Escoteiros: alertas para servir. Sempre!

Flávio César Montebello Fabri
Colaborador DefesaNet

Em correspondências, mensagens ou e-mails enviados por escoteiros (ou adultos que fazem parte desse Movimento, os chamados escotistas) é extremamente comum, ao encerrar o texto, surgir a sigla SAPS. Algumas pessoas que não possuem familiaridade com esse tipo de atividade, talvez desconheçam o significado. Trata-se do acrônimo de “Sempre Alerta Para Servir”. Há diversas razões (e fundamentação histórica) para seu uso.

Antes de se tornar o ícone do Movimento Escoteiro, Baden-Powell foi um militar competente e experiente. Um dos eventos em que participou, particularmente, tornou-se famoso: o cerco à Mafeking. É interessante lembrar o contexto deste fato. O Império Britânico estava envolvido na Guerra dos Bôeres (termo de origem holandesa que significa “fazendeiro”). Na verdade, ocorreram duas guerras: o primeiro conflito, de 1880 a 1881 e o segundo, de 1899 a 1902.

A respeito do primeiro, lemos que:

“A Primeira Guerra dos Bôeres foi o conflito entre a Inglaterra e os colonos de origem neerlandesa, francesa e alemã (chamados de Boers, Afrikaners ou Voortrekkers) na África do Sul, entre os anos de 1880 e 1881. O desencadear da guerra ocorreu devido à anexação por parte da Inglaterra, do território da República do Transvaal, em 1877. As forças boers não aceitaram o fato e atacaram todos os comboios militares ingleses, sendo que em menos de duas semanas, todos os aquartelamentos britânicos estavam cercados por forças boers.”

(DANTAS, Tiago. Primeira Guerra dos Bôeres; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/primeira-guerra-dos-boeres.htm.)

Sobre o segundo, que ocorreu pouco tempo depois (sendo mais prolongado), duas pessoas, com experiências distintas, tornaram-se protagonistas, cada qual a sua forma, de atos que ficaram marcados de forma indelével na história mundial (posteriormente). Falemos de um, em uma localidade específica, por enquanto. Robert Baden-Powell e a cidade de Mafeking (que foi sitiada pelos bôeres).

Imagem 1 – Os Cadetes de Mafeking: os ancestrais dos escoteiros. Ao lado direito, o Capitão Charles Goodyear e seu filho Warner (fonte: Simplescouting).

Ainda hoje, em Mafeking (aliás, Mafikeng ou ainda Mahikeng, cujo nome significa “lugar das rochas”, situado a aproximadamente 260 km de Joanesburgo, África do Sul e próxima da fronteira com Botswana), existe uma tradicional escola, a Hoër School Mafikeng, fundada em 7 de agosto de 1895 pelo Sr. W. J. Pugh, em um salão público. O Sr. Pugh, nessa época de guerra, criou um “corpo de cadetes” em conexão com o estabelecimento de ensino. Seus integrantes receberam treinamento do Sr. G. P. Reale (que era carcereiro, porém, anteriormente, também havia sido integrante do Exército). Assim, participavam de marchas, exercícios, jogos que envolviam reconhecimento, entre várias outras atividades. A literatura de James Fenimore Cooper (que entre outras obras, é autor de O Último dos Moicanos) foi útil para inspirar alguns dos jogos.

Conforme pode ser verificado em artigos publicados no sítio eletrônico Scout Wiki, é errôneo citar que Baden-Powell criou o corpo de cadetes ou, que mesmo, solicitou ao Lorde Edward Cecil para formá-los. De qualquer forma, a partir de 10 de fevereiro de 1900, passou a ter o comando sobre eles. Foi escolhido um líder para ser o “sargento-mor” daquele grupo, um jovem chamado Warner Frances Andrew Goodyear, que contava então com 12 anos. Curiosamente seu pai, o Capitão Charles Goodyear, foi um dos primeiros moradores de Mafeking e seu primeiro prefeito (o termo utilizado para o cargo, à época, era “presidente”).

