A Cultura do Crime: A Narcocultura e Ideologia de Facção

Erich Nelson Cardoso Hoffmann [1]

Este artigo propõe uma análise crítica das multifacetadas manifestações da cultura do crime no Brasil, um fenômeno em ascensão que demanda urgente atenção. Ao explorar as complexidades inerentes a expressões como narcocultura, ideologia de facção e suas variações, buscamos iluminar o impacto profundo que essa realidade exerce sobre a sociedade brasileira. Ao lançar luz sobre a cultura do crime, convidamos a uma reflexão crítica e a um debate honesto, livre de preconceitos, que nos impulsione a um enfrentamento eficaz dos desafios da segurança pública no Brasil.

A narcocultura pode ser definida como um fenômeno sociocultural complexo que engloba um conjunto de valores, práticas e representações sociais que celebram e romantizam o narcotráfico, bem como sua violência e poder econômico. Essa cultura se manifesta em diversas maneiras, como música, cinema, televisão e literatura entre outras. Contribui para a formação de uma identidade que valoriza a riqueza fácil, a bandidolatria e a transgressão das leis.

É importante destacar que a narcocultura não se limita ao consumo de drogas ou à glorificação de traficantes, mas também envolve a criação de uma “narcoestética” que idealiza o estilo de vida associado ao narcotráfico. Essa estética se reflete em símbolos, rituais e comportamentos.

Além disso, a narcocultura exerce um impacto significativo nas comunidades afetadas pelo narcotráfico, onde a violência e a corrupção se tornam elementos arraigados. Essa cultura do crime leva à normalização da violência e à desvalorização da vida, especialmente entre as gerações mais jovens, que são mais suscetíveis à influência das representações midiáticas.

Em resumo, a narcocultura é um fenômeno multifacetado que transcende as fronteiras do crime, inserindo-se no campo das representações culturais que moldam o comportamento social e a identidade de uma parcela significativa da população.

Originada em regiões fortemente marcadas pelo narcotráfico, como o México, a narcocultura é um fenômeno consolidado na América Latina e está presente em estudos acadêmicos[2]. A definição de narcocultura é construída a partir de diversas perspectivas, que se complementam para fornecer uma compreensão abrangente desse fenômeno complexo. Embora traga algumas limitações semânticas, para empregarmos na realidade brasileira, assemelhasse ao conjunto de valores deturpados, costumes e expressões pseudoartísticas que se manifestam em diversos formatos também no Brasil.

A expressão ideologia de facção foi cunhada pelo ex-Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Coronel Mário Sérgio, disponível em algumas de suas entrevistas:

  • O criminoso daquela época era um criminoso que se organizava até em bandos e quadrilhas, mas o crime não era coletivizado, coletivizado em facções de tal maneira a muitas vezes envolver a população que, subjugada, passou a fazer a vontade do criminoso. O fuzil, depois que entrou para a cidade do Rio de Janeiro e foi parar na mão do traficante, fez a diferença. Porque ele acabou promovendo uma vontade de guerra que evoluiu para um ethos de guerra e promoveu algo que eu costumo chamar de uma ideologia de facção. É um conjunto de valores, de valores de dominação e de ódio que envolve esses elementos e promove uma identidade coletiva entre um grupo de uma comunidade com outro de uma comunidade completamente diferente. Então, é preciso retirar esses fuzis e é preciso desterritorializar esse traficante, porque é a partir dessas ações que nós vamos desconstruir essa ideologia de facção [3]

O fenômeno ideologia de facção ainda carece de estudos e falta definirmos corpo teórico próprio. Sendo assim, também pretende-se com este texto contribuir com tal construção.

As facções criminosas, longe de serem meros agrupamentos de delinquentes, representam um sintoma agudo das falhas sistêmicas nas políticas de segurança pública ideologicamente contaminadas. Sua gênese e expansão estão intrinsecamente ligadas a um projeto de poder que, por sua natureza controversa, e complexidade exige um artigo apartado.

