Armas capturadas pela Polícia nas comunidades da cidade do Rio de Janeiro
Cel (Reserva) Fernando Montenegro
A percepção de um “Estado criminoso” surge, inicialmente, como uma abstração distante, talvez de um enredo de ficção. Para compreendê-lo, é crucial diferenciá-lo do Estado Falhado, este último caracterizado pela incapacidade de prover serviços básicos e de manter o monopólio legítimo da força em seu território. O Estado Criminoso, por sua vez, vai além da mera falha; ele implica que as estruturas estatais, ou seus agentes, estão ativamente envolvidas ou se beneficiam diretamente de atividades ilícitas, transformando a ilegalidade em um instrumento ou em um fim em si.
Contudo, ao examinar as intrincadas conexões entre poder, ilegalidade e administração no Brasil, constatamos que essa realidade, longe de ser apenas uma invenção, se manifesta de maneiras cada vez mais concretas em nosso cotidiano. Não se trata de uma acusação simplificada, mas de um convite a uma análise aprofundada sobre como a autoridade estatal, por vezes, serve a propósitos ilícitos, e a força do crime, em uma perigosa relação simbiótica, beneficia o próprio Estado, estabelecendo um caminho preocupante em direção à formação de uma nação à margem da lei.
A Corrupção Endêmica e a Retração Punitiva
Uma das bases que caracterizam a formação de uma nação à margem da lei é a corrupção disseminada. No Brasil, essa ferida vai além de meros desvios isolados e se insere na própria natureza das interações sociais e políticas. O conhecido “jeitinho brasileiro”, muitas vezes idealizado, é a manifestação mais elementar de uma cultura que tolera pequenas ilegalidades e favores para contornar formalidades, mas que se amplia em esquemas de bilhões.
Operações como a Lava Jato escancararam um sistema complexo de lavagem de dinheiro, apropriação indevida e fraudes em processos licitatórios, envolvendo figuras de destaque na política e no setor empresarial. A utilização de empresas de fachada, como a JD Consultoria no caso do ex-ministro José Dirceu, ou as intrincadas redes de doleiros desmascaradas pela Polícia Federal, não são exceções, mas evidências de uma corrupção profunda que atinge desde a gestão pública até o segmento privado. Pesquisas de opinião, que indicam a aceitação ou até mesmo a participação da população em pequenas práticas corruptas, reforçam a ideia de que essa endemia se tornou uma parte aceita, ainda que deplorável, do nosso panorama social.
No entanto, a narrativa da Lava Jato, outrora símbolo de um combate rigoroso à impunidade, tem sido progressivamente reescrita. A anulação de condenações significativas, fundamentadas em questões processuais e de competência, como as que envolveram o ex-presidente Lula, gerou um debate intenso sobre a eficácia e a durabilidade das ações anticorrupção. Há uma percepção crescente de que o Poder Judiciário, em sua complexidade e por vezes em seu ativismo judicial, tem desempenhado um papel crucial na aceleração desse processo de retração punitiva.
As decisões, que desconstroem anos de investigação, levantam questionamentos sobre os critérios de justiça e a estabilidade da persecução penal, insinuando que a balança da lei pode pender de forma diferente dependendo dos atores envolvidos e das tensões políticas do momento. O que se observou, para muitos, foi um ativismo judicial feroz contra opositores, mas que, em outros momentos, pareceu operar para desmantelar os próprios mecanismos de combate à corrupção.
A Infiltração do Crime e a Governança Sombria
A infiltração de facções criminosas nas estruturas e na administração do próprio Estado é um dos sinais mais preocupantes. O Brasil tem observado o crescimento de grupos criminosos como o Primeiro Comando da Capital (PCC), que, em 2006, conseguiu organizar uma série de ataques sincronizados a partir do interior dos presídios de São Paulo. Isso não só demonstra a falência do sistema carcerário, mas também a capacidade dessas organizações de cooptar agentes e atuar em diversas esferas do governo. Depoimentos de colaboradores, presentes em investigações, descrevem cenários onde policiais aceitam subornos para soltar criminosos, ou advogados servem como elos financeiros entre o crime e agentes da lei, ilustrando uma realidade em que a fronteira entre o legal e o ilegal se esvai, e a burocracia estatal é utilizada para servir a interesses criminosos.
