Estamos diante de um divisor de águas histórico. A era em que o narcotráfico era combatido com operações policiais pontuais e investigações fragmentadas acabou.
Foto: Membros do Exército Colombiano realizam salto com paraquedistas da USAF no Exercício “Relámpago de los Andes” em Coveñas, Colombia. US Air Force South 25 Julho 2025
Felipe Gonzales Saraiva da Rocha
Graduado em Relações Internacionais,
Especialista em Subversão,
Defesa e Segurança
Nos últimos dias, uma decisão administrativa tomada pelo presidente Donald Trump alterou de forma abrupta o tabuleiro geopolítico e jurídico do combate às drogas no hemisfério ocidental. Pela primeira vez em décadas, o governo norte-americano autorizou o uso formal da força militar contra cartéis de drogas latino-americanos, após classificá-los como Organizações Terroristas Estrangeiras (Foreign Terrorist Organizations – FTOs). Essa decisão, comunicada inicialmente de forma reservada e logo confirmada por canais oficiais, insere o narcotráfico definitivamente no mesmo patamar de ameaça que grupos jihadistas internacionais como Al-Qaeda e Estado Islâmico, rompendo a barreira entre repressão policial e guerra irregular.
Não se trata mais apenas de apreensões, sanções financeiras ou cooperação jurídica internacional: estamos diante de uma política que habilita incursões militares, operações navais, ataques aéreos e emprego de Forças de Operações Especiais contra redes criminosas que cruzam fronteiras, utilizando o manto jurídico da luta contra o terrorismo global.
O marco jurídico que fundamenta essa guinada encontra-se em legislações americanas de amplo alcance, como o Immigration and Nationality Act (INA), a International Emergency Economic Powers Act (IEEPA) e a Ordem Executiva 13224, que permitem a designação de entidades estrangeiras como terroristas ou globalmente sancionadas por terrorismo. Uma vez que tais grupos passam a figurar nessa lista, todos os seus ativos financeiros sob jurisdição americana são bloqueados, qualquer forma de apoio material se torna crime federal e os envolvidos passam a ser passíveis de prisão, extradição ou sanções secundárias.
Agora, somado a esse arsenal, há uma diretriz expressa ao Pentágono: preparar planos operacionais de emprego militar, o que pode incluir desde destruição de laboratórios e rotas logísticas até a captura e/ou neutralização de lideranças em território estrangeiro.

VANT MQ-9 Reaper, um dos principais sistemas que serão utilizados pelo Pentágono para ações militares na América Latina para coleta de inteligência e neutralização de atividades narcoterroristas, como a destruição de estruturas e de recursos humanos.
Essa evolução vem na esteira da decisão de janeiro de 2025, quando Trump já havia aberto caminho para classificar os maiores cartéis do continente — como Sinaloa, Jalisco Nueva Generación, Golfo, Cartel del Noreste e até redes emergentes como Tren de Aragua — como FTOs e SDGTs (Specially Designated Global Terrorists). O passo de agora é qualitativamente diferente, pois autoriza uso de força letal contra esses alvos. O México reagiu com vigor: a presidente Claudia Sheinbaum declarou publicamente que não admitirá qualquer intervenção militar estrangeira em solo nacional, evocando a soberania do Estado mexicano. Ainda assim, a ordem de Trump representa um aviso inequívoco: os Estados Unidos estão dispostos a agir unilateralmente se entenderem que a ameaça dos cartéis afeta sua segurança nacional, mesmo diante de objeções de governos locais.

O impacto desse movimento inevitavelmente repercute no Brasil, onde cartéis como Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Amigos dos Amigos (ADA), Terceiro Comando Puro (TCP), Guardiões do Estado (GDE), Família do Norte (FDN) e até organizações com atuação em áreas rurais, como a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), permanecem classificadas juridicamente apenas como “organizações criminosas” ou “facções”.
A Lei nº 12.850/2013, que define organização criminosa no Brasil, exige apenas a associação de quatro ou mais pessoas com divisão de tarefas para a prática de crimes. É um enquadramento raso e desproporcional quando comparado à realidade concreta desses cartéis, que, além de movimentar bilhões em tráfico de drogas e armas, assumem métodos idênticos aos de grupos terroristas: execuções públicas, esquartejamentos, decapitações, estupros coletivos, destruição de infraestrutura pública, ataques coordenados contra forças de segurança, uso de comunidades como reféns coletivos, assassinatos em massa dentro de presídios, atentados incendiários contra transportes urbanos e destruição de infraestruturas do Estado.
Os exemplos abundam. Em 2017, o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, mostrou ao mundo cenas dignas das guerras mais brutais do Oriente Médio: dezenas de detentos esquartejados, decapitados e empilhados em corredores ensanguentados. Em Fortaleza, a facção GDE paralisou a cidade em 2019 com uma onda de atentados coordenados, queimando ônibus, utilizando explosivos em viadutos, atacando delegacias e espalhando o terror entre a população civil.
No Rio de Janeiro, a cada incursão do Comando Vermelho ou do Terceiro Comando Puro em favelas rivais, moradores são alvejados indiscriminadamente, corpos são exibidos em praças como forma de intimidação e bairros inteiros tornam-se reféns de tribunais do crime que aplicam tortura, linchamentos, estupros e execuções sumárias como forma de “justiça paralela”. A LCP, em zonas rurais, adota métodos de guerrilha armada, com queima de fazendas, expulsão de famílias e emboscadas contra forças policiais.

