Leonam Guimarães
Pesquisador na Área Nuclear
Maio 2025
A usina nuclear Angra 3 permanece como um dos mais emblemáticos projetos inconclusos da infraestrutura energética brasileira. Embora sua relevância para o setor elétrico seja frequentemente destacada, há um aspecto menos visível, mas estrategicamente relevante: o impacto direto e indireto que sua conclusão exerce sobre o Programa Nuclear da Marinha (PNM) e o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB). Este artigo analisa como a finalização de Angra 3 representa uma condição favorável — embora não suficiente — à consolidação da base industrial, tecnológica e institucional necessária para o sucesso da propulsão nuclear naval brasileira.
Introdução
A energia nuclear brasileira não se limita à geração elétrica. Desde a década de 1970, o Brasil desenvolve um programa nuclear de caráter dual, civil e militar, sob o princípio do uso pacífico da tecnologia, em conformidade com o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), do qual é signatário com salvaguardas aplicadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e pela Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). A Marinha do Brasil, como protagonista do programa nuclear nacional voltado à defesa, conduz o desenvolvimento de um reator para propulsão naval — o coração do futuro submarino nuclear brasileiro (SN-BR). Nesse contexto, a finalização de Angra 3 transcende a mera lógica de segurança energética e assume uma dimensão estratégica de suporte à infraestrutura nuclear nacional de que a Marinha também depende.
A Base Industrial e Tecnológica Comum ao Setor Nuclear
A conclusão de Angra 3 representa um impulso decisivo à cadeia produtiva nuclear brasileira, reforçando a continuidade de um ecossistema de fornecedores industriais, centros de pesquisa, mão de obra qualificada e capacidade de engenharia especializada. Esse ecossistema é essencial não apenas para o setor elétrico, mas também para o projeto naval. Os sistemas de conversão de energia, circuitos primários e secundários, instrumentação e controle, blindagens, trocadores de calor e outros componentes críticos são, em sua maioria, desenvolvidos por fornecedores nacionais que atuam tanto para a Eletronuclear quanto para o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP). Ao manter viva essa base industrial, Angra 3 contribui para a sustentabilidade técnica e econômica de programas estratégicos como o do submarino nuclear brasileiro.
Sinergias Institucionais entre o Setor Civil e o Setor Naval
A interdependência entre a Eletronuclear e a Marinha se expressa também em termos institucionais. Ambas as entidades estão sujeitas ao mesmo marco regulatório — particularmente às normas da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) — e partilham desafios comuns no licenciamento, na proteção física, na segurança operacional e na gestão do conhecimento especializado. A operação de Angra 3, quando concluída, ampliará a capacidade do país de formar operadores, engenheiros e técnicos com experiência prática em reatores de potência, parte dos quais poderá ser integrada à estrutura da Marinha, inclusive para o Laboratório de Geração Núcleo-Elétrica (LABGENE). Além disso, a consolidação de um programa civil bem-sucedido fortalece a narrativa brasileira de que o uso da tecnologia nuclear se dá sob finalidades pacíficas, inclusive no domínio da defesa.
Percepção Pública e Legitimidade Política da Energia Nuclear
A visibilidade de Angra 3 como projeto de interesse nacional tem impactos importantes na percepção pública sobre a energia nuclear. Seu sucesso serviria para reduzir o estigma histórico associado à tecnologia, frequentemente confundida com armamentos, e reforçaria o entendimento de que o Brasil é um “usuário responsável” da energia nuclear. Este ambiente de confiança institucional é fundamental para a aceitação social e política do programa da Marinha, inclusive no Congresso Nacional. A credibilidade internacional do país também se beneficia de demonstrações concretas de governança e capacidade de execução em projetos nucleares complexos, o que repercute positivamente em foros multilaterais e nas interações com organismos de controle como a AIEA.
Segurança Institucional e Continuidade de Programas Sensíveis
A postergação indefinida de Angra 3 gera instabilidade não apenas no setor elétrico, mas em toda a arquitetura institucional da política nuclear brasileira. Projetos paralisados comprometem a confiança de fornecedores, investidores e organismos multilaterais na capacidade do país de executar programas nucleares com responsabilidade e consistência. A continuidade de Angra 3 é, portanto, também um indicador de estabilidade institucional e de compromisso do Estado brasileiro com seus compromissos contratuais, regulatórios e estratégicos. Isso é particularmente relevante no atual contexto de negociação com a AIEA sobre a aplicação de salvaguardas diferenciadas ao combustível do reator de propulsão naval.
Formação de Competências e Retenção de Talentos
Angra 3 é também um projeto formador. Sua conclusão viabilizará a ampliação do parque gerador brasileiro com a incorporação de uma usina nuclear de terceira geração, operada com tecnologia avançada e sob padrões internacionais de segurança. Isso proporcionará aos engenheiros, operadores e técnicos brasileiros a oportunidade de adquirir e consolidar competências críticas, muitas das quais aplicáveis diretamente à operação de sistemas navais de propulsão nuclear. A manutenção de uma infraestrutura civil de grande porte — que inclui não apenas Angra, mas o RMB e a INB — é decisiva para impedir a dispersão de talentos e o esvaziamento de capacidades estratégicas de engenharia nuclear.
Conclusão
Embora a Marinha do Brasil não esteja formalmente envolvida na gestão da usina Angra 3, é inegável que sua conclusão interessa diretamente à sustentabilidade do Programa Nuclear da Marinha. O fortalecimento da cadeia produtiva nuclear, a preservação de competências críticas, a credibilidade institucional perante organismos reguladores e multilaterais, e a construção de uma cultura pública favorável ao uso pacífico da energia nuclear são elementos que convergem na direção de uma estratégia nacional integrada. Angra 3, portanto, deve ser vista não apenas como um projeto de geração elétrica, mas como parte do alicerce técnico e simbólico da soberania nuclear brasileira — civil e militar.
Referências
Brasil. Comissão Nacional de Energia Nuclear. Resolução CNEN NN 1.16 – Requisitos de Licenciamento de Instalações Nucleares. Brasília, 2020.
INPO – Institute of Nuclear Power Operations. Principles for Excellence in Nuclear Operations. Atlanta, GA, 2021.
Marinha do Brasil. Programa Nuclear da Marinha – Histórico e Perspectivas. CTMSP, 2022.
Eletronuclear. Relatório de Administração 2023. Rio de Janeiro, 2024.
WANO – World Association of Nuclear Operators. Performance Objectives and Criteria. Londres, 2020.
O post Angra 3 e a Estratégia Nuclear da Marinha do Brasil: Interdependências e Justificativas para sua Conclusão apareceu primeiro em DefesaNet.