Corte de Contas aponta indício de fraude, que aconteceria pela atuação coordenada de um grupo de empresas de “alto risco” para direcionar as contratações de gêneros alimentícios
Tiago Alencar
Vitória – Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) revela indícios de fraude na aquisição de gêneros alimentícios pelas Forças Armadas no país. O relatório da Corte mira supostos gastos irregulares para aquisição, por meio de licitações e atas de registro de preço, de itens que vão de paçoquinha a filé mignon, picanha, salmão e bacalhau. A Escola de Aprendizes Marinheiros do Espírito Santo (Eames) é implicada no balanço feito pela área técnica da Corte de Contas.
Os gastos suspeitos vieram à tona em acórdão do TCU de 30 de julho deste ano, ao qual reportagem de A Gazeta teve acesso. No documento é pontuado que a auditoria analisou as aquisições de gêneros alimentícios pelos Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica no período de 2017 a 2021.
Ainda conforme o acórdão do TCU, a fiscalização foi motivada pelo alto valor dessas contratações, que totalizaram cerca de R$ 4 bilhões no período. O montante representa 58% dos gastos totais da Administração Pública Federal com alimentos nos anos analisados.
O Ministério da Defesa e a Marinha foram procurados pela reportagem por diversas vezes para comentar o caso desde o dia 7 de agosto. No entanto, não houve envio de resposta aos questionamentos até a publicação desta matéria.
A Eames é citada pela auditoria do TCU pelo fato de a organização permitir, supostamente sem justificativas, a adesão a atas de registro de preços por órgãos fora do escopo das Forças Armadas. Esse procedimento é chamado de “carona”na esfera das licitações.
A carona, nesse caso, ocorre quando uma entidade que não participou do certame licitatório inicial é autorizada a usar a ata de registro de preço durante sua vigência, desde que haja consulta prévia ao órgão gerenciador e concordância do fornecedor.
No entendimento do TCU, a suposta conduta da Eames contraria o Decreto 7.892/2013, a Lei 8.666/1993, o princípio da motivação dos atos administrativos (Lei 9.784/1999) e a jurisprudência do TCU, que considera a adesão por órgãos “caronas” como uma possibilidade “anômala e excepcional” que deve ser devidamente justificada. A Corte de Contas aponta como instrumento inadequado para a aquisição de gêneros alimentícios, por ser uma compra rotineira e não “excepcional”.
Ao prestar esclarecimento sobre o caso, a Escola de Aprendizes Marinheiros do Espírito Santo teria apresentado documentação para adesão de órgãos não participantes, incompleta e com justificativas genéricas, de acordo com o TCU.
Licitações na Eames chegam a R$ 5, 1 milhões
A citação da Eames na auditoria está relacionada ao Pregão Eletrônico 3/2022. Consulta feita ao Portal de Transparência da Marinha mostra que o certame tinha valor estimado em R$ 5.129.763,41 e que recebeu 13 atas de registro de preço, todas com vigência de 27 de maio a 27 de outubro de 2022.
Entre as atas de registro de preço com maior valor a ser contratado está uma de R$ 557.501,06. Os itens listados do documento vão de mariola a peixe fresco, rabo de porco e toucinho. O documento tem assinatura de Márcio Hecksher Stallone, capitão de fragata e então ordenador de despesas na Eames.
A segunda ata de registro de preço com valor mais alto, entre as relacionadas no Pregão Eletrônico 3/2022, tem valor estimado em 387.593,26. Os gêneros alimentícios listados nela incluem canela em pó, carne moída, frango, linguiça e vasilhames plásticos. O documento também é assinado pelo capitão de fragata e então ordenador de despesas da Eames.
Participação de prefeituras em licitações das Forças Armadas
Documentos anexados ao Pregão Eletrônico 3/2022, citado na auditoria do TCU, traz mostra a participação de prefeituras no processo licitatório da Escola de Aprendizes.