Contando com Warner, o corpo de cadetes possuía 38 integrantes. Eles trajavam um uniforme próprio, de cor cáqui, chapéus de abas largas (sendo, de um dos lados, dobrada para cima) ou bonés.

Mafeking foi sitiada pelos Bôeres entre 14 de outubro de 1899 e 16 de maio de 1900. Há muitas controvérsias sobre o “valor militar” da localidade, com alguns autores mencionando ser uma área estratégica, tão como outros declinando de tal percepção. O que é fato: a resistência e vitória causaram uma grande alegria (e alívio) tão como, em um conflito complexo e prolongado, um grande impacto moral positivo à população britânica. Em 31 de maio de 1902, o Tratado de Vereeniging encerrou a luta.

Os integrantes do corpo de cadetes atuaram como mensageiros, vigias, tão como em outras missões onde foram extremamente úteis, como por exemplo, alertando a população de ataques ou bombardeios efetuados pelos bôeres, tão como dando apoio em postos médicos. Quando atuavam como mensageiros, utilizavam burros como meios de transporte. Considerando que o cerco perdurou considerável tempo (o que fez com que a alimentação se tornasse escassa), o meio de locomoção eventualmente acabava tendo outra destinação emergencial e inglória: tornava-se refeição. Assim, bicicletas passaram a ser utilizadas (o que se mostrou mais eficiente, afinal). Mas se havia escassez de alimento, também não foi diferente com outro item: os selos.

Assim, alguns passaram a ser produzidos em Mafeking. O “modelo” para a ilustração dele foi Warner e sua bicicleta. Trata-se de um fato interessante, pois a família real possuía a prerrogativa de estar (estampada) nos selos e, efetivamente, algumas cartas enviadas ao exterior acabaram por ter o jovem líder dos cadetes nela. Warner (que faleceu em 1912, com vinte e cinco anos), sempre esteve na memória de Baden-Powell como um bom exemplo a ser seguido. Ele possuía quatro irmãs, sendo que três delas foram responsáveis por estruturar, durante bom tempo, a Biblioteca Pública de Mafeking.

Por sinal uma, Lorna Goodyear, fundou o primeiro grupo de Guias (Girls Guide, movimento também criado por Baden-Powell, exclusivamente para meninas, sendo tal liderado por sua irmã, Agnes Baden-Powell) da cidade, em 1915.

Imagem 2 – Selo com Warner e sua bicicleta (The OFS Philatelic Magazine)

Desse segundo conflito, lições foram aprendidas. Algumas foram instrumentalizadas rapidamente e outras, serviram de inspiração décadas após. Da experiência, do que foi divulgado e trazendo do que vivenciou em guerra (com as devidas adequações e um propósito tão válido e nobre que até hoje se mantêm), foi criado o Movimento Escoteiro por Robert Stephenson Smyth Baden-Powell. Sugerimos a leitura de breve artigo sobre o início do movimento escoteiro que se encontra disponível no sítio eletrônico dos Escoteiros do Brasil (https://www.escoteiros.org.br/historia/).

Outro inglês, que inicialmente foi um correspondente de guerra tendo atuado também, voluntariamente, em combate (sendo capturado e, com extrema audácia, galgado sua fuga), teve um papel político extremamente relevante tempos após. Winston Churchill (que aos vinte e cinco anos já havia participado de quatro guerras, em três continentes) percorreu praticamente 500 km a pé, após fugir da captura pelos bôeres, não sendo exagero afirmar que, por determinado período, foi o “homem mais procurado da África do Sul”.

O que ele testemunhou e marcou sua percepção (como de diversos outros) era o fato de que um dos exércitos mais poderosos do planeta enfrentava grupos (com muita dificuldade) que atuavam de forma não convencional. Usavam técnicas de guerrilha. Eram os “Kommandos”, que se tratava de uma milícia voluntária. Adequado recordar do conflito de 1658, entre os holandeses da Colônia do Cabo contra os integrantes de grupos étnicos do sudoeste da África (onde após a guerra, todos os homens da Colônia, aptos para combater, foram designados para o serviço militar).

