Disputa histórica entre as Forças Armadas já incluiu política, acusações, piadas e até disparos de metralhadoras
Humberto Leite
Apesar de chamadas de “forças-irmãs”, a relação entre Marinha, Exército e Força Aérea Brasileira nem sempre é amigável. E neste domingo, 22 de junho, comemoram-se 60 anos de um pouso pioneiro que relembra a mais acirrada disputa entre as Forças Armadas, uma história que envolveu política, acusações, piadas e até disparos de metralhadoras. Tudo isso pelo direito de operar aviões embarcados em um porta-aviões.
O pioneiro pouso de um P-16A Tracker da Força Aérea Brasileira, com matrícula FAB 7021, a bordo do porta-aviões A11 São Paulo, da Marinha do Brasil, em 22 de junho de 1965, foi um feito operacional notável. Sob comando do Major Antônio Claret Jordão, tendo como copiloto o Capitão Iale Renan Accioly Martins de Freitas, a aeronave de quase nove toneladas cumpriu corretamente a aproximação, o toque no convés, o contato com o cabo e a desaceleração brusca, de 200 km/h para zero. Nos dias seguintes, ocorreram 123 toques e arremetidas, além de 63 pousos completos, permitindo a qualificação completa de oito aviadores da FAB.

Mais que um pouso, trata-se de uma proposta de paz, de uma verdadeira “novela”, iniciada em 1941, quando o então Ministério da Aeronáutica foi criado, unindo aeronaves e militares da Aviação Militar (Exército) e da Aviação Naval (Marinha), além do Departamento de Aeronáutica Civil, que pertencia ao Ministério da Viação e Obras Públicas. A disputa entre Exército e a Marinha já era tão grande naquela época, que o primeiro Ministro da Aeronáutica foi um civil, o político gaúcho Joaquim Salgado Filho.
Quem deveria operar aeronaves embarcadas?
Nos primeiros anos, não haveria dúvidas de quem deveria operar aeronaves militares, independentemente da missão. Porém, em 1952, a Marinha do Brasil recriou a Diretoria de Aeronáutica da Marinha (DAerM), mesmo sem sequer contar com aeronaves. Seus primeiros regulamentos inicialmente iam contra os entendimentos do Ministério da Aeronáutica pois, na prática, indicava a recriação da Aviação Naval. A disputa ficou acirrada a partir de 14 de dezembro de 1956, quando o Brasil firmou a compra do seu primeiro porta-aviões, o Minas Gerais.
Em 6 de fevereiro de 1957, a Força Aérea Brasileira criou o 1º Grupo de Aviação Embarcada (1º GAE). Com sede na Base Aérea de Santa Cruz, a unidade teria o foco de operar a partir do porta-aviões brasileiro. Para isso, em setembro de 1960 foi iniciado um intenso treinamento com o esquadrão VS-30 da US Navy, incluindo pousos no porta-aviões CV-36 USS Antietam, para operação da aeronave Grumman S-2A Tracker. Em 25 de fevereiro de 1961, ocorreria o recebimento oficial dos primeiros dos 13 S-2A encomendados, sendo designados como P-16A.

Naquele mês, seriam recebidos, ainda, os primeiros de seis SH-34J, helicópteros que à época eram os maiores do arsenal brasileiro e traziam uma capacidade completa de combate antissubmarino, incluindo os sonares AN/ASQ-5. Essas aeronaves foram alocadas no 2º Esquadrão do 1º GAE. A expectativa era de passar a operar a bordo do navio da Marinha tão logo fosse possível.
O navio atracou no Rio de Janeiro no início daquele mês. Mas a própria demora de mais de duas semanas na viagem tinha seu significado: insatisfeita com a negativa de Juscelino Kubitscheck em autorizar a ter aviação, a Marinha queria ter sua nova nau-capitânia só depois da troca presidencial, que ocorreria em 31 de janeiro. À época a Marinha já contava com helicópteros Bell 47J, Westland Widgeo e Westland WS-55 Whirlwind. Para completar, o Minas Gerais trouxe a bordo três aviões Grumman TBF Avenger. Em 5 de junho de 1961, a Marinha do Brasil criou o 1º Esquadrão de Helicópteros de Emprego Geral (HU-1).
Em agosto de 1961, o novo presidente, Jânio Quadros, chegou a pedir uma demonstração de pouso de um P-16 a bordo do porta-aviões. Na prática, era um anúncio da “vitória” da FAB. Porém, sua renúncia fez a questão cair em esquecimento. Em constante tensão com as Forças Armadas, o novo presidente, João Goulart, preferiu não agir com mais força para definir a questão.

