Com salário em dólar, homens se alistam e encaram bombardeios, frio extremo e risco constante de morte; procura cresceu 20% desde março
Flávia Terres, Especial para O GLOBO — Dublin
No início de uma noite de inverno, um soldado capixaba e um ucraniano conversavam sobre um dia de trabalho, em que fuzis e granadas haviam sido indispensáveis entre as trincheiras de Kherson. Depois de comerem uma massa típica da Ucrânia feita no fogão improvisado de uma casa abandonada, ouviram o primeiro estouro na rua já coberta por destroços. Em segundos, o assovio do segundo estrondo cruzou o céu e atingiu o teto, que desabou. Do lado de fora, artilharia e drones kamikazes russos avançavam em direção à casa.
A fuga vivida no ano passado por Vinicios Santos do Carmo, 26 anos, é uma das situações às quais soldados brasileiros estão suscetíveis na guerra contra a Rússia. Segundo o Centro de Recrutamento Estrangeiro da Ucrânia, desde março, quando um movimento nas redes sociais intensificou o convite à participação de estrangeiros, houve um aumento estimado de 20% nas inscrições de brasileiros. Até o momento, o total de soldados de diferentes países recrutados nos últimos três meses é de 9.620 pessoas. Para proteger operações internas em andamento, não é informado quantos são do Brasil.
Ao menos 30 dias no front
O brasileiro desembarcou na Ucrânia em novembro de 2022, quando as tropas do país começavam a retomar cidades na região de Kherson. À época, não havia informações sobre a participação estrangeira no front. Ainda assim, com experiência como militar no Brasil desde os 18 anos, o soldado comprou a passagem, avisou a família de última hora e viajou até o país, onde foi aceito e enviado para as trincheiras.
Hoje, os estrangeiros que desejam servir precisam fazer a inscrição online e, antes de serem recrutados oficialmente, passam por avaliações e entrevistas com militares. Nesta etapa, recebem informações sobre a realidade da guerra, o tipo de preparo físico e psicológico de que precisam, e explicam quais são suas motivações. O processo serve também para garantir que não haja agentes inimigos entre os candidatos.
Após serem recrutados, os soldados assinam um contrato com o Ministério da Defesa e recebem um documento que lhes permite passar pela imigração nos aeroportos. O contrato tem duração de três anos, mas há a possibilidade de ser encerrado após seis meses. O salário pode variar entre US$ 3 mil e US$ 5 mil por mês (entre R$ 16.700 e R$ 27.800). Entretanto, para receber os valores divulgados, é preciso trabalhar pelo menos 30 dias no front. Soldados que iniciam a jornada pelo período do treinamento, por exemplo, recebem US$ 490 (R$ 2.730).
— Muitos continuam após o fim do contrato, outros voltam para o Brasil. Uma coisa que as pessoas talvez não saibam é que a vida continua. A linha de frente é enorme, são mais de 1.200km, mas, no centro da Ucrânia, a sociedade leva uma vida relativamente normal — diz o comissário de recrutamento do Ministério da Defesa, Oleksiy Bejevets.
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Mesmo com a vivência em combate, o ataque vivido por Carmo era incomum — normalmente, a batalha só ocorre na linha de frente. A ofensiva russa só terminou na manhã seguinte e deixou ruas e casas destruídas, incluindo aquela onde o brasileiro morava.
— Logo que cheguei no front, em 2022, um tanque acertou a quina da minha trincheira, e ela começou a desabar. Tive tempo de me esconder, mas o segundo disparo acertou lá dentro. Não sei explicar o barulho, uma espécie de zumbido no ouvido, e na hora senti meu corpo inchar. Ali eu pensei que fôssemos morrer — lembra o soldado.
A uma distância de pouco mais de 600 quilômetros de Kherson, na floresta de Serebriansk, um soldado americano precisou ser escondido entre arbustos pela equipe de outro brasileiro, Rafael dos Santos Leite, 28 anos. Ferido e sem conseguir caminhar, o combatente era carregado em cima de uma maca quando os russos encontraram o grupo.
— Eram muitos disparos e explosões de todos os lados. Não podíamos continuar carregando ele, então o escondemos perto de uma árvore. Usamos uma rede de camuflagem, que também serve como proteção contra drones, mas foi nela que o drone lançou uma granada — contou ao GLOBO. — Pensamos que o pior tinha acontecido, mas ele estava bem e conseguimos tirá-lo do front.
Nordestino e ex-marceneiro, o agora soldado não tinha experiência militar quando decidiu se unir às tropas em 2023. Determinado a encontrar um propósito, viajou do Brasil de avião até a Polônia e de lá percorreu 800km de ônibus até Kiev. Mas, ao contrário de Carmo, precisou passar por campos de treinamento antes de ser enviado às trincheiras. Por dois meses, recebeu formação para manusear armas e drones, disparar granadas e fugir de ataques.
Mas, logo no início da jornada, Leite enfrentou um inimigo que desconhecia: o inverno rigoroso, com temperaturas que podem chegar a -20°C:
— Quando cheguei, era inverno e tive febre porque não estava acostumado com o frio. Uma senhora comprou medicamento para mim. Tentei pagar, mas ela não aceitou. Desde o início, fui tratado com gratidão e por isso continuo aqui.
Mais de 100 nacionalidades
A estratégia para atrair estrangeiros começou em março, com vídeos publicados em português e espanhol nas redes sociais do Centro de Recrutamento Estrangeiro — o Brasil é o segundo país com maior número de participantes, atrás da Colômbia. Segundo Bejevets, o convite é direcionado não apenas para quem já tem experiência militar, mas para qualquer pessoa, homem ou mulher, com idades entre 18 e 60 anos, sem histórico criminal ou doenças crônicas e em boas condições físicas.
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— Cidadãos de mais de 100 nacionalidades já fazem parte do Exército ucraniano, servindo oficialmente. É uma participação eficaz, do ponto de vista militar, porque os estrangeiros estão motivados. E é muito importante para nós porque, em comparação com a Rússia, temos menos capital humano. E, embora esta seja uma guerra altamente tecnológica, com drones e armamentos sofisticados, o soldado na linha de frente ainda é a nossa prioridade número um.
Sem respaldo do governo
A participação de brasileiros que se inscrevem para integrarem tropas em guerra não tem respaldo do Itamaraty. Em nota, o Ministério das Relações Exteriores, por meio da Embaixada do Brasil em Kiev, afirma que “permanece à disposição para prestar assistência consular à comunidade brasileira na Ucrânia”, mas “reitera sua recomendação de que sejam evitadas todas as viagens ao país, bem como a permanência”.
Mesmo sem a recomendação do Brasil na participação direta no confronto, Vinicios Santos do Carmo e Rafael dos Santos Leite desejam continuar na Ucrânia até o fim da guerra para “celebrar o dia em que artilharia, mísseis e drones parem de matar o povo”.
A embaixada informa que também tem um número de plantão para brasileiros que precisem de algum suporte, e o contato pode ser feito pelo WhatsApp ou pessoalmente.
O GLOBO
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