Com o aumento da Colônia, esta foi dividida em distritos, onde foi criado um sistema de “commandos” para atuar em alguma crise que envolvesse segurança, antes que reforços pudessem ser enviados. No final do século XVIII e início do século XIX, reagiram contra a ocupação britânica na Colônia do Cabo. Na (s) Guerra (s) dos Bôeres, ficou evidente sua capacidade de operar de forma extremamente ágil, rápida e eficaz, contra uma forma maior. Assim, quando diversas nações caíam e eram dominadas por forças do Eixo (particularmente na Europa) no início da Segunda Guerra Mundial, foram criados os Commandos (junho de 1940), após a queda da França, tratando-se de contingente militar extremamente bem treinado, especializado, voluntário e apto a atuar em diversos ambientes. Churchill era o primeiro-ministro britânico deste maio de 1940. 

 De qualquer forma, prosseguiremos em relação ao Movimento Escoteiro.

Se os Cadetes de Mafeking (para alguns, os primeiros escoteiros) tratavam-se de jovens que em muito auxiliaram a população daquela localidade, tendo executado (também) serviços auxiliares, como atuar como mensageiros, tais predicados também se mantiveram com seus sucessores, em diversas oportunidades e localidades no decorrer da história. No Brasil não foi diferente.

Era julho de 1932 e começava uma Revolução. A Revolução Constitucionalista de 32. E houve grande mobilização da população e instituições paulistas.

Imagem 3 – Edições dos dias 10 e 11 de julho de 1932, do Jornal O Estado de São Paulo, com anúncio a respeito do movimento que tomava corpo (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo).

Da mesma forma que seus ancestrais (em Mafeking), os escoteiros não permaneceram inertes. Logo no início dessa verdadeira Guerra Civil, no dia 12 de julho de 1932, era amplamente anunciado o apoio dos escoteiros à população civil, em particular à Cruz Vermelha Brasileira, começando por reuniões para definir a forma mais efetiva de fazê-lo. De fato, tal atuação foi tão marcante que o próprio Baden-Powell enviou correspondência os elogiando pelos serviços prestados àquela instituição humanitária (meses após cessarem as hostilidades).

Imagem 4 – Tendo o movimento armado se iniciado no dia 9 de julho de 1932 (uma revolução, liderada pelo Estado de São Paulo, objetivando uma nova Constituição, tão como contra o autoritarismo do Governo Provisório de Getúlio Vargas), poucos dias após, os Escoteiros já se reuniam para verificar a melhor forma de atuar em apoio à população civil, particularmente junto à Cruz Vermelha. Registra-se correspondência de Baden-Powell reconhecendo o empenho dos escoteiros (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo / Grupo Escoteiro São Paulo).

A adesão para servir foi expressiva, pois em menos de duas semanas, os jovens que voluntariamente se inscreveram para atuar não eram contabilizados em dezenas, mas em centenas. Mais de mil em um curto período de tempo. Houve um chamamento que, de fato, foi atendido. Escoteiros passaram a ser vistos prestando serviços, nas mais diversas áreas. Vários órgãos passaram a recorrer de sua boa vontade e eficiente resposta. A correspondência que era enviada (inclusive da linha de frente) muitas vezes contava com um escoteiro para chegar ao seu destinatário. A entrega de mensagens oficiais também a eles era confiada.

Imagem 5 – Em menos de duas semanas, mais de mil escoteiros aderiram à Cruzada (escoteira). A escala de serviço deles junto à Cruz Vermelha, inclusive, era publicada em jornais. Haviam outros postos, porém, onde faziam-se presentes. Antigos escoteiros também atuaram como enfermeiros (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo).