Política e piada
A disputa entre Brigadeiros e Almirantes era grande e já se tornara pública. A oposição ao governo JK tratava a compra do porta-aviões como um verdadeiro gasto desnecessário de dinheiro público. Em 1958, o compositor e humorista lançou uma marchinha popular com amplo sucesso popular: “Brasil Já Vai à Guerra”.
A letra diz: “Brasil já vai a guerra, comprou um porta-aviões. Um viva pra Inglaterra de oitenta e dois bilhões. Mas que ladrões!”. Até a briga militar entrou nos versos: “Porém há uma peninha. De quem é o porta avião. É meu, diz a marinha. É meu, diz a aviação. Ahhhh! Revolução!”.
O sucesso do filme francês “O belo Antônio” também não ajudou. Na história, as mulheres se apaixonavam por um homem bonito, visto como “homem ideal”. O problema é que a sua sortuda noiva descobre, só depois do casamento, que o rapaz sofria de impotência sexual. Jocosamente, o Minas Gerais passaria a ser chamado de “Belo Antônio”.

Marinha faz seu pouso pioneiro – e secreto
Enquanto o Brasil permanecia com seu porta-aviões sem operar em sua capacidade plena, as duas forças armadas brigavam entre si. Em 1962, fazendo um verdadeiro “orçamento secreto”, a Marinha comprou seis treinadores Pilatus P3 e doze North American T-28 Trojan. Nem o Governo Federal foi avisado do uso dos recursos públicos. A imprensa tratou o caso como um escândalo, chegando a dizer que os aviões foram “contrabandeados”.
Não chegava a tanto, mas havia ações fora da normalidade. Seis T-28R-1, equipados com gancho de parada, foram transportados ao Brasil desmontados em caixas e, à noite, em segredo, foram passados ao porta-aviões. Em 17 de outubro de 1963, as seis aeronaves decolaram do porta-aviões e foram para a Base Aeronaval de São Pedro da Aldeia, no litoral norte fluminense. Em 11 de dezembro de 1963, a Marinha registrou seu pioneiro pouso de um T-28R-1 a bordo do Minas Gerais.

Apesar do código “T”, de treinamento, essas aeronaves podiam voar com foguetes não guiados. Porém, o foco maior era desenvolver a doutrina para a ativação de novos esquadrões.
A FAB reage
A FAB tentou ser cordial. Em 7 de setembro de 1962, um SH-34J do 1º GAE pousou no porta-aviões Minas Gerais, em gesto comemorativo. Porém, não houve pacificação. Em 12 de junho de 1963, um avião T-6 Texan da FAB fez uma verdadeira missão de reconhecimento sobre a Base Aeronaval de São Pedro da Aldeia.
Em meio a esse cenário de disputa, em fevereiro de 1963, a Marinha fez uma ampla mobilização de navios para irem até Pernambuco, por conta da ameaça da presença de um navio de guerra da França, o contratorpedeiro Tartu, no episódio chamado de “A Guerra da Lagosta”. Enquanto os P-16 da FAB fizeram sobrevoos do navio francês com foguetes, a Marinha sequer enviou seu porta-aviões, o que gerou críticas públicas.
Já em setembro daquele mesmo ano de 1963, em meio a pressões políticas que resultaram no golpe de março de 1964, pilotos da Marinha decolaram da Base Aeronaval durante uma visita do ministro da Marinha, Sílvio Borges Mota, que havia proibido voos. O episódio ficou conhecido como “revoada” e não há registros de punições. No meio de tudo, há ainda o relato não muito claro de uma tropa terrestre da FAB que teria monitorado a Base Aeronaval à distância.

Era uma resposta à operação UNITAS IV, quando pilotos brasileiros pousaram a bordo em aeronaves da Argentina. Foi o primeiro grande exercício do porta-aviões com aviões a bordo, havendo ajuda da Marinha da Argentina, que empregou seu porta-aviões Independência. O fato gerou dura Nota Oficial da FAB à imprensa, criticando abertamente a Marinha por proibir o uso das aeronaves do 1º GAE a bordo, mas convidar outra nação para tal.
Troca de tiros
Havia a crítica aos presidentes JK, Jânio Quadros e João Goulart por deixarem a situação se arrastar. Porém, nem a radical mudança de rumos políticos do Brasil, ocorrida a partir de 31 de março de 1964 com o golpe militar que fez as Forças Armadas assumirem o poder de maneira unida, fez com que a disputa fosse resolvida. Pelo contrário.
A situação se tornou preocupante em 5 de dezembro de 1964, quando um helicóptero S-55 da Marinha foi alvo de disparos de militares da FAB após o piloto tentar decolar de Tramandaí (RS) mesmo após ser proibido. O fato levou ao pedido de demissão do Ministro da Aeronáutica, Nélson Freire Lavanère-Wanderley, em 15 de dezembro de 1964.
Vendo-se politicamente fortalecida, a Marinha navegou o Minas Gerais próximo à cidade do Rio de Janeiro com seus T-28 publicamente expostos no convés. Era uma clara tentativa de mostrar para a população que seu uso de aviões e helicópteros era algo real. O fato gerou reclamações do novo Ministro da Aeronáutica, Márcio de Sousa Melo, que logo pediu demissão em 11 de janeiro de 1965. Quatro dias depois, caía o Ministro da Marinha, Ernesto de Melo Batista.
A disputa entre a FAB e a Marinha não só reduzia o potencial do porta-aviões brasileiro, como era vista como uma incapacidade gerencial das Forças Armadas.

