Os militares só podem ser excluídos das Forças Armadas por meio de um processo específico na Justiça Militar – e, mesmo se presos e excluídos, suas famílias podem continuar recebendo pensão.
Vitor Tavares – Da BBC News Brasil em São Paulo
Nesta semana, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir se condena ou não os oito réus do chamado núcleo crucial da trama golpista após as eleições de 2022.
Entre os julgados, estão seis militares — da reserva, da ativa ou reformados (aposentados): o ex-presidente Jair Bolsonaro; o ex-candidato a vice general Walter Braga Netto; o ex-ministro da Defesa general Paulo Sergio Nogueira; o ex-ajudante de ordens tenente-coronel Mauro Cid; o almirante da Marinha Almir Garnier; e o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional general Augusto Heleno.
Mas não é todo o futuro desses militares que será definido no julgamento do STF.
Mesmo que sejam condenados à prisão, os seis continuarão com suas patentes e manterão seus salários de até R$ 38 mil, ao menos por enquanto.
Como determina a Constituição, os militares só podem ser excluídos das Forças Armadas por meio de um processo judicial específico na Justiça Militar.
É o Superior Tribunal Militar (STM) que irá avaliar se condenados são considerados “indignos” ou “incompatíveis” à função militar.
Num evento em São Paulo no último dia 29 de agosto, a presidente do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha, disse que caberá à Corte que comanda exercer papel de “tribunal de honra” em casos de perda do posto de oficiais das Forças Armadas eventualmente condenados pelo STF.
Caso o STM entenda que os militares não são “dignos” de fazer parte do quadro das Forças, eles perdem suas patentes — e consequentemente seus salários, se não houver mais possibilidade de recurso, esclarece Erika Kubik, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Justiça Militar.
“A perda de salário vem junto à perda de patente. É uma coisa única, colada, porque ele deixa de ser militar”, diz.
Mas esse salário pode se tornar uma pensão ao cônjuge ou filho menor do militar.
“É a tal morte ficta, caso peculiar previsto na legislação de pensões militares, que possui muitas críticas”, explica à BBC News Brasil a juíza federal da 12ª Circunscrição Judiciária Militar Patrícia Gadelha.
O entendimento da morte ficta considera a expulsão de um militar como se fosse o seu falecimento, garantindo assim pensão a seus dependentes.
Se houver decisão do STM para perda de patente, haveria então um processo administrativo dentro da respectiva Força Armada, explica o advogado Agnaldo Bastos, especialista em direito público e direito militar.
“O entendimento majoritário é que perda de patente implica perda do soldo e status militar, mas não extingue a pensão de dependente já constituído. Vai ser analisado caso a caso”, diz.
“Cada força vai abrir um processo interno para verificar direitos envolvidos sobre reserva, reforma, dependentes e direito à pensão”, completa Bastos.
De acordo com a Lei de Pensões Militares, com a morte ficta do militar os dependentes passam a receber pensão proporcional ao tempo de serviço.
Esse assunto, inclusive, tem sido alvo de discussão nos últimos meses em Brasília.
Em um projeto de lei proposto pelo governo Lula em 2024 para alterar aposentadoria dos militares, um dos itens pede justamente o fim dos casos em que a família de um militar expulso recebe pensão.
Pela proposta, a família passaria a receber auxílio-reclusão, no valor da metade da última remuneração do ex-militar, durante o período em que ele estiver cumprindo pena de reclusão por sentença condenatória transitada em julgado.
Parlamentares de direita e ligados às Forças Armadas já têm se articulado para retirar esse trecho do projeto de lei.
Em análise recente, o Tribunal de Contas da União (TCU) julgou que o direito à pensão militar “por morte” só ocorre após a morte real e não após a expulsão ou a demissão do militar.
Essa situação dos militares é diferente de outros funcionários públicos, que podem perder sua função (e salário) caso sejam condenados a prisão, já na decisão do juiz que o condena.
No caso de Bolsonaro, o ex-presidente recebe cerca de R$ 12,8 mil do Exército. Ele é um capitão reformado, uma espécie de aposentadoria no mundo militar.
Além dos vencimentos do Exército, Bolsonaro recebe ainda cerca de R$ 41 mil da aposentadoria de deputado pela Câmara. Como é presidente de honra do Partido Liberal (PL), o ex-presidente ganha outros R$ 41 mil, segundo divulgado pelo partido à imprensa.
Entre todos os réus militares julgados pelo STF, quem recebe o maior salário das Forças é o general Augusto Heleno, no valor de R$ 38,1 mil. Ele recebe proventos equivalentes ao posto de marechal — benefício comum a militares que passam à reserva com remuneração de um cargo acima do que ocupavam na ativa.
Além dos seis réus militares, há dois civis que saberão suas penas nesta semana: o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem.
Como é o processo militar para perda de patente
Segundo o Código Penal Militar, um militar só pode perder a patente por uma decisão do Superior Tribunal Militar (STM) — seja ele da ativa, da reserva ou reformado.
Há distintos caminhos a depender da pena estabelecida na Justiça comum sem possibilidade de recurso, explica a professora Erika Kubik, da UFF.
