Artigo: A Justiça Militar deve ser excepcional

 

ADPF 289 e a oportunidade de limitação dos entulhos autoritários

Heloisa Fernandes Câmara*, Bruna Lenartowicz**
A inclusão da ADPF 289 na pauta de julgamento do STF apresenta oportunidade de fortalecimento da democracia brasileira através do enfrentamento dos entulhos autoritários. Nessa tarefa é fundamental estabelecer que a Justiça Militar deve ter competência excepcional.

A Justiça Militar é especializada e sua competência é definida no art. 124 da Constituição, que estabelece que cabe julgar os crimes militares, os quais são definidos no Código Penal Militar (Decreto-lei 1.001, de 21 de outubro de 1969). No artigo não se distingue se o autor é civil ou militar. O CPM é fruto da ditadura militar de forma que os crimes ali previstos refletem um contexto de repressão, autoritarismo e violação de direitos humanos, e, portanto, antagônicos à democracia.

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Os crimes militares são divididos em próprios e impróprios. Os próprios dizem respeito a crimes que podem ser cometidos apenas por militares, pois estão diretamente relacionados com a atividade. Já os impróprios estão previstos na legislação comum e podem ser cometidos tanto por militares quanto por civis[1], e é justamente nesse ponto que há inúmeras discussões, pois tem sido arguida a possibilidade de julgamento de civis pela Justiça Militar.

A Justiça Militar possui características próprias, singulares em relação a outras jurisdições, uma vez que foi estruturada para submeter militares ao seu crivo. Isso porque a hierarquia e disciplina, princípios basilares das Forças Armadas, permeiam os julgamentos, inclusive por serem bens jurídicos protegidos.

A estrutura da Justiça Militar pouco difere da vigente durante a ditadura militar de 1964. A sua atual organização está disciplinada pela Lei 8.457/1992, que, por mais que seja posterior à Constituição de 1988, possui traços autoritários, tendo em vista que manteve o mesmo padrão institucional, bem como competências similares às que exercia durante o período ditatorial. Em síntese, é uma estrutura que não foi estruturada para ser democrática.

O argumento principal que sustenta a Justiça Militar é o de que somente os militares compreendem os princípios da caserna. Assim, o conjunto de valores somente seria apreendido por aqueles inseridos nesse contexto de maior rigidez e disciplina. Talvez por isso a composição da Justiça Militar seja majoritariamente militar, sem a necessidade de formação jurídica, diferindo significativamente dos demais ramos judiciais.

No entanto, a defesa de sua existência é contraditória ao julgamento de civis, uma vez que estes não estão inseridos na lógica de hierarquia e disciplina. Além disso, os crimes envolvendo civis e contra civis podem e devem ser julgados na justiça comum, por uma questão de maior transparência, isonomia e devido processo legal. Tendo em vista que os crimes cometidos por civis são apenas os impropriamente militares, ou seja, previstos na legislação comum, eles podem perfeitamente ser julgados pela Justiça Comum, uma vez que esta é apta a decidir de forma técnica e coerente.

O tema tem ganhado relevância após a intensificação do uso das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), especialmente a partir das missões de “pacificação” nas comunidades do Rio de Janeiro nos anos 2010. Nesses casos, há ingerência direta de tropas das Forças Armadas na segurança pública, atividade esta que não é sua competência típica.

O principal crime denunciado na Justiça Militar foi o de desacato, acompanhado de desobediência e resistência, todos crimes relacionados à hierarquia e que podem ser relacionados à liberdade de expressão. De acordo com Natália Viana, em Dano Colateral, são crimes que demonstram uma tentativa de “assustar e impor respeito” sobre a população, que cada vez mais contestava a presença militar nas favelas. Somado ao fato que na maioria dos casos bastou o testemunho do militar envolvido para o civil ser processado, tem-se cenário pouco democrático de cerceamento da expressão de insatisfações.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já rechaçou veementemente o julgamento de civis por tribunais militares em tempos de paz. No entendimento da corte, essa situação viola o artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que diz respeito às garantias judiciais, principalmente no que se refere a um julgamento independente e imparcial.

No caso Palamara Iribarne vs. Chile, de 2005, a Corte IDH destacou que, caso o Estado entenda necessário manter jurisdição penal militar, ela deve estar limitada aos delitos de função cometidos por agentes em serviço, e, de forma alguma, civis poderão ser submetidos a julgamento.

A compreensão diversa dessa faz com que se torne normal o que deveria ser excepcional, mantendo um importante entulho autoritário vigente.

Ainda que não seja objeto da ADPF 289, devemos ressaltar que o julgamento nessa jurisdição de militares por crimes comuns também carece de legitimidade democrática uma vez que podem trazer vieses, não passam pelo crivo técnico, podem revelar corporativismo e reforçam a endêmica impunidade no caso de violência estatal.

Os crimes comuns, ainda que cometidos por militares, não dizem respeito a nenhum bem jurídico estritamente militar de forma que a Justiça Comum é a mais adequada para julgar.

Se o argumento principal para a manutenção da Justiça Militar reside nos princípios de hierarquia e disciplina, é incongruente submeter a seu crivo crimes que não relacionados a esses elementos, o que ocorre no julgamento de civis e nos crimes não específicos da atividade militar.

Um exemplo emblemático foram os assassinatos de Evaldo Rosa e Luciano Macedo ocorridos no Rio de Janeiro, em 2019. Rosa teve seu carro alvejado por 62 tiros, disparados por militares do Exército quando se deslocava com a família para um evento familiar. Macedo foi atingido ao tentar socorrer Evaldo. Os militares envolvidos foram julgados e absolvidos pelo STM na morte de Rosa.

Superar os resquícios ditatoriais implica compromisso com mudanças legais, institucionais e de cultura política. Manter a competência da Justiça Militar em contextos não diretamente relacionados à atividade militar é uma perpetuação autoritária incompatível com a democracia. O STF tem a oportunidade histórica de assentar esse entendimento.
[1] Previsto no art. 9º, III, do Código Penal Militar
no art. 9º, III, do Código Penal Militar.logo-jota

* Professora da graduação e pós-graduação em direito da UFPR. Pesquisadora do Centro de Estudos da Constituição (CCONS)
** Graduanda em Direito pela UFPR

JOTA – Edição: Montedo.com

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