Julgamento no STF sela inédita condenação de ex-comandantes militares pela Justiça civil

 

Condenação de Garnier e Paulo Sérgio, ex-comandantes da Marinha e do Exército, não tem precedentes na História do País

Johanns Eller
Inédito por si só, o julgamento de Jair Bolsonaro e outros sete réus pela trama golpista selou outro marco sem precedentes: a condenação de dois ex-comandantes das Forças Armadas pela Justiça comum. O almirante Almir Garnier Santos, ex-chefe da Marinha que pôs suas tropas à disposição do golpe bolsonarista, e o general Paulo Sérgio Nogueira, que comandou o Exército, foram sentenciados a 24 e 19 anos de prisão, respectivamente.

O caso de Garnier já havia sido muito enfatizado por Moraes durante a leitura de seu relatório na última terça-feira (9), uma vez que o almirante estava comandando a Força na ocasião da trama golpista – Nogueira, por sua vez, deixou a chefia do Exército em março de 2022 para assumir o Ministério da Defesa no governo Bolsonaro. A cúpula das Forças Armadas torcia discretamente pela sua absolvição.

Possivelmente para atenuar o abalo na imagem das Forças Armadas representado pelas condenações, os ministros fizeram acenos às instituições militares. O mais evidente ocorreu já na reta final da votação das dosimetrias das penas, na noite de quinta-feira, e partiu de Flávio Dino – aliado do relator Moraes no Supremo.

“Não há um julgamento das Forças Armadas”, ressaltou Dino, que aproveitou para criticar a politização nos quartéis.

“Não há nenhuma mensagem aqui de enfraquecimento dessa instituição tão relevante para a democracia. Há um desejo de que não haja mais, de fato, a necessidade da propositura de ações penais contra altíssimos escalões das Forças Armadas do nosso país. De modo geral, desejamos que os ditames da hierarquia e da disciplina que estão no famoso artigo 142 da Constituição sejam de fato cumpridos em relação ao Poder máximo, que é o Civil”.

As sinalizações do STF, porém, não refletiram qualquer tentativa de aliviar para Almir Garnier Santos.

Antes da declaração de Flávio Dino, Alexandre de Moraes defendeu a pena de 24 anos ressalvando que Garnier buscou fomentar na Força a percepção de que ainda havia ambiente para uma virada de mesa contra Lula na reta final de 2022.

“Não comparecer pela primeira vez na História da Marinha à transmissão de cargo não é só uma falta de educação e uma falta de ética com o novo comandante [Marcos Sampaio Olsen, indicado por Lula]. Isso é um recado, um simbolismo para toda a Marinha: ‘olha, ainda pode vir o golpe’. É importante salientar isso. Então é uma culpabilidade extremamente acentuada”, argumentou Moraes.

Já em relação a Paulo Sérgio Nogueira, a postura foi ligeiramente diferente. Na alta cúpula do Exército, havia a defesa de que Nogueira e outro general quatro estrelas, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno, fossem poupados pela Corte.

Ainda que alta, próxima de duas décadas, a sentença dele foi a menor da trama golpista sem levar em conta o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) – que não teve dois dos cinco crimes imputados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) apreciados pelo Supremo porque a Câmara dos Deputados aprovou a suspensão das ações penais referentes a atos do 8 de janeiro, quando ele já havia sido diplomado como parlamentar.

Moraes havia proposto 20 anos de prisão, mas foi convencido por Dino a reduzir em dois anos para aproximar a pena da dosimetria aplicada a Augusto Heleno, condenado a 21 anos em um grau de responsabilização próximo ao do ex-comandante do Exército. O argumento foi acatado pelo colegiado.

O ministro chegou a ponderar que os autos demonstraram que Paulo Sérgio Nogueira teve “forte atuação contra a Justiça Eleitoral” e que “não ousaria dizer que um comandante do Exército e ministro da Defesa tem menor importância em uma organização criminosa”, mas que, em comparação com os demais réus, ele não apresentou uma conduta “tão desfavorável” quanto a deles.

É uma ligeira mudança de postura em relação ao seu voto no processo, quando afastou a possibilidade de atenuantes. Moraes destacou que, além de ter adiado a divulgação do relatório que provava não haver nenhuma fraude nas urnas eletrônicas, Nogueira mais de uma vez se colocou a serviço do projeto autoritário de Jair Bolsonaro.

A posição pela condenação do ex-ministros foi seguida por todos os colegas do relator à exceção de Luiz Fux, que votou para absolver o almirante e outros cinco réus. Fux votou para condenar outros integrantes das Forças Armadas: o tenente-coronel Mauro Cid e o general da reserva Walter Braga Netto, ambos do Exército.