Caso a pena seja menor do que dois anos de prisão, é acionado o chamado Conselho de Justificação dentro das Forças Armadas — espécie de processo administrativo. A depender da decisão do conselho e consequente avaliação do comandante da Força, o caso sobe ao STM.
Mesmo que o réu seja totalmente absolvido no STF, o Ministério Público Militar (MPM) também pode entrar com ação “por entender, ainda assim, que há ali uma desonra militar”, diz Kubik.
Agora, se a pena aos militares no STF for maior do que dois anos de prisão, o processo no STM é automático.
“No caso de condenação acima de dois anos, não há a participação da Força Armada. É o MPM que promoverá, ao seu exclusivo critério, a ação”, explica à BBC News Brasil o procurador-geral de Justiça Militar Clauro Roberto de Bortolli.
Segundo Bortolli, seu posicionamento atual “é no sentido de oferecer, sempre, a ação de representação, após ter a ciência da condenação de um oficial a pena acima de dois anos”.
No STM, o julgamento será para avaliar a “indignidade ou incompatibilidade” — ou seja, não é um julgamento criminal, mas perante um “tribunal de honra”.
Não há um prazo fixo para que o STM termine esse julgamento, que deve ser individual para cada militar.
“O prazo não é específico, mas como a situação tem repercussão institucional, envolve militares alta patente, é possível haver uma celeridade”, avalia o advogado especialista Agnaldo Bastos
Uma vez que haja a decisão do STM, os réus só poderiam apelar para algum recurso caso a defesa entenda que a decisão violou algum dispositivo da Constituição, avalia a juíza Patrícia Gadelha.
Ou seja: não cabe apelação dentro da Justiça Militar, mas é possível provocar o STF.
“Uma vez declarada a indignidade, a perda do posto e da patente é definitiva, salvo reforma posterior da decisão em instância constitucional, o STF”, diz.
Desde 2018, 47 militares das Forças Armadas foram condenados com a perda da patente, segundo o MPM.
Quanto ganham os réus
Encerrado o processo no STM e caso os réus sejam excluídos das Forças Armadas, eles não recebem mais o “salário” propriamente dito.
No caso dos julgados por tentativa de golpe nesta semana, eles recebem hoje como militares os seguintes valores, segundo dados do Portal da Transparência em junho de 2025:
- Augusto Heleno: R$ 38.144,69
- Almir Garnier: R$ 37.585,59
- Walter Braga Netto: R$ 36.881,74
- Paulo Sérgio Nogueira R$ 36.881,74
- Mauro Cid: R$ 28.242,64
- Jair Bolsonaro: R$ 12.861,61
Esses são os valores brutos do salário — sem descontos.
Durante o julgamento no STF, o advogado do almirante Almir Garnier, o ex-senador Demóstenes Torres, chegou a dizer que o militar “não tem recurso para pagar advogado”.
“Um dia bateu nas minhas portas o almirante Garnier. Eu fiquei com pena dele. Porque é uma pessoa que vai inteirar agora 65 anos de idade […]Ele não teve dinheiro para pagar”, disse Torres.
Também durante o julgamento, o advogado de Mauro Cid, o relator que confessou os planos golpistas, disse que seu cliente pediu para ir à reserva do Exército, por não ter mais “condições psicológicas” de seguir na ativa.
Caso o Exército aceite o pedido, Cid passa a receber como militar da reserva — e, caso condenado pelo STM e STF, é possível que o vencimento passe para seus dependentes.
Isso porque a lei que dispõe sobre as pensões militares aponta que o oficial que perder posto e patente deixa aos seus beneficiários a “pensão militar correspondente ao posto que possuía, com valor proporcional ao tempo de serviço”.
“A pensão militar tem legislação própria e ela não se confunde com salário do militar ativo”, explica o advogado Agnaldo Bastos.
“O valor não passa automaticamente à família. O que pode existir é o direito a pensão, isso vai depender se aquele militar já tinha alcançado tempo de serviço, se cumpriu requisitos. Cada caso é avaliado”, completa o especialista.
A BBC News Brasil entrou em contato com o Exército e Marinha para mais esclarecimentos sobre o processo administrativo, mas não obteve resposta.
Bastos explica ainda que para servidores públicos não militares, a própria Constituição diz que uma sentença condenando a pessoa no âmbito criminal já pode gerar perda de cargo. Não há um processo interno como o dos militares.
“Na decisão judicial que condena servidor, automaticamente vai trazer de forma expressa que em decorrência de condenação o servidor vai perder cargo e salário.”
O projeto de lei do governo Lula que muda a regra para aposentadoria e pensão de militares está nas mãos do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
Ao anunciar o projeto, que inclui ainda idade mínima para militares irem para reserva, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que seriam “mudanças justas e necessárias” para combater “privilégios incompatíveis com o princípio da igualdade”.
Segundo Haddad, foi feito um acordo com as Forças Armadas para acabar com morte ficta.
A proposta foi apresentada em novembro, quando o governo anunciou medidas para economizar R$ 70 bilhões em dois anos aos cofres públicos, visando o ajuste fiscal.
BBC News Brasil
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