Docente da Unesp analisou presença de militares homossexuais nas forças armadas de Brasil, Portugal, Argentina e Espanha
Marcos do Amaral Jorge
Poucas pautas no século 21 suscitaram tantos enfrentamentos, polêmicas e transformações sociais quanto a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIA+. Graças à sua capacidade de mobilização, essa comunidade vem superando preconceitos e conquistando, dentro e fora do Brasil, espaços nas mais diversas esferas, da atuação política à economia e ao entretenimento. Porém, um estudo recente sugere que as forças armadas brasileiras continuam refratárias a esse debate e resistentes a uma maior assimilação desses grupos em suas fileiras. O autor da pesquisa é Alexandre Fuccille, professor do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras (FCL) da Unesp, no câmpus de Araraquara, e especialista na área de estudos militares e de defesa.
Fuccille diz que, embora não existam normas explícitas proibindo o alistamento ou determinando a expulsão de gays, lésbicas ou transexuais nas forças armadas brasileiras, o que se nota é uma cultura de constrangimentos, cerceamento e pressões que nega o acolhimento e dificulta a adaptação desses indivíduos à instituição, levando-os, na maioria das vezes, ao desligamento da função e ao abandono da carreira.
O mais famoso episódio que envolveu a temática da presença homoafetiva no Exército brasileiro ocorreu em junho de 2008. Naquele mês, a capa de uma das revistas semanais de maior circulação no país estampou a história de um casal de sargentos do Exército que, pela primeira vez na história das forças armadas, assumia publicamente um relacionamento homossexual. A reportagem sobre os militares, que serviam juntos em Brasília, também reproduzia suas denúncias quanto a desvios de verbas por parte de oficiais superiores.
Assim que veio a público, a reportagem desencadeou um extenso debate sobre a presença e o tratamento de homossexuais nas forças armadas. “Mas pouca coisa mudou desde então”, diz Fuccille.
Não há proibição, mas preconceito permanece
Ele ressalta que a proibição a qualquer tipo de discriminação, tal como assegurada pela Constituição Federal, implica que, de um ponto de vista prático e normativo, não haja qualquer veto à presença de pessoas gays, lésbicas ou bissexuais nas forças armadas. “Mas, na prática, ocorrem constrangimentos de toda sorte para quem torna pública sua orientação sexual ou identidade de gênero,” diz o docente, que já presidiu a Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). “O discurso oficial é o de que cada um segue sua orientação pessoal e não existem interferências. Mas a realidade é que as forças armadas constituem um ambiente extremamente heteronormativo, repleto de piadinhas e condutas que já não deveriam ser aceitas no restante da sociedade, mas seguem naturalizadas entre os militares”, diz.
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, Fuccille publicou um capítulo em livro relatando suas pesquisas sobre a questão LGBT nas forças armadas do século 21, estabelecendo um comparativo entre as realidades de quatro países ibero-americanos: Brasil, Argentina, Portugal e Espanha. “Um fator comum é o modo como o preconceito se mostra muito arraigado em todas as quatro nações, independentemente da forma como se manifeste, seja mais velado ou mais aberto”, diz o docente.
A adoção do termo LGBT, e não da expressão LGBTQIA+, diz ele, se deve ao fato de que esta última não é empregada pelas próprias instituições militares. O trabalho fez parte de um estágio de pós-doutorado realizado na Universidad Complutense de Madrid, na Espanha.
Países da Europa estão mais avançados
A pesquisa mapeia a cronologia das conquistas dos direitos das comunidades LGBT em cada um dos países, e descreve a situação atual da incorporação desses indivíduos nas respectivas forças armadas, buscando iniciar uma discussão sobre os obstáculos e contradições que ainda persistem no enfrentamento ao preconceito no interior dessas instituições.
Espanha e Portugal emergem da pesquisa como exemplos mais progressistas, que, já no início dos anos 2000, tanto regulamentaram o casamento homossexual quanto incorporaram esses grupos às instituições militares. Ambos os países também já abrigam pessoas transexuais em suas fileiras.
Ao mesmo tempo, a pesquisa aponta manifestações discriminatórias identificadas na plataforma digital do jornal El País, um dos principais da Espanha. Um dos casos envolve um jovem militar português encontrado morto na Base Aérea de Beja, em 2015. Recém-transferido para o posto, o rapaz acabou, muito rapidamente, se tornando alvo de chacotas e insultos pelos novos colegas, em virtude de seus “maneirismos femininos”, e sucumbiu à pressão, cometendo suicídio.
