Tenente-coronel do Exército responsável por fiscalizar armas pagou serviços de marcenaria com armas desviadas

 

Justiça aceita denúncia do Ministério Público Militar contra oficial; promotor obteve provas de que ele, além de se apropriar de armamento, inseriu dados falsos no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas

Vera Araújo
Uma carabina, três pistolas e um revólver foram entregues como forma de pagamento por um serviço de marcenaria na casa do tenente-coronel Alexandre de Almeida, na Urca, Zona Sul do Rio. O valor do serviço era de R$ 21,5 mil. O que o marceneiro não sabia era que as cinco armas, com certificados de registro e guias de tráfego em seu nome, haviam sido desviadas do Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados da 1ª Região Militar do Exército, chefiado por Almeida entre dezembro de 2016 e setembro de 2018. A denúncia foi apresentada pelo Ministério Público Militar (MPM) e aceita pela 2ª Auditoria da 1ª Circunscrição Judiciária Militar do Rio, na última sexta-feira (01/08).

O tenente-coronel Almeida e outras seis pessoas — entre militares e civis — são réus em um processo que investiga um esquema de desvio de armamentos e crimes contra a administração militar. De acordo com a denúncia da 4ª Procuradoria de Justiça Militar no Rio, entre 2019 e 2021, os investigadores apreenderam 458 armas, algumas recebidas de pessoas que as adquiriram de boa-fé. Entre elas estão as cinco entregues por Almeida ao marceneiro, que, ao tomar conhecimento pela imprensa de que o oficial estava sendo investigado, passou a desconfiar que as armas recebidas faziam parte do esquema e as devolveu, voluntariamente.

Trecho da denúncia do Ministério Público Militar contra o tenente-coronel Alexandre de Almeida — Foto: Reprodução MPM

Em abril de 2019, O GLOBO revelou, com exclusividade, as investigações sobre o desvio de armas, que apontavam Almeida como chefe da operação criminosa. A apuração se estendeu ao longo dos anos, alcançando outro oficial — o tenente-coronel César Augusto Pereira Mattos, que continua na ativa —, além de três sargentos e dois civis. Segundo o MPM, o grupo cometeu crimes como peculato qualificado, falsidade ideológica, inserção de dados falsos em sistema de informações e posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e restrito.

Ainda segundo a denúncia, assinada pelo promotor de Justiça Militar Mário Porto, Mattos atuou entre 2018 e 2019 no Batalhão de Manutenção e Suprimento de Armamento, onde também se aproveitou do cargo para subtrair armamentos. Há indícios de que pelo menos 20 armas foram desviadas dessa unidade. Com o auxílio de Almeida, Mattos teria conseguido transferir a posse das armas para seu próprio nome. Um trecho da denúncia explica a motivação: “com a finalidade de que este (Mattos) auferisse vantagem indevida decorrente da aquisição da condição de colecionador”.

Como tudo começou
O fio da meada foi o desvio de uma pistola calibre 9mm, da marca Taurus, entregue por um coronel ao Serviço de Produtos Controlados pouco antes de Almeida passar para a reserva. Ao buscar informações sobre a arma, já sob nova chefia, o coronel descobriu que a pistola havia sido transferida ilegalmente para um clube de tiro no Espírito Santo. As investigações do Exército e do MPM revelaram que a arma havia sido repassada para Rafael de Almeida — CAC (caçador, atirador e colecionador) e irmão do tenente-coronel. Posteriormente, ele teria deixado o armamento no clube.

Durante o período em que comandou o Serviço de Fiscalização de Produtos Controlados da 1ª Região Militar, Almeida era a autoridade máxima no controle de armas nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Suas atribuições incluíam a fiscalização da importação e comércio de armas, clubes de tiro, venda de explosivos, blindagem de veículos e atividades dos CACs.

Segundo o MPM, uma prática comum no esquema era o desvio de armas entregues por familiares de militares falecidos, que deveriam ser destruídas conforme prevê a Lei do Desarmamento. As investigações apontam que Almeida inseriu dados no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA) sem instaurar os procedimentos administrativos exigidos pela legislação, beneficiando a si mesmo e a terceiros. Em alguns casos, teria utilizado o nome do próprio filho para registrar armas.

Entre os armamentos desviados e que deveriam ter sido destruídos, alguns tinham origem ilícita ou procedência duvidosa, com vínculos com o tráfico de drogas, caça ilegal ou apreensões policiais. De acordo com o MPM, essas armas foram subtraídas do patrimônio militar pelos envolvidos no esquema.

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Houve casos em que os armamentos tiveram seus números de série raspados para dificultar a rastreabilidade, favorecendo os compradores ilegais.

A demora no oferecimento da denúncia foi atribuída ao período da pandemia, quando diligências não puderam ser realizadas.

Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, destacou que o caso evidencia as fragilidades do sistema de controle de armas do Exército:

— O caso do tenente-coronel Almeida, revelado em 2019, escancarou que a corrupção no setor de controle de armas e munições do Exército atingia até a alta cúpula da fiscalização. O escândalo mostrou, na prática, as fragilidades dos sistemas utilizados pelo Exército até 2025 — antes da transferência dessa função para a Polícia Federal. O sistema permitia a regularização de armas sem documentação, inclusive em casos em que armas já apreendidas pela polícia e enviadas para destruição voltavam a circular com apoio do esquema criminoso, que produzia documentação falsa para essas mesmas armas.
O GLOBO

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