A palavra “facção” sofreu uma evolução semântica significativa ao longo dos séculos, moldada pelas transformações sociais e políticas. A partir da segunda metade do século XX, “facção” passou a ser associada a movimentos mais radicais, como os grupos guerrilheiros esquerdistas. No entanto, foi na década de 1990 que o termo adquiriu uma conotação particularmente perversa no Brasil: organizações criminosas, inicialmente concentradas nos presídios, que se expandiram para as ruas, impondo um regime de terror e controle de territórios por meio da violência extrema e do tráfico de drogas.

Nesse contexto, do crescimento destas facções é que surgem também os Black Spots[4], que representam uma grave ameaça ao Estado brasileiro. São enclaves de micro-soberanias, onde criminosos impõem suas próprias regras, corrompem autoridades e exercem influência política, desafiando o estado de direito. O assistencialismo pervertido praticado por esses criminosos, outra característica das facções, como forma de cooptar a população e legitimar seu poder, agrava ainda mais a complexidade do problema e esconde a violência, a opressão e o terror promovidos pelos criminosos.

A ideologia, por sua vez, é um conceito multifacetado e historicamente turvo, representa um conjunto de ideias, valores e crenças que moldam a visão de mundo de indivíduos e grupos sociais. Originada na Grécia Antiga como o “estudo das ideias”, a ideologia ganhou contornos mais políticos durante o Iluminismo e a Revolução Francesa, utilizada como ferramenta de manipulação e controle das massas. Ao longo da história, diversas ideologias emergiram, cada uma com suas próprias propostas e promessas de um futuro ideal. No entanto, é essencial compreender que, por trás da fachada de ideias inspiradoras, muitas ideologias servem a propósitos mais obscuros. Quando instrumentalizadas por grupos ou indivíduos com intenções totalitárias, elas conduzem ao fanatismo, extremismo e à imposição de uma única visão de mundo.

Segundo o filósofo Eric Voegelin [5], a ideologia representa uma espécie de “doença da alma”, uma revolta contra a ordem transcendente, é uma tentativa de construir um mundo utópico. As ideologias, de acordo com Voegelin, possuem características comuns que as tornam perigosas:

  • Redução da realidade: As ideologias simplificam a complexidade da realidade social, oferecendo uma visão distorcida e parcial dos fatos.
  • Negação da transcendência: Elas negam a existência de uma ordem superior e buscam criar uma nova ordem imposta e opressiva.
  • Crença em utopias: Ideologias vendem a ilusão de um futuro perfeito, baseada em um conhecimento absoluto e questionável.
  • Manipulação e controle: As ideologias constroem narrativas para controlar mentes e comportamentos, impondo a sua visão de mundo.

Dessa forma, do ponto de vista gramatical, estamos diante de uma espécie de tautologia macabra, já que ambos os termos remetem a danos sociais sectários e ao terror do tribalismo. No entanto, este artigo não se propõe a analisar a gramática, embora uma das consequências do problema aqui evidenciado seja também a corrupção da língua portuguesa, elemento cultural fundamental para a coesão de uma população. Sem perder de vista que essa deterioração linguística serve aos interesses daqueles que enxergam na divisão social uma estratégia de poder.

Nessa perspectiva, observamos emergir no país um prisma distorcido que absorve e amplifica o imaginário construído por apoiadores de criminosos, cujos objetivos primordiais residem na obtenção de ganhos tanto nas dimensões físicas quanto na humana e na informacional. Servindo como excelente munição para múltiplas ameaças híbridas de interesse da segurança e ordem pública (AHISOP)[6].

Esse fenômeno cultural engendra uma inversão de valores, fomentando a construção de uma sociedade caótica, onde a glorificação do ilícito e a ostentação do poder se sobrepõem aos princípios morais e legais. Em essência, a cultura do crime opera como um mecanismo de projeção de discursos que visam legitimar e promover criminosos e o que eles representam.

É uma cultura intrinsecamente ligada à “cultura da mídia”, opera como um vetor de narrativas que moldam imaginários e fomentam o reconhecimento de práticas ilícitas. A indústria cultural, ao celebrar e exaltar este tipo de cultura corrompida como um fenômeno popular, contribui para a construção de uma estética “criminal”, que exerce um fascínio perverso sobre o público. Através de narrativas, imagens e símbolos, o mundo do crime é romantizado e glorificado, mascarando a violência e a ilegalidade que o sustentam. Essa representação midiática, em vez de denunciar os males do crime, acaba por normalizá-lo e até mesmo incentivá-lo, perpetuando um ciclo de violência, corrupção e caos.

