Soberania. De quem?

Soberania é um conceito muito mais abrangente do que aplicar a lei. Mas, um dos (vários) exercícios da autoridade, do poder, é impor regramento e fazer cumpri-lo.

Flávio César Montebello Fabri
Colaborador DefesaNet

Termo que vêm sendo repetido à exaustão hoje em dia: soberania. A origem da palavra (tão como de “soberano”) possui alguns séculos e podemos ler que:

  • “A palavra soberania deriva da junção de dois fragmentos de raiz latina: super e omnia, que literalmente significam algo como poder supremo, no sentido de que não há poder superior ao ‘soberano’.

    Soberania, em seu sentido político ou jurídico, é o exercício da autoridade que reside em um povo e que se exerce por intermédio dos seus órgãos constitucionais representativos. A soberania é uma autoridade superior que não pode ser restringida por nenhum outro poder e, portanto, constitui-se como o poder absoluto de ação legítima no âmbito político e jurídico de uma sociedade.”
    (Mundo Educação – Soberania)

Assim sendo, dentro de determinado território (como o nacional), a soberania de um Estado é vinculada ao poder político e de decisão, particularmente em relação aos interesses nacionais. Por sinal, soberania é citada logo no início da Constituição de 1988, em seu artigo 1º. Poucas linhas (ou artigos) depois, lemos que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Soberania é um conceito muito mais abrangente do que aplicar a lei. Mas, um dos (vários) exercícios da autoridade, do poder, é impor regramento e fazer cumpri-lo.

Caso considerássemos um lapso de aproximadamente 30 anos, poderíamos concluir que seria um período suficiente para que, dentro de um plano de estado, percebêssemos alguma melhora na vida cotidiana ou, ao menos, o caminho já sendo trilhado para tal (afinal de contas, seriam, pelo menos, 7 ou 8 governos eleitos com seus projetos, seus planos de governo, o mesmo número de legislaturas, tanto federais como estaduais, com os deputados sendo a voz de seu eleitorado e, democraticamente, senadores representando os interesses de seus respectivos estados). Considerando, também, ser a memória uma virtude, poderíamos então tentar recordar
do que ocorria décadas atrás e, com o aprendizado das ações feitas nesse tempo, chegar a conclusões do presente, tão como soluções para o futuro (projetando cenários e planejando o que deve ser feito). Seria interessante a leitura de documentos oficiais, lembrar do contexto de época (para não incorrermos em anacronismo) olharmos o hoje e refletirmos sobre o amanhã.

Por exemplo, dos documentos que podem ser acessados por qualquer cidadão no Arquivo Nacional, já era perceptível na década de 1990 uma presença considerável de atores não-estatais armados na região amazônica. Tanto que as FARC-EP haviam atacado um posto do Exército Brasileiro às margens do Rio Traíra no início de 1991. Poucos anos depois dessa afronta à soberania nacional, era registrado que um representante dessa organização terrorista veio ao Brasil, efetuou palestra, encontrou-se e conversou com professores de renomadas universidades, partidos políticos e movimentos sociais, buscando “mudar a imagem” que tinham de sua
organização.

Imagem 1 – Praticamente 30 anos atrás, representante de organização terrorista chega ao Brasil, ministra palestra, encontra-se com professores de renomadas universidades, partidos políticos e movimentos ditos sociais. Mesma organização que, em 1991, invadiu o território nacional e atacou um posto do Exército Brasileiro (Rio Traíra), resultando em militares mortos e feridos na ação tão como na subtração de armamento. O propósito do emissário era mudar a “imagem” de quem representava (fonte: Arquivo Nacional).

Décadas após o evento do Rio Traíra e a adequada resposta dada às FARC-EP, o veículo jornalístico InfoAmazônia esclareceu que haviam mapeado a presença de facções criminosas e atores armados não-estatais em 242 dos 348 municípios das regiões de fronteira entre Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Ou seja, praticamente 70% dos municípios.

A presença estatal constante, forte e condizente com o cenário do local deve ser um fator de soberania. Não é fácil manter contingente (militar, policial e de outros serviços, como os vinculados à saúde, educação, administração pública, justiça etc.) em áreas remotas, tão como o custo para tal não é baixo. Não se trata somente de marcar presença, mas, principalmente, manter essa presença. Tratando-se de locais por vezes distantes de centros urbanos com mais recursos, incentivar (o que inclui, também, bem remunerar) funcionários públicos a prestarem serviço continuamente nestes pontos fronteiriços deve fazer parte de um plano de estado. Manter um serviço público em áreas urbanas já é uma tarefa complexa e cara (para o erário público).

Ofertar serviços em áreas remotas, mais ainda. Ter um número adequado de servidores para tal missão e mantê-los por vezes em localidades distantes de suas famílias, prestando serviço eficiente (sabendo-se ainda que tais localidades justamente possuem pessoas vinculadas com atividades ilícitas, que vão do garimpo ilegal, tráfico de drogas, pirataria ao tráfico humano, entre tantos outros, o que é um real risco a quem se prontifica ou é designado para lá atuar), exige vontade política e direcionamento de orçamento (o que por vezes significa deixar de atender outras demandas não tão prioritárias às vistas do cidadão). Recordemos que a área da Amazônia legal é imensa (maior que muitos países do mundo).

É fato, porém, que outras “organizações” no decorrer de poucas décadas aprenderam a ampliar seu leque de influência. De reuniões iniciais a parcerias em outros países. De, além de ouvidas, também desejassem ser temidas, respeitadas (não no sentido de admiração, mas no contexto de submissão, imposição de vontade pelo medo) e possuírem forte influência.