Em um sábado de agosto de 1932 (pouco menos de um mês após o início da revolução), em uma edição do jornal O Estado de São Paulo, duas breves notícias chamaram a atenção: a Cruzada dos Escoteiros e a captação de fundos para que capacetes de aço fossem adquiridos / produzidos. Em menos tempo, ainda, veríamos tais itens de proteção sendo utilizados pelos jovens escoteiros, empenhados em diversas atividades. Ficava fácil perceber, portanto, que as atividades efetuadas não estavam isentas de risco.

Imagem 6 – A Cruzada dos Escoteiros é citada na mesma edição do Jornal o Estado de São Paulo onde é anunciada a iniciativa de aquisição de capacetes de aço para tropas constitucionalistas (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo).

Imagem 7 – Alertas para servir. Escoteiros paulistas, prontos para salvar vidas, durante a Revolução de 1932. Notar a braçadeira com a Cruz Vermelha. Verifica-se, também, que os capacetes de aço utilizados são de modelos distintos (fonte: MÓS, João. Boys Scouts Paulistas. São Paulo: Gráfica Apema, 2000).

Uma das percepções marcantes na época foi, provavelmente, quando os jovens passaram a concorrer em escalas nos hospitais ou postos médicos. Inicialmente, os profissionais da área de saúde acharam estranha a presença daqueles “garotos”. Não era algo habitual. Alguns, de fato, até ficaram incomodados com a parcela juvenil que ocupava o espaço reservado exclusivamente a eles. Em pouco tempo, passaram a tolerar os escoteiros para, rapidamente, considerá-los imprescindíveis. Literalmente, necessários e que demonstravam excelente disposição, vontade e serviços prestados com afinco (tudo isso aliado ao carisma e a típica alegria escoteira).

Imagem 8 – Um mês após o início da revolução, ampliava-se a oferta de cursos de enfermagem da Cruzada dos Escoteiros. O termo “escotismo em campanha” (considerando o contexto de campanha, do ponto de vista militar, em um conjunto de operações) realmente encontrava acolhida na realidade vivida por aqueles jovens, neste momento histórico (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo).

A presença dos escoteiros não se resumia à capital. Diversas cidades contavam com eles. Foi necessário esclarecer à população paulista como estavam colaborando (o que com absoluta certeza, fez aumentar ainda mais a admiração que todos possuíam por esses jovens sempre prontos a fazer algo que fosse útil), ocorrendo isso por intermédio da constatação das próprias atividades em si, por desfiles e, também, panfletos informativos. De qualquer forma, como ocorre em qualquer conflito, haviam certas restrições e controle em relação a deslocamento para todos. Um “salvo conduto”, ou seja, uma autorização para dirigir-se a outra localidade, era emitido para fins de eventual fiscalização. O fim da Revolução Constitucionalista, no mês de outubro, fez encerrar a “Cruzada Escoteira”.

Imagem 9 – Para entendimento da população em geral, ocorreu a distribuição de folhetos onde era exposto sobre a atuação dos escoteiros junto à Cruz Vermelha. Tratando-se de um período de conflito, eventualmente era necessária autorização para deslocamentos entre cidades, Ao lado direito verifica-se um, destinado a um escoteiro a serviço da Cruz Vermelha (fonte: acervo histórico do Grupo Escoteiro São Paulo). 

Imagem 10 – Anúncio do encerramento das atividades da Cruzada dos Escoteiros. Interessante notar que os escoteiros não pertenciam, exclusivamente, a uma única “associação”, naquela época. De qualquer forma, fizeram (e continuam a fazer) o seu melhor possível para ofertar ajuda à população (fonte: acervo do jornal O Estado de São Paulo).

Na segunda Guerra Mundial, os escoteiros de diversas nações do globo voltaram a atuar. Alguns, durante os bombardeios, auxiliavam nos alertas à população civil (tão como sendo empregados como mensageiros, a exemplo dos Cadetes de Mafeking ou mesmo os da Cruzada dos Escoteiros). Outros, devido às circunstâncias extremas que se apresentavam, chegaram a atuar em apoio ou, mesmo, nos movimentos de resistência. Adequado relembrar da ousadia e heroísmo dos poloneses, tão como dos “Gray Ranks”, os escoteiros (da resistência polonesa). Na época, com a ocupação nazi-soviética, a Associação de Escoteiros e Guias, que havia sido fundada em 1916, foi proibida, pois o governo de ocupação a considerava uma ameaça.

