Introdução
Um documento interno do Serviço Federal de Segurança Russo (FSB), vazado e obtido pelo The New York Times, revela uma visão surpreendente e detalhada das suspeitas da contrainteligência russa sobre as intenções da China, seu suposto aliado estratégico.
Intitulado “O Inimigo”, o documento de oito páginas, elaborado pelo 7º Serviço do Departamento de Operações de Contrainteligência, expõe acusações graves e preocupações geopolíticas que desafiam a narrativa pública de uma parceria sólida entre Moscou e Pequim.
Este artigo analisa as implicações do vazamento, os pontos centrais do documento e o que isso revela sobre a dinâmica de poder entre as duas nações.
Acusações de espionagem e subversão
O documento do FSB aponta a China como uma ameaça ativa à segurança nacional russa, acusando-a de conduzir operações de espionagem para obter segredos militares e tecnológicos. Segundo o relatório, Pequim tem como alvo cientistas, autoridades, jornalistas e empresários russos, com foco especial em ex-funcionários de fábricas de aeronaves e institutos de pesquisa, além de indivíduos insatisfeitos com políticas russas, como o encerramento do programa de desenvolvimento do ekranoplan.
A inteligência russa alega que a China explora dificuldades financeiras e descontentamento para recrutar espiões que possam fornecer informações sensíveis.
Além disso, o documento destaca o interesse chinês nas operações militares russas na Ucrânia. A China estaria analisando o conflito para aprender sobre o uso de drones, modernização de softwares ocidentais e estratégias para enfrentar armas avançadas do Ocidente. Essas informações seriam cruciais para Pequim, especialmente em um cenário de potencial confronto com Taiwan, apoiado pelos Estados Unidos.

Preocupações geopolíticas e territoriais
Um dos aspectos mais alarmantes do documento é a desconfiança russa em relação às ambições territoriais da China. O FSB expressa preocupação com atividades acadêmicas chinesas que buscam vestígios de “antigos povos chineses” no Extremo Oriente russo, particularmente em áreas anexadas por Moscou no século XIX, como a região de Vladivostok. Essas ações são vistas como uma possível preparação para futuras reivindicações territoriais, um temor histórico que persiste devido à extensa fronteira de 4.219 quilômetros entre os dois países.
Outro ponto de tensão é o interesse crescente da China no Ártico, especialmente na Rota do Mar do Norte, uma região estratégica que, com o derretimento do gelo, está se tornando viável para transporte marítimo. A Rússia interpreta essas movimentações como uma tentativa de Pequim de expandir sua influência em uma área tradicionalmente dominada por Moscou.

Contexto e implicações
Embora o documento não esteja datado, o The New York Times estima que ele foi produzido entre 2023 e 2024, com base em seu contexto. Obtido inicialmente pelo grupo de segurança cibernética Ares Leaks e autenticado por seis agências de inteligência ocidentais, o vazamento representa um constrangimento significativo para o Kremlin. A referência à China como “o inimigo” por agentes do FSB sugere uma desconfiança profunda, que contrasta com a retórica pública de cooperação entre os dois países.
A ansiedade russa em relação à ascensão da China, como descrita no documento, reflete uma relação assimétrica. Enquanto a Rússia depende cada vez mais de Pequim para apoio econômico e político, especialmente em meio a sanções ocidentais, o documento revela o receio de que a China esteja aproveitando essa dependência para avançar seus próprios interesses, em detrimento da soberania russa.

Reflexões estratégicas
O vazamento expõe uma fissura na relação sino-russa, que é frequentemente apresentada como uma frente unificada contra o Ocidente. Para o Brasil e outras nações do hemisfério sul, essa revelação reforça a necessidade de uma análise cuidadosa das dinâmicas entre grandes potências. A desconfiança mútua entre Moscou e Pequim pode criar oportunidades para países menores influenciarem negociações internacionais, mas também aumenta o risco de instabilidade em regiões estratégicas como o Ártico e o Extremo Oriente.
A longo prazo, o documento sugere que a Rússia está ciente de sua vulnerabilidade diante de uma China mais assertiva. Isso pode levar Moscou a buscar uma diversificação de parcerias ou a reforçar sua postura defensiva, especialmente em áreas sensíveis como a fronteira leste e o Ártico.
Conclusão
O documento vazado do FSB lança luz sobre uma relação complexa e cheia de tensões entre Rússia e China. Longe de ser uma aliança inabalável, a parceria entre as duas nações é marcada por desconfianças mútuas e interesses conflitantes. Para a comunidade internacional, esse vazamento serve como um lembrete de que as aparências de cooperação entre grandes potências nem sempre refletem a realidade. A Rússia, ao mesmo tempo em que depende da China, parece estar cada vez mais alerta para os riscos de se tornar subordinada a um parceiro que, segundo seu próprio serviço de inteligência, pode ser “o inimigo”.
Nota:
O programa de desenvolvimento do ekranoplan refere-se a iniciativas, principalmente conduzidas pela União Soviética e, posteriormente, pela Rússia, para projetar, construir e testar ekranoplans, veículos que operam utilizando o efeito de solo (ground effect).
Esses veículos são uma categoria híbrida entre aeronaves e embarcações marítimas, projetados para deslizar a poucos metros acima da superfície da água, aproveitando o efeito aerodinâmico que reduz a resistência do ar e aumenta a eficiência.

Nos Estados Unidos, o veículo é geralmente chamado de ground effect vehicle (GEV) ou wing-in-ground-effect vehicle (WIG). O termo “ekranoplan” também é usado, especialmente em referência aos modelos soviéticos/russos, mas é menos comum no vocabulário geral. Em contextos militares ou técnicos, os americanos podem se referir a eles como surface-effect ships ou simplesmente WIG craft. A designação depende do contexto, mas “ground effect vehicle” é o termo mais amplo e reconhecido em inglês.
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