Também está intrinsecamente ligada à linguagem, manifesta-se como um complexo sistema de códigos que se infiltra no cotidiano, naturalizando valores e práticas ilícitas. Essa linguagem, ao mesmo tempo que reflete as dualidades morais presentes na sociedade, exerce um atrativo nefasto sobre a indústria cultural, que a explora e a amplifica. A produção cultural que exalta o mundo do crime, com suas narrativas e estéticas sedutoras, exerce um poder de atração que transcende a mera representação, moldando imaginários e influenciando comportamentos. Por isso tem uma aparência de cultura popular, ou até mesmo de uma cultura espontânea. Porém é uma cultura imposta e incentivada por interesses escusos.

A configuração cultural em questão assume um caráter dominante, não em virtude de sua gênese orgânica ou origem popular, mas em decorrência de sua articulação com grupos de poder, o que lhe permite exercer significativa influência. Essa influência se materializa tanto através de mecanismos sutis, como a veiculação midiática, quanto por meio de práticas coercitivas diretas, a exemplo da subjugação da população economicamente desfavorecida por atores criminosos.

Para além dos efeitos devastadores do poder das organizações criminosas na sociedade, o objetivo desse texto é explorar a dimensão cultural intrínseca à produção, circulação, comércio e consumo de drogas e seus múltiplos crimes conexos – exploração sexual infantil, assassinatos, violência doméstica, extorsão, entre outros -, um aspecto frequentemente negligenciado pelos poderes públicos, universidades, mídia e sociedade em geral. A cultura do crime, ao construir redes de sociabilidade e forjar práticas sociais que geram laços identitários, exerce um impacto significativo na sociedade e prejudica a Segurança Pública. Ao reconhecer a relevância dessa produção cultural, abrimos um novo viés de leitura e interpretação do problema das organizações criminosas. Em suma, ao denunciar a cultura do crime, buscamos incentivar uma produção cultural benéfica e autêntica. Mesmo que trate do universo criminal, desde que não esteja ligada aos problemas citados, essa expressão popular legítima deve promover a elevação do indivíduo e, consequentemente, da sociedade.


[1] Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Doutor em Ciências Policiais de Segurança e Ordem

Pública, Subcomandante do 21º BPMI/I

[2] Em simples pesquisa no google acadêmico, ao pesquisar “narcocultura” e “narco cultura” chega-se a 580 resultados. Em 04. Abr.25

[3] Disponível em: < https://extra.globo.com/casos-de-policia/o-fuzil-cria-valores-do-odio-diz-comandante-da-pm-377999.html >. Acesso em: 31 mai. 2024

[4] Black Spots se referem a áreas dentro de um Estado onde o governo formal não exerce controle ou autoridade. São regiões caracterizadas pela ausência de lei e ordem, serviços públicos precários e presença de grupos armados ilegais.

[5] Na série História das Ideias Políticas, Eric Voegelin aprofunda a análise sobre a natureza e os perigos das ideologias e traça um panorama histórico e filosófico das principais ideologias que moldaram a história da humanidade, desde a antiguidade até o século XX.

[6] As AHISOP buscam vulnerabilidades, a fim de paralisar, minar, corromper, depreciar, desestabilizar ou lesar policiais e suas instituições, afetando a vontade deles de enfrentar o crime e proteger a população, alterando-lhes a percepção da realidade, ou impondo-lhes sérias restrições; ou ainda, em ações externas, degradar e subverter a segurança e ordem pública. As AHISOP combinam uma ampla gama de ações cinéticas e não cinéticas, flexíveis e adaptáveis, que exigem dos policiais capacidade cognitiva própria para identificá-las e enfrentá-las, e forças específicas para o aumento da resiliência e resposta adequada nas dimensões física, informacional e humana. – Conceito desenvolvido pelo autor.

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