Brasil tem de se preparar para a nova versão da lei da selva
Forças Armadas brasileiras não estão aptas a sustentar uma guerra moderna. Não dispomos da efetiva capacidade de ação conjunta
Gunther Rudzit e Leonardo Trevisan*
O presidente Vladmir Putin é, quase sempre, surpreendente. No Fórum Ártico Internacional, em Murmansk, na semana passada, ele afirmou que a competição geopolítica na região se intensificou. Citou o interesse do presidente Donald Trump na Groenlândia, sem qualquer tom de crítica. Para ele, esse plano tinha raízes históricas, o que é verdade. Desde Harry Truman os Estados Unidos querem comprar, e a Dinamarca resiste. O problema maior está na conclusão do discurso de Putin: a Groenlândia era assunto específico dos dois países e, portanto, “não tem nada a ver conosco”. A declaração é plena de interesses russos. O primeiro subtexto dela é a efetiva anexação de partes da Ucrânia por Moscou.
As ameaças de Trump ao Panamá e à Groenlândia devem ser levadas a sério. Não são apenas tática de negociação, especialmente após essa validação russa. A ordem internacional liberal está em desintegração, e o novo desenho dela é o que Ian Bremmer tem chamado de “lei da selva”: o mais forte se impõe, e os mais fracos se conformam.
Diante dessa realidade, de possível ciclo de vitória da escola hiper-realista, sobra a questão: qual a capacidade do Brasil de conseguir defender seus interesses?
Apesar das evidências de que hoje nenhum país tem capacidade militar convencional (fora as orçamentárias) para se contrapor aos Estados Unidos, exceção talvez de China e Rússia, a guerra na Ucrânia mostrou que forças armadas menores, bem municiadas, em especial de inteligência militar, podem resistir e até enfrentar oponentes maiores.
Mas os ucranianos só conseguiram essa façanha após profunda transformação na sua estrutura militar. Sem dúvida, o apoio americano e britânico foi fundamental, mas a base para alcançar a era da guerra digitalizada foi a metamorfose da mentalidade de forças singulares para a lógica de um único projeto de força. Para tanto, a transformação de um Estado-Maior Conjunto (EMC) como planejador central das capacidades, doutrinas e estratégias necessária é fundamental. Somente um EMC pode fazer mais fácil e rapidamente com que doutrinas e concepções antigas sejam mudadas, como o uso dos drones, em especial os aquáticos, que permitiu a um país sem Marinha afundar quase metade da frota russa do Mar Negro.
As vitórias ucranianas não se deram somente pelas capacidades no campo de batalha. Foram em grande parte devidas às estruturas de comando, controle e inteligência — algo conhecido no meio militar como consciência situacional, que significa o domínio de diferentes habilidades de entender e usar informações sobre o campo de batalha para tomar decisões. Essas habilidades envolvem reunir e analisar dados sobre ambiente, clima, perfil de forças e outros fatores, em especial de inteligência militar. Foi o corte desses fatores fornecidos pelos Estados Unidos que fez Kiev ter de aceitar negociar um cessar-fogo com a Rússia.
As Forças Armadas brasileiras não estão aptas a sustentar uma guerra moderna. Não dispomos da efetiva capacidade de ação conjunta, já que o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) não tem as mesmas atribuições hierárquicas de seus equivalentes das melhores Forças Armadas do mundo. O Brasil não conta com base industrial de defesa própria. Somos dependentes de equipamentos dos Estados Unidos e de aliados. Ainda não temos a capacidade de consciência situacional própria, o que dificultaria até mesmo saber o que atacar.
Isso exige mudanças profundas. Se a classe política não tomar a iniciativa de fazer tais alterações, como aconteceu em todos os países desenvolvidos e democráticos, talvez tenhamos de fazê-lo após uma derrota militar. Isso custará muito mais caro, tanto em vidas quanto em interesses nacionais. Sem esquecer, obviamente, o custo financeiro de colocar a tranca depois da porta arrombada.
*Professores de relações internacionais da ESPM
O GLOBO – Edição: Montedo.com
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