Resolução
Finalmente, o Humberto Castelo Branco, que era General, emitiu em 23 de janeiro de 1965 o decreto 55.627, com uma proposta de solução para o caso. A Marinha ficaria com os helicópteros, a FAB operaria aviões, inclusive havendo a troca de dotações. Os T-28 foram incorporados à 2º Esquadrilha de Ligação e Observação da FAB, que ficaria sediada na própria Base Aeronaval de São Pedro da Aldeia. Todos os demais aviões da Marinha também foram repassados. Por outro lado, a FAB transferiu os seis SH-34J. A resolução permitiu o pioneiro pouso do P-16A no Minas Gerais, em 22 de junho de 1965.
Entre 1961 e 1996, a FAB operou 13 aviões P-16A e oito P-16E, estes últimos recebidos nos anos 70. Entre 22 de junho de 1965 e 13 de agosto de 1996, o Grupo de Aviação Embarcada registrou 1.382 dias no mar com suas aeronaves, tendo realizado 14.072 pousos diurnos e 2.674 noturnos. Os P-16 foram aposentados em 1996, em meio à crescente decepção de a FAB nunca ter adquirido caças para uso embarcado e a Marinha não ter se voltado para o uso de porta-aviões.
Marinha volta a ter aviões
Sem interesse em voltar a operar aviões a bordo, a FAB não se manifestou em 8 de abril de 1998, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso publicou o decreto Nº 2.538, que autorizou a Marinha a operar aviões. Em 30 de abril de 1997, a força naval assinou a aquisição de 23 jatos A-4 Skyhawk que pertenciam à Força Aérea do Kuwait, em uma negociação iniciada no ano anterior, com aval do Palácio do Planalto, apesar de críticas da FAB e até do Ministro do Exército.

Os Skyhawk, designados AF-1 pela Marinha, operaram no Minas Gerais somente no ano de 2001 e, ainda no mesmo ano, no porta-aviões São Paulo, adquirido da França. O novo navio-aeródromo chegou a registrar 450 pousos e decolagens ao longo de três anos, mas logo as dificuldades operacionais dificultaram a operacionalidade dos jatos a bordo. Em 2017, a Marinha decidiu pela aposentadoria do navio.
Com seis AF-1 modernizados, a Marinha mantém os seus aviões no serviço ativo, realizando operações a partir de bases no continente. A ironia é que, ao longo de tantas disputas com a Força Aérea Brasileira, o que estava em jogo era exatamente a possibilidade de voar embarcado.

Atritos com o Exército
Nos anos 80, o Exército Brasileiro reativou a sua aviação, sendo até hoje formada por dezenas de helicópteros. Porém, a força terrestre se envolveu com polêmicas recentes.
Em 2 de junho de 2020, o presidente Jair Bolsonaro publicou o Decreto Nº 10.386, que permitiu que a Aviação do Exército operasse todos os tipos de aeronaves, não apenas helicópteros. O texto dizia que a Aviação do Exército é destinada à “operação de vetores aéreos necessários ao cumprimento das missões do Exército Brasileiro”.
Na prática, a medida foi a luz verde necessária para que o Exército operasse as aeronaves C-23B+ Sherpa adquiridas usadas dos estoques do Exército dos Estados Unidos. A aquisição das quatro primeiras foi confirmada em 2017. A primeira deveria chegar ao Brasil em 2021.
Porém, nada ocorreu. Em 8 de junho de 2020, Jair Bolsonaro voltou atrás e revogou o seu próprio decreto. Nos seis dias em que esteve em vigência, o Decreto motivou uma carta pública do Tenente-Brigadeiro do Nivaldo Luiz Rossato, Comandante da Aeronáutica entre 30 de janeiro de 2015 e 4 de janeiro de 2019.

Com a revogação, voltou a valer o Decreto 92.206, de 1986, que no seu Artigo 1º diz que Aviação do Exército é destinada à “operação de helicópteros necessários ao cumprimento da missão da Força Terrestre”. À época, a Revista ASAS questionou o Ministério da Defesa, que esclareceu que o novo Decreto editado e logo revogado tinha problema de redação. “A redação utilizada permitia entendimentos diversos e não desejados na proposição da medida”, afirmou o Ministério em nota à Revista ASAS.
O Ministério da Defesa informou ainda que haveria uma “reestudo da proposta”. Cinco anos já se passaram, sem que tenha havido qualquer modificação.
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