século passado. O mais famoso foi o bando de Lampião (1898-1938) e da sua companheira Maria Bonita (1911-1938), que nos anos 30 atacavam cidades no interior dos estados do Nordeste e roubavam e matavam quem resistisse. Acrescento que a respeito de Lampião há uma enorme abundância de informações disponíveis na internet.

Vamos à história sobre o personagem desaparecido das redações. Estou falando do repórter que fazia a cobertura dos assuntos policiais, também conhecido por “repórter de polícia”, um setorista que sabia quem era quem no submundo do crime e como as coisas aconteciam dentro das quatro paredes das delegacias de polícia e dos destacamentos da polícia militar.

O auge da atuação deste repórter foi nas décadas de 50 e 60. Eram os tempos das máquinas de escrever nas redações e a principal fonte de renda dos jornais era a venda avulsa dos exemplares por jornaleiros espalhados pelas esquinas das cidades, que gritavam a principal manchete para atrair os leitores. Na maioria das vezes, a manchete nascia da cobertura de crimes feita pelo repórter de polícia.

Na época, os policiais eram apelidados de “cana” e os criminosos, de “meliantes”. Naqueles anos, era comum ouvir as pessoas falarem que “se torcerem os jornais, sai sangue”. Nas décadas seguintes, o Brasil deixou de ser um país rural e se tornou urbano. A economia cresceu e se diversificou. Houve uma atualização tecnológica na indústria, no comércio e no setor de prestação de serviços. A imprensa acompanhou as mudanças.

Os grandes jornais trataram de se livrar da fama de “se torcer, sai sangue” e empurraram a cobertura policial para publicações populares, que optaram por uma abordagem sensacionalista dos assuntos criminais. Dentro dessa nova realidade, os grandes jornais mudaram seu foco para assuntos econômicos, políticos e outros. Portanto, não precisavam mais do repórter de polícia. Ainda mais depois que a venda avulsa foi substituída pelas assinaturas. O que significou que não dependiam mais de uma manchete chamativa para atrair o leitor.

O jornal já estava vendido antecipadamente. O que escrevi, eu não aprendi em um trabalho acadêmico. Comecei a trabalhar em jornal pelo setor de circulação, onde acompanhava a rodagem dos exemplares e a sua distribuição nas bancas de revista e nas casas dos assinantes. Em 1979, quando iniciei a minha carreira nas redações, ainda encontrei antigos repórteres de polícia que tinham se adaptado à nova realidade dos grandes jornais. Com eles, aprendi muito sobre investigação jornalística, texto e a técnica de entrevistar.

O que resultou da extinção do repórter de polícia nas grandes redações? Uma baita confusão, porque o crime se adaptou às mudanças da sociedade e a investigação policial também acompanhou a evolução. Só para dar uma ideia da evolução do crime no Brasil. Na década de 50, o criminoso mais habilidoso era o “batedor de carteira”. Ele retirava sutilmente a carteira do bolso da vítima sem que ela percebesse. Lembro-me de ter lido matérias sobre como era ensinada a profissão para os candidatos a “batedor de carteira”.

Da mesma época eram os ladrões especializados no “golpe do bilhete premiado”, que consistia em convencer a vítima a comprar um bilhete de loteria que supostamente tinha sido sorteado. Este golpe conseguiu sobreviver até os dias atuais porque se adaptou às novas tecnologias. Os crimes do “colarinho branco”, como são chamados os desvios de dinheiro cometidos por empresários e autoridades públicas, também evoluíram. Naqueles anos também existiu a turma do “cano”, como eram chamadas as quadrilhas de grande poder de fogo, que assaltavam bancos e carros-fortes.

Estas quadrilhas tiveram a sua época de ouro na primeira década dos anos 2000. Fiz reportagem com um símbolo desse tipo de crime no Sul do Brasil, João Carlos dos Santos, o Seco. Em 2006, quando foi preso, Seco era um homem de 35 anos que inventara uma técnica nova para roubar um carro-forte. Protegido por colchões amarrados ao redor do corpo e por um capacete de motoqueiro, colidia um caminhão contra o carro-forte, que era jogado para fora da estrada e atacado pela quadrilha armada com fuzis carregados com munição que perfurava a blindagem.

Foi condenado a uma pena de 205 anos e atualmente está preso na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (PASC), na Região Metropolitana de Porto Alegre (RS). O modelo de crime organizado que foi erguido no Brasil seguiu o implantado nos anos 50 pelos banqueiros do jogo do bicho do Rio de Janeiro. As grandes organizações criminosas brasileiras, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio, seguem o modelo da estrutura montada pelos bicheiros cariocas.

Agora vamos falar do atual estágio do crime no Brasil. Os grandes assaltantes de carros-fortes e bancos foram substituídos por adolescentes operando computadores que formaram o tal “cangaço digital”, como foi apelido pelo diretor-geral da PF. E as grandes redações, por não terem mais o repórter de polícia, que sabia das coisas do submundo porque tinha fontes no meio policial e até entre criminosos, ficaram dependentes das informações oficiais. Essa dependência coloca em risco o bom jornalismo.

É possível reverter a situação? Vou mais longe para responder à pergunta. Se a situação não for revertida os grandes jornais começarão a ter problemas com os seus assinantes, que exigem ser melhor informados do que acontece nas delegacias e entre as organizações criminosas. Estes assuntos não são uma exceção no cotidiano dos leitores.

Muito pelo contrário. São uma rotina, porque não passa um dia sem que eles recebam uma ligação de alguém tentando dar um golpe. Lembro do seguinte. Na época dos jornais vendidos nas esquinas não foram os repórteres de polícia que popularizaram a crença de que “sairia sangue” se fossem espremidas as páginas dos periódicos. Eles apenas faziam as reportagens que os leitores da época gostavam de ler.

Como disse no início da nossa conversa, eram os mensageiros. Atualmente, o público gosta de ler reportagens que explicam como funciona a “indústria do crime”, que todos os dias inventa uma maneira nova de furtar e roubar as suas vítimas. Também querem saber o que acontece entre as quatro paredes de uma delegacia de polícia civil e nas guarnições da polícia militar.

Como os diretores das redações vão resolver esse problema?

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