Conforme o pesquisador Nikola Budanovick elucidou a respeito, em 1940, os Escoteiros adotaram um codinome como movimento de resistência: as Fileiras Cinzentas (Szare Szeregi). Com essa designação, continuaram a agir em estreita colaboração com a resistência do Exército Nacional. Mas, sempre, como uma unidade independente. Se nos primeiros anos eram relativamente discretos, passaram a efetuar ações mais incisivas (principalmente de sabotagem), tão como pintavam em muros por toda Polônia o símbolo de uma âncora (que indicava a revolta nacional). Tornaram-se muito organizados e relativamente estruturados.

Os mais jovens, crianças entre 12 a 14 anos, não participavam de atividades “diretas”. Elas pertenciam às “unidades Zawisza”, responsáveis por serviços auxiliares, porém igualmente importantes. Ainda, segundo Nikola Budanovick, “aqueles com idade entre 15 e 17 anos preenchiam as fileiras das Escolas de Combate. Essas escolas secretas tinham como objetivo o ensino de vigilância, reconhecimento, propaganda e pequenos atos de sabotagem, com o objetivo de motivar a população local a se juntar à luta”. Os jovens com mais de 17 anos treinavam em escolas (também secretas) para suboficiais e oficiais, constituindo a elite do movimento de resistência.

Eram tão corajosos que chegaram a enfrentar membros da temida SS (Schutzstaffel – Tropa de Proteção). Em agosto de 1944, quando ocorreu a Revolta de Varsóvia, os escoteiros poloneses já haviam se tornado um grupo extremamente experiente em batalha e, como tal, eram reconhecidos. Milhares (para ser preciso, 8.359 deles) estavam ativos. As jovens moças (Guias) atuavam principalmente em atividades como assistência médica, mensageiras, envolvidas em atividades de propaganda e suporte logístico aos combatentes.

Na Inglaterra, a organização de defesa civil Air Raid Precautions – ARP foi fundada em 1924 devido à lembrança do bombardeamento de cidades durante a Primeira Guerra Mundial e foi vital para que fosse mitigado o efeito causado em eventos similares, tão como a prevenção em relação aos mesmos. No início da Segunda Guerra, foi evitado pelos aliados que bombas fossem lançadas sobre a população civil (a então poderosa força aérea alemã, Luftwaffe, era temida e não se desejava qualquer forma de retaliação), mas é de conhecimento geral que isso durou pouco tempo.

O ARP possuía como tarefa fornecer para a população máscaras contra gases, abrigos antiaéreos pré-fabricados (modelos Anderson e Morrison), montar abrigos públicos e garantir que ocorresse o blackout (que as luzes das residências estivessem apagas ou fossem usadas cortinas específicas para, com isso, dificultar a navegação de bombardeiros tão como o lançamento de artefatos). Quando começaram a ocorrer ataques, o ARP também atuou nos esforços de resgate e atendimento médico. Não é necessário, nesse contexto, falar que alguns jovens também estavam empenhados em ajudar: como de se esperar, haviam escoteiros presentes fazendo seu melhor para servir. Curiosamente, nos idos de 1941, o governo britânico criou o Serviço de Defesa Civil, que por sua vez, assumiu as responsabilidades e a organização do ARP. Mesmo assim, o público continuou a se referir à defesa civil como “ARP” durante toda a guerra.

Imagem 11 – A sigla ARP é alusiva a Air Raid Precautions, em tradução livre, Precauções Contra Ataques Aéreos, uma organização de defesa civil. O registro de 1945 mostra escoteiros atuando nesta importante missão que objetivava salvar vidas (fonte: Historical Boys Clothing – HBC).