Marco histórico
O duro voto do relator e a condenação de Garnier e Nogueira na conclusão do julgamento marcam um ponto de virada na História do Brasil e nas relações entre as instituições civis e militares do país.

Desde o início das investigações da trama golpista, a inclusão de altos dirigentes das Forças Armadas nos autos foi encarada como uma das questões mais sensíveis do caso. Mesmo assim, o ineditismo não demoveu o procurador-geral da República, Paulo Gonet, de denunciar os ex-comandantes e até militares da ativa pela tentativa de golpe.

Para além da anuência em relação às minutas golpistas planejadas dentro do Palácio do Planalto, confirmada pelos então comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Carlos de Almeida Baptista Junior, Alexandre de Moraes argumentou no relatório que o então dirigente da Marinha já havia demonstrado em outras ocasiões um adesismo ao golpismo liderado por Bolsonaro.

Moraes citou como exemplos o episódio em que a Marinha deslocou blindados para entregar um convite ao então presidente no Palácio do Planalto no dia em que o Congresso votaria a PEC do voto impresso, em agosto de 2021.

O relator relembrou em mais de uma ocasião a reunião em que Bolsonaro teria apresentado a trama do golpe para os chefes das Forças Armadas implicando diretamente Garnier.

“Assim como Baptista Júnior, também Freire Gomes confirma a unidade de desígnios e a adesão do então comandante da Marinha à organização criminosa colocando suas tropas à disposição”, afirmou Moraes, que buscou ainda rebater narrativas que tentam diminuir o impacto da adesão do almirante.

‘Desmandante’
Na sua exposição, Moraes fez questão de rebater argumentos usados pela defesa de Garnier.

“E é muito interessante, ministro Flávio Dino, ministro [Cristiano] Zanin, ministra Cármen [Lúcia] e ministro Fux, que de uma hora para a outra surgiram versões de que ‘do que adianta o comandante da Marinha falar de tropas? Ele não tem tropa. Quem tem tropa é o sargento’. Ou seja, toda a hierarquia de disciplina das Forças Armadas, histórica no mundo todo, virou um instrumento de defesa. ‘Não adianta o comandante falar que ele vai colocar as tropas porque ele não manda em ninguém’. Então ele é o ‘desmandante’, e não o comandante”.

“Colocou as tropas à disposição como colocou os tanques e blindados à disposição no dia em que [a Câmara dos Deputados] estava voltando a PEC [do Voto Impresso] e como se recusou a ir na transmissão do cargo [do comandante Olsen]”, alfinetou Moraes.

O relator também havia associado Paulo Sérgio Nogueira diretamente à conspiração bolsonarista.

Alexandre de Moraes relembrou que, na reunião ministerial que discutiu uma força-tarefa para desacreditar as urnas eletrônicas e uma “virada de mesa” antes das eleições, em julho de 2022, o general tratou o Tribunal Superior Eleitoral como “inimigo”. Na sequência, classificou a conduta dele como “criminosa”.

O comentário foi feito durante o trecho do voto em que Moraes relembrou a divulgação de uma nota pelo Ministério da Defesa em 10 de novembro de 2022, um dia depois das Forças Armadas encaminharem ao TSE um relatório de fiscalização das urnas eletrônicas atestando que nenhuma fraude havia sido constatada pelos militares.

O comunicado destacava que a fiscalização, “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”

‘Nota vergonhosa’
“O réu Jair Messias Bolsonaro determinou ao réu Paulo Sérgio Nogueira que emitisse uma nota, uma das mais esdrúxulas, vergonhosas notas que um ministro da Defesa do Brasil pode ter emitido”, disparou Moraes.

“Tudo isso para manter a chama do discurso das fraudes das eleições, e aí sim, agora, para impedir a posse do presidente e do vice-presidente regularmente eleitos”.

Para o relator, a nota da Defesa foi uma ordem de Bolsonaro para manter a mobilização de bolsonaristas na porta do Quartel-General do Exército, em Brasília, e diante de quartéis em todo o território nacional.

“Vergonhosa a conduta [do então ministro da Defesa]. Seria só vergonhosa se não fosse criminosa. Em unidade com desígnios de toda a organização criminosa para manter o discurso de fraude das eleições e que o presidente e o vice-presidente eleitos não tomariam posse, não subiriam a rampa [do Palácio do Planalto]. Fica novamente claro o alinhamento entre Jair Bolsonaro e Paulo Sérgio de Oliveira [Nogueira]”.
Malu Gaspar (O GLOBO) – Edição: Montedo.com

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