Documentos indicam que regime usa o transporte e, mais recentemente, a produção de drogas como uma fonte auxiliar e generosa de verbas, ajudando a amenizar sanções externas
Filipe Barini
No centro da retórica do governo de Donald Trump contra o narcotráfico na América Latina, que envolveu a movimentação de navios de guerra e tropas e acendeu alertas em toda a região, as relações de autoridades na Venezuela com organizações criminosas são longas e complexas e, apesar de anteriores ao chavismo, têm prosperado sob Nicolás Maduro. Em Caracas, ao mesmo tempo em que o regime se prepara para uma hipotética intervenção americana, a máquina de propaganda entrou em ação para blindar o Palácio Miraflores.
Foi nessa ocasião que surgiu o termo Cartel de los Soles, ou Cartel dos Sóis — declarado em julho como organização terrorista por Washington, que apontou Maduro como seu líder. Em 1993, dois oficiais da Guarda foram investigados por tráfico e, por serem comandantes de brigada, traziam pequenos emblemas de sóis em seus ombros, dando origem ao nome. Como aponta o relatório, naquela ocasião os militares em grande parte viam os traficantes como uma maneira de conseguir propinas fazendo vista grossa para suas atividades ilícitas.
Morte de Chávez
Mas os tremores políticos regionais mudaram esse cenário. Em 2002, o presidente Hugo Chávez sofreu um golpe (fracassado) que pavimentou o caminho para o recrudescimento do regime, no qual as Forças Armadas, leais ao chavismo, consolidaram seu poder. Na vizinha Colômbia, a eleição de Álvaro Uribe levou a uma ofensiva militar, apoiada financeiramente pelos Estados Unidos, contra o narcotráfico, e que tinha em grupos como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) seus principais alvos.
Se Uribe, recentemente condenado por suborno e fraude, via organizações como as Farc como inimigas, Chávez as considerava aliadas ideológicas e de segurança na América do Sul. De acordo com documentos obtidos após uma operação que terminou com a morte de Raúl Reyes, um dos líderes do grupo, em 2008, o então presidente venezuelano teria oferecido uma ajuda de US$ 300 milhões (jamais paga) e o acesso ao seu território à milícia armada. Naquela ocasião, Caracas já havia suspendido sua cooperação com a agência antidrogas dos EUA, a DEA, por alegações de espionagem.
Como detalha o estudo do Insight Crime, “com militares cooperando ativamente com as guerrilhas na região da fronteira e com carta branca para participar de atividades criminosas, o cenário estava pronto para se aprofundarem ainda mais no tráfico de drogas”.
“Logo, células nas forças de segurança começaram não apenas a subornar traficantes de drogas para permitir que transportassem remessas, mas também a alavancar suas alianças com guerrilhas e criminosos para comprar, armazenar, transportar e vender cocaína”, diz a organização.
A morte de Chávez, em 2013, e o agravamento da crise econômica da Venezuela, agora comandada por Maduro, foram novos impulsos para o envolvimento cada vez maior de integrantes do Estado com o narcotráfico, encarado como uma fonte importante de divisas em um momento de crise e instabilidade institucional.
O que hoje se conhece como Cartel de los Soles, afirma a Insight Crime, assemelha-se menos a um cartel em seu modelo mais famoso — uma organização criminosa com hierarquias estabelecidas, assim como lideranças e atividades delimitadas — e mais a um ecossistema no qual agentes estatais exercem seu poder em diferentes níveis de crime.
“Ele é composto por uma série de nós regionais militares, políticos e criminais, unidos por um regime nacional que garante a impunidade de seus aliados”, aponta o relatório. “Nesse sistema, o regime recompensa a lealdade por meio da designação para regiões conhecidas por oferecerem inúmeras oportunidades de enriquecimento por meio do tráfico de drogas e outras economias criminosas.”
No começo da década passada, quando Maduro tentava se manter no cargo, as atividades de trânsito de drogas rumo à Europa e aos EUA ganharam a companhia de novas plantações em regiões de fronteira, como no estado de Apure: ali, apesar das condições do terreno não favorecerem o plantio da folha de coca, as plantações se multiplicaram, com o aval e, em determinados casos, o apoio de militares e autoridades do regime.
— As Farc usam camponeses ou grupos indígenas para preparar o solo, plantar e colher as plantações — disse ao Insight Crime um ex-integrante do governista Partido Socialista Unido da Venezuela. — A melhor mão de obra barata é a dos indígenas. Eles os pagam quando querem; quando não querem pagar, os ameaçam.
Em 2023, documentos sigilosos do governo colombiano, obtidos pelo consórcio Projeto de Reportagem sobre Crime Organizado e Corrupção, jogaram luz sobre como o regime de Maduro havia dado muitos passos adiante na cooperação com o narcotráfico. Segundo números do governo americano, até 350 toneladas de cocaína são exportadas por ano através da Venezuela, em boa parte rumo aos Estados Unidos, com o Cartel de los Soles, a organização que tem os militares como força motriz, se consolidando como protagonista ao lado do Tren de Aragua, outro grupo na mira de Trump.
— Eles são os que estão no comando agora, diretamente envolvidos no transporte de cocaína, na distribuição de cocaína, não apenas para os Estados Unidos, mas também para a Europa — disse Mike Vigil, ex-chefe de Operações Internacionais DEA, sobre os militares venezuelanos, citado pelo Miami Herald, que integra o consórcio jornalístico.
Campanha para blindar o governo
Ouvidos pelo Miami Herald, ex-integrantes da DEA que analisaram os documentos são unânimes na acusação de que, embora não envolvidos em atividades práticas, autoridades como Maduro e o ministro da Defesa, Vladimir Padrino López, dão as ordens e “estão diretamente envolvidos” no esquema, que rende anualmente alguns bilhões de dólares ao regime. Um dinheiro que ajudou o governo a amenizar o impacto das sanções internacionais nos últimos anos.
Agora, com uma recompensa de US$ 50 milhões por sua captura, e com navios americanos perto de sua costa, Maduro tem despejado uma parcela considerável de seu orçamento em uma ofensiva de comunicação para blindar o governo. Como revelou o portal Infobae, a iniciativa inclui mensagens, camisetas, manifestações e a atuação de funcionários públicos como agentes de propagação de discurso oficial. Em paralelo, ao feitio do regime, opositores passaram a ser ameaçados de prisão, e aqueles que estão detidos tiveram o contato com o mundo exterior reduzido, quando não eliminado.
No caso dos militares, recentemente foi emitida uma ordem para que chefes de unidades militares declarem, em vídeo, sua lealdade ao regime. As mensagens incluem menções elogiosas a Maduro, ao ministro do Interior e da Justiça e todo poderoso no sistema chavista, o ministro da Justiça, Diosdado Cabello e outros integrantes do primeiro escalão. Também não são poucas as menções, em tom nada elogioso, a membros do governo americano ou à líder da oposição venezuelana, María Corina Machado.
O GLOBO – Edição: Montedo.com
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