Imagem 2 – Reprodução parcial de carta de detentos do Presídio de Ilha Grande – Rio de Janeiro, pertencentes ao Comando Vermelho. Considerando-se como “grupo terrorista”, pela forma com que acreditavam ser vistos pelas autoridades, incentivavam a idéia de atuarem como tal. Possuíam a convicção, também, de receberem o apoio de atores influentes (fonte: Arquivo Nacional).

Vale recordar, neste momento, que em abril de 2001, houve grande repercussão na notícia da prisão do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, na Colômbia
Da mesma forma, que havia se “associado” ao comandante da Frente 16 das FARC-EP, Tomás Medina Caracas, conhecido como Negro Acácio.

“Cota ganadeira”. Se causa repulsa a divulgação em noticiário de que, no corrente ano, um cidadão foi executado por não pagar taxas aos integrantes de organizações criminosas, tal prática já era adotada há muito tempo por grupos de narcoterroristas como as FARC-EP. Se a cota era referente a uma espécie de “taxa de proteção” (onde quem pagava seria protegido para evitar violência exatamente de quem o cobrava), essa prática adotada (e documentada) por narcoterroristas encontra réplica, trinta anos depois, no Brasil. Imposição de regras, cobrança e punição. Previsibilidade. Rotina imposta por atores armados não-estatais.

Imagem 3 – Imposição de regramento por atores armados não-estatais. Se nos atuais noticiários lemos a respeito de cidadãos que acabam sendo assassinados por não pagarem taxas para organizações criminosas, como se um imposto fosse, tal prática já era vista (e documentada) em outras paragens. Narcoterroristas, como os integrantes das FARC-EP, já adotavam a cobrança tão como a punição para aqueles que não se submetiam ao regramento imposto. Também, a exemplo de organizações criminosas brasileiras, tentavam mascarar a intenção de um crime, fazendo com que a notificação deste não exatamente correspondesse à realidade. Necessário recordar que durante bom tempo, esses grupos insurgentes acabaram por ter parcerias com integrantes de organizações criminosas brasileiras (fonte: Arquivo Nacional).

Façamos algumas considerações:

  • o crime organizado estrutura-se em moldes empresariais.
  • no Rio de Janeiro, muitas organizações criminosas atuam, impunemente, a partir das comunidades nos morros (ou seja, tentam manter seu domínio territorial e, por conseguinte, sobre o cotidiano de todos que ali residem, impondo regras e valores).
  • o Comando Vermelho, uma das principais organizações criminosas do Rio de Janeiro, atua em parceria com outras organizações e possui capacidade de “planejamento com toques de requinte”.
  • há a atuação de diversas organizações criminosas estrangeiras em território nacional, que possuem relativa facilidade em burlar a lei brasileira.
  • é perceptível o desordenamento urbano, com grande contingente humano tendo que residir em áreas como favelas ou loteamentos ilegais, o que é um grande problema, exige muitos recursos e planejamento de longo prazo para ser resolvido (ou ao menos mitigado).

Essas percepções não foram feitas a partir da leitura de um jornal dessa semana ou do noticiário. Elas estão escritas em um relatório sobre a criminalidade do Rio de Janeiro com data de 6 de outubro de 1993 (praticamente 32 anos atrás).

Imagem 4 – O relato parece uma descrição do que ocorre hoje. Trata-se de fragmentos de um relatório de 06 de outubro de 1993 a respeito da criminalidade no Rio de Janeiro, portanto com mais de trinta anos (fonte: Arquivo Nacional).

Há três décadas existem alertas documentados (e que podem ser acessados por qualquer cidadão) a respeito do interesse de organizações criminosas em possuírem representação política. Se lermos no noticiário atual a respeito de parlamentares sendo presos por sabidamente possuírem vínculos com o crime organizado, representantes de associações ou grupos (representantes estes, também, com fortes vínculos com organizações criminosas) que acabam sendo recebidos nas mais altas esferas do poder, tal fato já era alertado muito tempo
atrás. Basta uma breve pesquisa no Arquivo Nacional.

Encerrando, vale a pena recordar da Teoria do Controle Competitivo, de David John Kilcullen. Autor de Além das montanhas: a Nova Era da Guerrilha Urbana (Biblioteca do Exército – BIBLIEx, 2024) trata-se de reconhecido especialista na área de contrainsurgência. A palavra chave seria “previsibilidade” (para que seja mantida sua sobrevivência e rotina). Em áreas de desordenamento territorial, desordem social e forte presença de atores armados não-estatais (com parca ou nenhuma presença estatal efetiva), o morador local busca a previsibilidade do regramento que é imposto. Efetivamente o que pode ou não fazer, o conhecimento das punições que pode receber caso tais regras não sejam cumpridas, havendo assim uma previsibilidade de sua rotina, baseada no regramento ditado por quem detêm efetivo controle territorial e influência no cotidiano daquele perímetro.

30 anos é um lapso razoável para entender questões estratégicas e ao menos delinear ações de longo prazo.

Lemos, logo no início da Constituição, em seu artigo 1º, parágrafo único que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos”. Resta saber quais providências serão adotadas (talvez tenham que ser mais incisivas do que as das últimas décadas) para que esse “poder” seja realmente exercito por representantes eleitos pelo povo (desde que, claro, não tenham vínculos com organizações criminosas).

Soberania.

De quem? Qual o poder supremo que se manifesta, regula (e também eventualmente pune) e os interesses de quem exerce (o poder efetivo), influenciando a vida de quem tão somente deseja ter uma rotina?

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