A Argentina, ao lado de Colômbia e Uruguai, é apontada pelo docente da Unesp como pioneira na incorporação de homossexuais às forças armadas entre os países da América Latina — em especial durante a gestão de Nilda Garré, que entre 2005 e 2010 tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo de ministra da Defesa do país. Sob sua gestão, desenvolveu-se uma ampla reforma do Código de Justiça Militar que descriminalizou a homossexualidade, puniu o assédio sexual a funcionários de hierarquia inferior e tornou a Justiça Civil a única competente para julgar os crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas.
No Brasil, um “não problema”
No contexto do levantamento, o Brasil emerge como o país que menos avançou nesse campo, posicionando-se bem atrás dos demais Estados ibero-americanos. No Exército, a presença de homossexuais não é sequer nomeada, muito menos avaliada como tema politicamente relevante. O resultado é a pura invisibilização do tema. “Não existe uma autocrítica por parte da instituição porque, para ela, trata-se de um ‘não problema’. E como não vemos denúncias contra as forças armadas circulando na imprensa ou na sociedade, a discussão não amadurece”, diz o pesquisador.
Em 2015, houve um breve sopro de mudança quando o Supremo Tribunal Federal (STF) retirou os termos “pederastia” e “homossexual” do Código Penal Militar (CPM). O código, em vigor desde 1969, tratava como delito a “pederastia ou outro ato de libidinagem”, prevendo pena para o militar “que praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar”. Por maioria, a Corte decidiu suprimir os dois termos, por considerá-los discriminatórios e homofóbicos, mantendo o entendimento de que militares de qualquer gênero, flagrados em atos considerados libidinosos, podem ser punidos.
Fuccille não nega que houve avanços, mas é inegável que o contexto local ainda esteja muito distante da abordagem dos demais países analisados — mesmo entre alguns pares sul-americanos. “Temos, cada vez menos, casos de pessoas que são expulsas por conta do comportamento ou da orientação sexual. Mas a possibilidade permanece nos dias de hoje”, explica. Ainda assim, o preconceito velado, tão arraigado na cultura militar, leva a que indivíduos que destoam do padrão heteronormativo sejam objeto de perseguição, punições, coerções e diferentes formas de constrangimento, terminando por pedir baixa e abrir mão da possibilidade de exercer uma carreira militar.
A resistência à incorporação de homossexuais às forças armadas passa pelo entendimento do que Fuccille chama de ethos da instituição, desenvolvido ao longo de sua história, protagonizada basicamente por indivíduos do sexo masculino. Nesse ambiente, enraizou-se um conjunto de tradições, costumes, comportamentos e culturas baseados na ideia de masculinidade que se estruturou nos últimos séculos. Esse conceito inclui o monopólio da força física e uma autopercepção de superioridade em relação ao gênero feminino e aos demais grupos minoritários.
Dada a centralidade desse ethos nas Forças Armadas, uma proposta de mudança nessa cultura dificilmente emanará da própria instituição, argumenta o professor, visto que, mesmo na sociedade como um todo, a pauta inclusiva ainda enfrenta resistências, sob o falso argumento de que pessoas homossexuais não teriam capacidade para responder às exigências da atividade militar. “É importante, portanto, colocar o assunto em debate na sociedade. E, sobretudo, qualificar esse debate, mostrando que não é o aspecto da inclusão quanto à orientação sexual que confere credibilidade ou demonstra o poder do combatente das forças armadas, mas sim o seu preparo”, diz.
Inclusão não compromete segurança
Em nenhum país do mundo onde houve a incorporação de indivíduos da comunidade LGBT às fileiras militares, a decisão partiu dos dirigentes dessas instituições, argumenta Fuccille: historicamente, as iniciativas vieram de lideranças políticas, que foram, por sua vez, provocadas por setores da sociedade.
“Mesmo entre as sociedades mais progressistas, a inclusão foi uma determinação de cima para baixo, uma diretriz dizendo ‘cumpra-se’. E, quando foi cumprida, notou-se que, de fato, a inclusão não compromete a capacidade de defesa nem a segurança do país”, diz. Talvez esse seja o caminho a ser seguido no caso brasileiro.
“Uma coisa que minha vivência entre os oficiais em Brasília mostrou é que eles são, em geral, muito legalistas”, diz o docente, que já atuou como diretor do Departamento de Política e Estratégia do Ministério da Defesa, entre 2003 e 2005. “Mas não vejo vontade política dos representantes em promover essa pauta ou levantar essa discussão neste momento.”
jornal da unesp – Edição: Montedo.com
O post Presença de grupos LGBT no exército brasileiro ainda enfrenta resistências, sugere pesquisa apareceu primeiro em Montedo.com.br.