Na definição americana, terrorismo é o uso sistemático de violência contra civis ou governos com a finalidade de intimidar ou coagir, especialmente quando associado a objetivos políticos, ideológicos ou financeiros que ameacem a segurança nacional. À luz disso, qualquer observador imparcial reconhece que os cartéis brasileiros se encaixam perfeitamente no conceito de narcoterrorismo. E mais: ao abastecer o mercado de cocaína que flui dos Andes até a Flórida, passando pelos portos brasileiros, esses grupos impactam diretamente o consumo interno nos Estados Unidos, o que basta para enquadrá-los como ameaças diretas à segurança daquele país.
O contraste é devastador e humilhante. Enquanto os Estados Unidos mobilizam sua máquina militar contra cartéis transnacionais, o Brasil insiste em minimizar seus grupos narcoterroristas, tratando-os como problema “de polícia”. Não há, em território nacional, uma legislação que as reconheça como terroristas, tampouco políticas públicas capazes de responder à altura. O país, por complacência ou conveniência, fecha os olhos para uma guerra irregular que já está em andamento dentro de suas fronteiras, uma guerra que devasta comunidades inteiras, corrói instituições, domina presídios e influencia eleições em determinados territórios.
Nos idos de outubro de 2023, diante da escalada de violência no Rio de Janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou com ênfase: “Eu não quero as Forças Armadas na favela brigando com bandido, não é esse o papel das Forças. Enquanto eu for presidente, não tem GLO!”. Essa postura, que exclui categoricamente a mobilização militar no combate ao crime organizado em territórios urbanos, contrasta frontalmente com a nova estratégia adotada pelos Estados Unidos, que não hesitaram em designar cartéis como organizações terroristas e autorizar o uso da força militar contra eles.
Juridicamente, aos olhos americanos, a recusa brasileira pode ser interpretada como conivência ou, no mínimo, negligência deliberada — especialmente porque, sob o Immigration and Nationality Act (INA) e a International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), o não enfrentamento de organizações narcoterroristas com todos os instrumentos disponíveis pode ser visto como omissão facilitadora. Ou seja, ao fechar os olhos para o poder de fogo e a estrutura paramilitar dos cartéis — reafirmando repetidamente que elas não são problema para as Forças Armadas do Brasil — o governo brasileiro envia uma mensagem estratégica clara: não está disposto a enfrentar o narcoterrorismo com a mesma seriedade que os Estados Unidos, o que apenas legitima, internacionalmente, que tal enfrentamento seja realizado sem olhar para sua soberania.

Ao não reconhecer formalmente esses grupos como terroristas, o Brasil abre mão de instrumentos poderosos de cooperação internacional: não pode acionar de forma plena a Convenção da ONU para Supressão do Financiamento do Terrorismo, não pode incluir seus cartéis em listas de sanções globais e tampouco mobiliza sua diplomacia para isolar financeiramente essas redes.
Enquanto isso, os Estados Unidos já dispõem de base legal para processar qualquer indivíduo ou entidade que ofereça apoio — logístico, financeiro ou político — a esses grupos, mesmo que se encontrem em território estrangeiro. O resultado prático é claro: caso o Brasil insista em sua omissão, pode vir a assistir, em futuro próximo, operações militares do Pentágono mirando diretamente seus carteis, sem qualquer consulta prévia ao governo brasileiro.

Essa perspectiva não é meramente especulativa. A ordem recente do Presidente Trump é explícita: autoriza o Pentágono a preparar opções de ataque, seja em águas internacionais, seja em solo estrangeiro, contra organizações já designadas como terroristas. E se hoje o alvo central são os cartéis mexicanos e venezuelanos, nada impede que, em relatórios subsequentes, cartéis brasileiros sejam incluídos como objetivos legítimos. Nesse cenário, o Brasil não apenas se verá desmoralizado perante a comunidade internacional, como o país transmitirá ao mundo a imagem de cumplicidade tácita, como se houvesse algum pacto de conveniência entre elites políticas, estruturas de poder e o crime organizado.
Aos olhos da comunidade internacional, o Brasil arrisca-se a ser visto não como vítima de seus cartéis, mas como um Estado permissivo, complacente e até cúmplice de narcoterroristas que já transformaram vastas regiões do território nacional em regiões altamente controladas e influenciadas pelo terror.

Em 2023, o então a época Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, foi gravado com sua equipe entrando com escolta mínima na favela Nova Holanda, área fortemente armada e controlada pelo Comando Vermelho, no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A visita teria sido para um evento promovido pela ONG Redes da Maré.
Estamos diante de um divisor de águas histórico. A era em que o narcotráfico era combatido com operações policiais pontuais e investigações fragmentadas acabou. A nova realidade é de guerra assimétrica, em que Estados nacionais mobilizam forças armadas para neutralizar inimigos não estatais, que desafiam diretamente o monopólio da violência legítima. Os Estados Unidos entenderam isso, adaptaram sua legislação e não hesitaram em equiparar cartéis a terroristas globais. O Brasil, por outro lado, segue preso a uma retórica frágil, incapaz de enfrentar de frente um inimigo que, de fato, já declarou guerra à sociedade. Essa omissão, mais do que um erro político, é um ato de covardia nacional.
Se nada mudar, o Brasil ficará registrado na história como o país que preferiu ignorar a verdade, chamando de facções criminosas aquilo que, em essência, sempre foram: organizações terroristas sanguinárias, cuja permanência no poder paralelo custará não apenas milhares de vidas, mas também a credibilidade e a soberania de um Estado que insiste em não se reconhecer em guerra.
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