Desordenamento internacional e defesa nacional
Num mundo em que volta a prevalecer o ‘hard power’ nas relações entre Estados, governo, Forças Armadas e sociedade, todos precisam atuar em conjunto
José Luiz Machado e Costa*
O desordenamento no ambiente estratégico mundial, acentuado pelas guerras na Ucrânia e em Gaza, torna-se ainda mais imprevisível diante de atitudes unilaterais que abalam princípios fundamentais do sistema internacional, colocando em xeque preceitos como os de integridade territorial e soberania.
Ameaças de anexação, ocupação territorial e promessas de limpeza étnica, atitudes que menosprezam tratados e normas básicas de convivência entre Estados, geram incerteza porque indicam uma inquietante mudança de paradigma. Trazem de volta a ideia, que parecia superada, do “estado de natureza”, tal como concebida por Thomas Hobbes, quando regras deixam de existir e passa a predominar tão somente a lei do mais forte.
Tal circunstância deve servir como um alerta àqueles que se ocupam do planejamento da Defesa no Brasil. Os militares brasileiros nunca se furtaram de expressar receio diante do risco de ingerência na Amazônia, o que muitas vezes chegou a ser recebido com certo sarcasmo por setores da sociedade.
A Constituição estipula a defesa externa como a atividade-fim das Forças Armadas. Prevê, igualmente, atividades complementares, como as de apoio à segurança pública e à defesa civil, o que abre amplo leque de tarefas para as quais não foram concebidas. Esse desvio de função, recorrente no Brasil, compromete a capacidade operacional das Forças. É, assim, de importância fundamental, para que possa bem cumprir sua missão, que o sistema nacional de defesa passe por uma reestruturação conceitual, material e orçamentária, a fim de habilitá-lo a fazer frente aos desafios do atual ambiente estratégico.
Para tanto, seria essencial repensar as linhas mestras da Defesa brasileira, que devem deixar de ser concebidas pelas Forças e passar a ser delineadas no nível mais alto do governo, com base em ampla reflexão multidisciplinar e livre de interesses corporativos.
Esse esforço deve envolver, além dos estamentos militar e diplomático, também a academia, a indústria e, necessariamente, o Parlamento. Nesse sentido, em que pesem os progressos obtidos desde a adoção da primeira Política de Defesa Nacional, em 1996, há ainda um caminho a percorrer, em especial no que se refere à interação entre formuladores civis e militares.
Que alternativas teria o País caso viesse a se materializar uma ameaça real que demande resposta militar? A primeira linha de ação seria, naturalmente, a via diplomática. Utilizar o sólido capital da política exterior brasileira na tentativa de buscar a solução do impasse pela persuasão e pelo convencimento. Esgotados os recursos da diplomacia, a segunda alternativa seria a de resistir à ingerência mediante o emprego do poder militar.
Não conviria a nenhum país, por mais poder que tenha, envolver-se num conflito armado com o Brasil. Por sua dimensão continental, o Brasil possui uma profundidade estratégica que coloca obstáculos logísticos consideráveis ao invasor. No caso da Amazônia, além de todas as dificuldades inerentes à selva equatorial, teria de enfrentar a resistência de tropas aguerridas, especializadas nos procedimentos da chamada “guerra de resistência nacional”.
Militares brasileiros já vêm, há décadas, considerando a hipótese de ter de enfrentar um inimigo mais forte na defesa da região, havendo elaborado formas de manobra estratégica indireta, tais como, por exemplo, a “manobra pela lassidão”, que visa a manter uma conflagração crônica, de baixa intensidade, adaptada ao terreno e causando desgaste material e moral no inimigo.
É possível, dessa forma, apesar da assimetria de forças, elevar a níveis inaceitáveis ao agressor a relação custo-benefício de uma ação militar em território brasileiro. Mas, para tanto, é necessário mais preparo e este seria um bom momento para tais considerações. Em lugar de grandes contingentes medíocres, pensar em Forças ágeis, bem adestradas e equipadas, dotadas de grande mobilidade e capazes de atuar conjuntamente em qualquer cenário.
O planejamento deveria ser multidisciplinar e sistêmico, e não uma colcha de retalhos, em que cada Força define individualmente suas diretrizes. No entanto, diante da ausência de orientações claras provenientes do poder político, não lhes resta outra alternativa a não ser a de seguirem elaborando, elas próprias, seus planos de ação.
Existem hoje no País centros acadêmicos reconhecidos, com especialistas civis dedicados aos temas de Defesa e de segurança internacional, porém praticamente sem acesso aos debates das instâncias decisórias. Cabe ao governo promover cada vez mais esse entrosamento, assim como ao Congresso contar com assessoramento civil capacitado em matéria de defesa, como ocorre nos países mais desenvolvidos.
Tais reflexões importam tanto à luz de um quadro internacional mais incerto como das inúmeras lições da História. Num mundo em que volta a prevalecer o hard power nas relações entre Estados, governo, Forças Armadas e sociedade, todos precisam atuar em conjunto a fim de indicar, de maneira clara, que eventuais pressões militares sobre o País não teriam custo zero.
* Embaixador, foi assessor especial do ministro da Defesa no governo Fernando Henrique Cardoso
ESTADÃO – Edição: Montedo.com
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