Conectada a essa infiltração, a ampla atuação de grupos criminosos nas dinâmicas sociais, oferecendo uma administração alternativa em áreas socialmente isoladas, é outra dimensão dessa situação. Em diversas comunidades e periferias brasileiras, o governo formal se ausenta, e o vácuo de poder é preenchido por facções criminosas e milícias. Esses grupos não só controlam o comércio de entorpecentes, mas impõem suas próprias “normas”, atuando na resolução de conflitos, proibindo certas atividades (como bailes de rua durante a pandemia de COVID-19) e até mesmo regulando serviços essenciais.
Esta “administração criminosa” revela uma aceitação velada de poderes entre o crime e o Estado. Não se trata de um acordo formal, mas de uma coexistência disfarçada, onde a inatividade estatal ou a corrupção de seus agentes permite que essas estruturas criminosas prosperem e consolidem seu controle territorial e social, configurando um cenário em que a autoridade do Estado é posta em xeque e, por vezes, suplantada.
A Economia Submersa e a Fragilização da Justiça
A relevante contribuição das atividades ilícitas para a economia nacional é um fator que contribui para a fragilidade do Estado. O contrabando de produtos como cigarros e combustíveis, a adulteração de mercadorias e a lavagem de dinheiro por meio de complexas redes corporativas e empresas offshore injetam bilhões de reais na economia informal e resultam em perdas fiscais exorbitantes para o governo. Setores inteiros da economia são afetados por essa concorrência desleal, erodindo os fundamentos da legalidade.
Essa interpenetração do ilegal no legal é facilitada pela deterioração do sistema de combate ao crime. O sistema prisional, com suas repetidas revoltas, mortes e laços intrínsecos com facções, é um claro sinal de sua ineficácia. Instrumentos como o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), embora concebidos com boas intenções, por vezes contribuem para um sistema onde a busca pela verdade histórica e a punição efetiva são relegadas a segundo plano, priorizando a rapidez e a desjudicialização, mas correndo o risco de enfraquecer a capacidade do Estado de realmente enfrentar o crime em sua essência.
A Insegurança Jurídica e a Batalha do Judiciário
Por fim, a instabilidade jurídica é tanto um sintoma quanto um catalisador desse processo de deterioração. Legislações mal formuladas, com lacunas e contradições, somadas à inconstância de decisões judiciais e políticas, geram um clima de incerteza que desestimula investimentos e compromete a produtividade. A alteração repentina de regimes tributários, como a tributação de exportações de petróleo por um período limitado, ilustra como decisões políticas podem criar grande volatilidade para o setor produtivo.
Essa fragilidade legal abre precedentes para a assimilação de práticas ilícitas como ferramenta política do Estado. Quando a corrupção se torna um meio de negociação política, ou quando a impunidade é manipulada nos bastidores, o Estado não só falha em sua função de assegurar a ordem, mas passa a utilizar a ilegalidade para seus próprios objetivos, ainda que disfarçados de estratégias políticas. A atuação do Judiciário, especialmente em casos de grande repercussão, é constantemente observada sob essa ótica de ativismo judicial.
Decisões que resultam na anulação de condenações ou na morosidade de processos contra figuras influentes, enquanto outros casos avançam com celeridade, alimentam a percepção de uma justiça seletiva, que se manifesta de forma enérgica contra certos “oponentes” e de forma mais branda em outros contextos. Essa percepção, independentemente de sua veracidade factual, contribui para a descrença na imparcialidade do sistema e, consequentemente, para a insegurança jurídica geral.
Conclusão: O Brasil na Encruzilhada da Legalidade
Diante de todos esses elementos – a corrupção que se tornou generalizada, a infiltração de criminosos nas instituições, o surgimento de administrações paralelas, a economia impulsionada por atividades ilegais, a fragilidade do sistema judiciário e a incerteza legal que abala a confiança –, é inegável que o Brasil enfrenta um desafio de proporções existenciais. As evidências indicam uma progressiva concretização das características de um país corroído pelo crime. Não é um rótulo simples de aceitar, mas é um alerta urgente.
A força do crime não apenas desafia o Estado, mas o fragiliza internamente, transformando-o em um agente, mesmo que passivo, de suas próprias mazelas. Reconhecer essa realidade é o primeiro e mais doloroso passo para buscar a superação desse cenário. A batalha pela integridade, pela transparência, pelo fortalecimento das instituições e pela garantia de um Estado de Direito eficaz é mais do que uma pauta política; é uma questão de sobrevivência para a democracia e para o futuro da nação. Somente através de um compromisso inabalável com a verdade e a justiça, e da recusa em aceitar a conivência com o ilícito, poderemos desviar o Brasil dessa trajetória perigosa e reconstruir as bases de um Estado que sirva verdadeiramente aos seus cidadãos, e não ao crime.
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