Em caráter mais contemporâneo, pode-se afirmar que tal tradição de atuar para mitigar o sofrimento da população em circunstâncias que envolvem conflitos ou mesmo catástrofes, se mantém indo muito além das importantes e necessárias atividades de arrecadação de donativos.

Na crise que se instalou no Sudão do Sul a partir de 2013, escoteiros dirigiram-se para o Hospital Universitário de Juba, auxiliando (e mesmo conduzindo para lá) feridos, cuidando da limpeza do hospital, apoiando nas enfermarias e alimentando os pacientes. Inclusive, de forma corajosa, atuaram no recolhimento de cadáveres e nos sepultamentos.

Em 06 de fevereiro de 2023 um terremoto ocorreu na região de fronteira entre a Síria e a Turquia. Na verdade ocorreram dois terremotos na mesma data, um com duração de 75 segundos e outro, nove horas depois, com 90 segundos. Tais eventos causaram mais de 52.000 mortes (46.000 somente na Turquia) e deixaram feridas, pelo menos, 129.000 pessoas. Muitos escoteiros de diversas nacionalidades imediatamente começaram a se organizar nas mais diversas atividades de apoio. Alguns passaram a assistir e ajudar crianças que se encontravam emocionalmente abaladas. Mais de 5.000 escoteiros estiveram diretamente envolvidos na missão de distribuir alimentação in loco, enquanto outros ajudavam na parte logística de recepção, separação e destinação dos donativos (inclusive descarregando caminhões). Na Turquia, 6.000 escoteiros atuaram diretamente em províncias que foram devastadas. Durante semanas, em turnos de 24 horas, auxiliaram a remover escombros, participaram de resgates e socorreram feridos. Conforme a World Scout Fundation, chefes escoteiros (que também eram autoridades religiosas) efetuaram 15.000 sepultamentos. Todos foram intensamente elogiados pelo seu apoio e compromisso. Compondo o contingente de diversas nacionalidades, ficou registrado o empenho dos escoteiros do Azerbaijão… que eram especializados em busca e salvamento (!!!).

Em novembro de 2023, uma centena de escoteiros fez a diferença. Em Gaza. Atuaram em abrigos e prestaram ajuda a mais de 1.300 crianças.

Imagem 12 – Escoteiros no Sudão do Sul, em março de 2014 e, à direita, Gaza, em novembro de 2023 (fonte: World Scouting).

Além de artigos e sites, existe farta literatura onde podemos encontrar a atuação de escoteiros tão como sua história. Do livro de João Mós, Boys Scouts Paulistas (cuja versão digital é facilmente encontrada em breve pesquisa na internet) a opções onde encontramos informações a respeito dos primórdios do Movimento Escoteiro. Um deles é Nossos 18.250 Dias – 50 Anos do Grupo Escoteiro Desbravador (FRAGOSO, Nilo. Clube de Autores. 2023).

Além da parte histórica de um Grupo Escoteiro e do próprio escotismo, há uma curiosidade interessante: a bússola que aparece na capa do livro atualmente encontra-se no acervo histórico dos Comandos e Operações Especiais – COE (um dos componentes do 4º Batalhão de Polícia de Choque – Operações Especiais, unidade de elite da Polícia Militar paulista). Foi efetivamente utilizada em inúmeras operações de busca, entre as quais a do acidente que vitimou o grupo Mamonas Assassinas, em 1996. Se os escoteiros ingleses e os Commandos possuem (do ponto de vista histórico, salientamos) certo “parentesco” em relação às suas origens, considerando as percepções de atores distintos, no mesmo ambiente e período (o que culminou em propostas diametralmente diversas), é uma particularidade interessante pensar que, no Brasil, uma bússola que foi utilizada operacionalmente por uma equipe de COE, também serviu para que vários escoteiros tivessem instrução.

Trata-se de uma confiável e resistente YCM, de fabricação japonesa, estando a serviço, durante bom tempo, com um integrante da equipe COE 40 (sua parceira de missão era uma Silva Expedition 15 TDCL, sueca). Provavelmente, muitos jovens a utilizaram em divertidas (e úteis) atividades de navegação e, talvez, jamais imaginaram onde esse instrumento esteve antes (e em quais circunstâncias).

