Nota sobre as diferenças de tratamento diplomático com respeito a dois eventos similares.
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, Professor
Blog Diplomatizzando
Durante cerca de meio século tomei conhecimento, regularmente, das notas emitidas pelo Itamaraty, ao qual servi por um período quase equivalente, a maior parte sobre questões relevantes da agenda internacional – guerras, violações da Carta da ONU, grandes desastres humanitários –, mas também sobre questões habituais da vida cotidiana – inundações, graves catástrofes naturais –, assim como congratulações e cumprimentos por ações meritórias de cooperação internacional, em benefício de países em desenvolvimento, por exemplo.
O Itamaraty é, provavelmente, o maior emissor de notas das Américas, talvez do mundo. Estou seguro de que os diplomatas que trabalham na área, dedicada à informação de nossos parceiros externos, à mídia brasileira e internacional, ao público em geral, estão atentos ao que se passa no mundo, para redigir notas naquele diplomatês habitual, que são em seguida submetidas aos superiores, antes da expedição final; algumas dessas notas são negociadas exaustivamente com o Palácio do Planalto antes da divulgação, tal a importância do assunto.
Pois bem, tomei conhecimento, neste domingo 22/06/2025, da nota transcrita por extenso in fine, da qual extraio e transcrevo apenas alguns trechos, tomando uma simples providência: substituir o objeto atual da nota, o ataque americano às instalações nucleares do Irã, pelos equivalentes funcionais relativamente aos ataques russos à Ucrânia, e isso por um único e exclusivo motivo: nos últimos três anos e meio – ou seja, compreendendo também o governo precedente, de Jair Bolsonaro – não me lembro de ter lido, em qualquer momento e por quaisquer motivos, notas semelhantes ou similares do Itamaraty, o que absolutamente não compreendo, pois que eventos e consequências são notavelmente equivalentes:
“O governo brasileiro expressa grave preocupação com a escalada militar “na Ucrânia” e condena com veemência, nesse contexto, ataques militares “da Rússia e, mais recentemente, da Coreia do Norte“, contra as instalações nucleares “de Zaporizhia e demais instalações civis“, em violação da soberania “da Ucrânia” e do direito internacional. Qualquer ataque armado a instalações nucleares representa flagrante transgressão da Carta das Nações Unidas e de normas da Agência Internacional de Energia Atômica. Ações armadas contra instalações nucleares representam uma grave ameaça à vida e à saúde de populações civis, ao expô-las ao risco de contaminação radioativa e a desastres ambientais de larga escala. (…)
O Brasil também repudia ataques “russos” contra áreas densamente povoadas, os quais têm provocado crescente número de vítimas e danos a infraestrutura civis, incluindo instalações hospitalares, as quais são especialmente protegidas pelo direito internacional humanitário.”
Volto a dizer: desde o início das invasões ilegais da Rússia contra a Ucrânia, começando pela anexação da península da Crimeia, em 2014, culminando com a guerra de agressão atual, que se desenrola desde fevereiro de 2022 (mas antes também), não me lembro de ter lido qualquer nota do Itamaraty condenando “com veemência” as violações da Rússia contra a soberania da Ucrânia e contra a própria Carta da ONU. Não me lembro de qualquer nota a respeito dos inúmeros bombardeios russos contra instalações civis, inclusive hospitais, maternidades, escolas, com muitas vítimas inocentes, e quase nenhuma instalação militar ucraniana.
Em contraste, os ataques ucranianos em defesa do seu território e contra o próprio território russo são invariavelmente dirigidos a instalações militares e de produção bélica.
Choca-me, a indiferença, não do Itamaraty, mas dos seus chefes no Planalto, no tocante às barbaridades perpetradas pela Rússia contra a soberania, a população civil e o patrimônio físico da Ucrânia, mesmo em face dos ataques mais chocantes em nítida violação da Carta da ONU e de todos os protocolos humanitários. Repito: estou chocado, e não é com o Itamaraty: ele é vítima de uma política caolha, viciada e viciosa, que mancha a credibilidade e a humanidade da diplomacia profissional brasileira.
Paulo Roberto de AlmeidaBrasília, 4902, 22 junho 2025,
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Ministério Relações Exteriores
NOTA À IMPRENSA Nº 276
Ataques a instalações nucleares do Irã
Publicado em 22/06/2025 14h10
O governo brasileiro expressa grave preocupação com a escalada militar no Oriente Médio e condena com veemência, nesse contexto, ataques militares de Israel e, mais recentemente, dos Estados Unidos, contra instalações nucleares, em violação da soberania do Irã e do direito internacional. Qualquer ataque armado a instalações nucleares representa flagrante transgressão da Carta das Nações Unidas e de normas da Agência Internacional de Energia Atômica. Ações armadas contra instalações nucleares representam uma grave ameaça à vida e à saúde de populações civis, ao expô-las ao risco de contaminação radioativa e a desastres ambientais de larga escala.
O Governo brasileiro reitera sua posição histórica em favor do uso exclusivo da energia nuclear para fins pacíficos e rejeita com firmeza qualquer forma de proliferação nuclear, especialmente em regiões marcadas por instabilidade geopolítica, como o Oriente Médio.
O Brasil também repudia ataques recíprocos contra áreas densamente povoadas, os quais têm provocado crescente número de vítimas e danos a infraestrutura civis, incluindo instalações hospitalares, as quais são especialmente protegidas pelo direito internacional humanitário.
Ao reiterar sua exortação ao exercício de máxima contenção por todas as partes envolvidas no conflito, o Brasil ressalta a urgente necessidade de solução diplomática que interrompa esse ciclo de violência e abra uma oportunidade para negociações de paz. As consequências negativas da atual escalada militar podem gerar danos irreversíveis para a paz e a estabilidade na região e no mundo e para o regime de não proliferação e desarmamento nuclear.
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