A reportagem contou pelo menos dez Executivos municipais como integrantes de certame que visava à compra de gêneros alimentícios de pimenta-do-reino, chester e peru. A cidade de São Francisco de Sales, em Minas Gerais, por exemplo, entra em uma das licitações da Eames para aquisição de pé de porco salgado.
Como TCU chegou ao indício de fraude?
A auditoria apontou fortes indícios de fraude em quatro dos seis pregões analisados (PE 6/2019, PE 3/2020, PE 26/2020, PE 35/2020). A irregularidade aconteceria, de acordo com os técnicos, pela atuação coordenada de um grupo de empresas de “alto risco” para direcionar os certames, segundo o TCU.
É citado no acórdão que a principal evidência de irregularidades foi o uso do mesmo endereço de Internet Protocol (IP) — sequência de números que identifica qualquer dispositivo conectado à internet — por múltiplas empresas participantes da licitação para acessar os pregões no sistema do governo federal, sugerindo comunicação prévia e atuação conjunta para direcionar a contratação.
O relatório do TCU também indica que as empresas participantes apresentavam sócios ou ex-sócios em comum e endereços comerciais praticamente idênticos (no Mercado Municipal do Rio de Janeiro – CADEG). Além disso, alguns sócios eram ou foram empregados de outras empresas do grupo. Ainda destaca que dois sócios eram capitães reformados do Exército e o pai da sócia de duas empresas era 2º sargento reformado da Marinha, levantando suspeitas de favorecimento.
O que foi determinado pelo TCU
O acórdão determina uma série de medidas para corrigir as irregularidades e aprimorar a gestão pública. As principais são:
- Avaliação normativa: O TCU determinou que a Unidade de Auditoria Especializada em Contratações (AudContratações) avalie, no monitoramento das recomendações do acórdão, a evolução normativa dos Comandos Militares relacionada ao planejamento das contratações, estimativa de quantitativos e adesão a atas de registro de preços;
- Desapensamento de processo e oitiva de empresas: Foi determinado o desapensamento do processo TC 025.340/2021-2 da referente à auditoria, com inclusão do relatório de auditoria e da deliberação para aprofundar a apuração de irregularidades. A unidade técnica deverá ouvir as empresas, para que se manifestem sobre indícios de fraude;
- Juntada de documentos para monitoramento: Foi ordenada a juntada do relatório de auditoria (peça 262) e da presente deliberação ao processo 015.128/2020-2, em apoio ao monitoramento do item 1.6.2.1 do Acórdão 389/2020-TCU-Plenário;
Encerramento do processo: foi determinado o encerramento e arquivamento do processo originou a auditoria.
Outras medidas e recomendações:
- O TCU deu ciência ao Ministério da Defesa e aos Comandos do Exército, Marinha e Aeronáutica sobre as seguintes falhas: ausência de critérios para estimar quantitativos de gêneros alimentícios, em desacordo com o art. 18, IV, da Lei 14.133/2021;
- Recomendou-se aos Comandos das Forças Armadas a edição de norma específica para aquisição de gêneros alimentícios de maior valor, com base em critérios objetivos de razoabilidade e economicidade. O prazo para informar o TCU sobre as providências é de 120 dias;
- Recomendou-se ao Exército e à Marinha que avaliem a adoção de prática semelhante à da Aeronáutica, que acompanha licitações de maior materialidade com auxílio do Sistema Alice (ou ferramenta similar), a fim de verificar adequação de preços e estimativas. O prazo para informar o TCU é de 120 dias;
- Foram comunicados os Centros de Controle Interno do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, além do Ministério Público Militar, sobre indícios de utilização irregular de IPs por empresas licitantes para acessar o portal de compras do governo federal;
- O relatório de auditoria foi encaminhado ao Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, para análise dos indícios de fraude na aquisição de gêneros alimentícios e adoção das medidas cabíveis.
A Gazeta – Edição: Montedo.com
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