Imagem 13 – Nossos 18.250 Dias – 50 Anos do Grupo Escoteiro Desbravador (FRAGOSO, Nilo. Clube de Autores. 2023) é um livro onde pode ser encontrada parte da história de um Grupo Escoteiro e do próprio escotismo. A bússola que adorna sua capa encontra-se hoje exposta no acervo dos Comandos e Operações Especiais – COE, unidade de elite da Polícia Militar paulista. Foi utilizada por um integrante de uma equipe do COE  operacionalmente, durante bom tempo (fonte das imagens: Clube de Autores / acervo pessoal do autor).

Imagem 14 – Décadas após a Revolução de 1932 e mais de um século distante de Mafeking, os escoteiros mantêm sua essência de alegria, energia e com jovens determinados a trabalhar em equipe para galgar novas habilidades. Desejam sempre estar prontos para servir (fonte: acervo do Grupo Escoteiro Desbravador).

Há alguns “alertas” a serem feitos, para reflexão (tão somente). É inegável a responsabilidade e importância do ato de prover às crianças e jovens experiências para que possam se tornar, na acepção da palavra, cidadãos úteis à comunidade ao qual pertencem, internalizando valores que carregarão para o resto da vida, incluindo nestes, o de respeito ao semelhante e tolerância. O Movimento Escoteiro, entre outros, propicia isso. 

Um (dos alertas) partiu do conglomerado de mídia Al Arabiya (que possui sede em Riad, Arábia Saudita, cuja proposta é ser um canal árabe, porém menos provocativo que a rede Al Jazeera). Trata-se do grupo terrorista Hezbollah (Partido de Deus) e “seus” jovens da Associação de Escoteiros Imam al-Mahdi.

O Centro de Informações de Inteligência e Terrorismo Meir Amit (Israel) os classifica como o “movimento juvenil” do Hezbollah, tendo sido criado em 1985 (ou seja, em caráter relativamente recente) após a saída das forças de defesa de Israel do Sul do Líbano. Conforme é elucidado (em artigo) no sítio eletrônico do Centro mencionado, a Guarda Revolucionária Iraniana esteve, desde o início, envolvida na formação desse “movimento juvenil” cujo foco seria fornecer ao Hezbollah jovens convictos no radicalismo islâmico xiita, seguindo o conceito conhecido como Wilayat al-Faqih (em tradução livre, Tutela do Jurista Islâmico, ou ainda autoridade absoluta do jurista). Além de atividades peculiares aos escoteiros “convencionais”, diversas fontes apontam que os jovens, desde tenra idade, são expostos a doutrinação tão como participam de treinamentos que envolvem luta e técnicas peculiares a grupos paramilitares. Já teria sido relatado que alguns jovens pertencentes à Associação Iman al-Mahdi (tão como alguns ex-integrantes) teriam perecido em combate, inclusive atuando como “homens-bomba”.

Imagem 15 – Os “Escoteiros” Imam al-Mahdi, movimento juvenil do Hezbollah. Colocar qualquer outro propósito que não o robustecimento do caráter, valores como tolerância e respeito ao semelhante, cidadania, entre vários outros que são característicos do Movimento Escoteiro, é algo intolerável e nefasto. Por sinal, o Movimento Escoteiro sempre deve ser claro em relação aos seus propósitos, tão como a eventuais mudanças ou ajustes em relação à evolução. Mas é intolerável (ressaltamos) outros propósitos como aqueles capitaneados por grupos terroristas (fonte: Terrorism Info).

A Alma Research and Education Center, organização educacional de pesquisa sem fins lucrativos, também corrobora sobre o que foi exposto pelo Al Arabiya (da mesma forma que o sítio eletrônico oficial das Forças de Defesa de Israel). É intolerável qualquer outro propósito que não aquele originalmente destinado ao Movimento.

Outro alerta, mas com o enfoque de curiosidade (e também reflexão). Ocorreu em um dos mais marcantes momentos históricos: a Revolução Russa e os anos imediatamente posteriores a ela. Diversas mudanças ocorreram pelo regime que passou a ser dominante. Uma delas foi o fim dos Escoteiros (cuja proposta e outros pontos de conduta, inclusive de sua chefia, passaram a ser vistos como ameaça). O Movimento foi substituído por outras associações de jovens, tendo uma dela um lema bem similar ao que conhecemos: всегда готов (ou melhor, vsegda gotov, SEMPRE PRONTOS). Eram os Pioneiros.

Imagem 16 – Sempre Prontos! Escoteiros? Não, são os Jovens Pioneiros da União Soviética. Com a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), passamos a ver os Pioneiros com vínculo ao Partido Comunista da Federação Russa. Destaca-se na parte superior central, um selo comemorativo dos 100 anos dos Pioneiros, lançado em 2022, na Rússia (fonte: Russian Stamps / The Independent).

Na verdade, o “sistema” escoteiro foi utilizado como base para uma organização (com fulcro comunista) para crianças e jovens. De um ensaio redigido em 1922 cujo título é “União Russa da Juventude Comunista e Escotismo”, ocorreu o “convencimento” da Liga da Juventude Comunista Leninista de Toda União (Komsomol, que era uma organização política juvenil) para que fosse, com um lema similar ao dos escoteiros, criado em 19 de maio de 1922 a Organização Pioneira de Toda União. Com outras mudanças que ocorreram, fusões e orientações vindas do Komsomol, passamos a ter, a partir de março de 1926, a Organização dos Pioneiros de Toda a União Vladimir Lênin.  De 161.000 integrantes em 1924, os Pioneiros passaram a contar com 2 milhões dois anos depois. Em 1940 eram 13,9 milhões e, em 1974, 25 milhões. Estes jovens tiveram um papel primordial durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos momentos da invasão da máquina de guerra nazista. Atuaram como movimento de resistência e muitos chegaram a entrar em combate (seu valor pode ser mensurado pelo fato de que 4 Pioneiros receberam o título de Herói da União Soviética, a mais alta comenda existente).

Para quem se recorda ou, ao menos lembra, da menção de “Pedro e o Lobo”, vale citar que o jovem era um Pioneiro que morava em uma floresta (Peter, na verdade). Com a dissolução da União Soviética (e a proibição do Partido Comunista, inicialmente), houve um encerramento das atividades. De qualquer forma, o Partido Comunista da Federação Russa providenciou uma organização similar, que utiliza a mesma indumentária dos Pioneiros (originais). Adequado recordar que, no momento em que um jovem fazia seu juramento, quando do ingresso, algo similar ao solene momento da Promessa Escoteira, era acrescido em seu juramento que prometeria “viver como o grande Lênin nos ordenou, como o Partido Comunista nos ensina”. Como citado anteriormente, serve como reflexão e eventual pesquisa histórica.

Que a idéia e o espírito inicial, sem qualquer outro propósito que seja propiciar aos jovens boas experiências, permaneça o mesmo, como surgiu no acampamento da Ilha de Brownsea, com Baden-Powell (aquele que foi o primeiro acampamento escoteiro do mundo, em 1907).

De Mafeking à Revolução de 1932. Da resistência polonesa à defesa civil inglesa em plena Segunda Guerra. Do Sudão do Sul à Gaza. Não se conhece a essência de uma pessoa (ou grupo) na zona de conforto. Conhecemos quando é necessária que uma mão (ou milhares delas) seja estendida a quem precisa. Sob nenhuma hipótese, deve-se subestimar aqueles que, de coração, desejam estar prontos para servir. Sempre alertas, para servir. Por isso é adequado conhecer a história dessas pessoas (incluindo de seus ancestrais, portanto) e preservá-la. São valores e condutas de enorme pureza e importância, que permaneceram inalterados desde sua concepção. Transcendem épocas, ideologias e, principalmente, pessoas.

SAPS

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