Quem rejeita notícias “imparciais”? Aqueles que não têm poder

*Por Joshua Benton

Quem de fato quer notícias imparciais?

Seu 1º pensamento pode ser: todo mundo! Afinal, se a intenção é que as notícias sejam um reflexo da realidade, gostaríamos de ter a versão menos tendenciosa dessa realidade –aquela que mais se aproxima do mundo ao nosso redor, certo? Até mesmo um meio de comunicação partidário como a Fox News entende o apelo que a imparcialidade tem, tanto que se autodenomina como “justa e equilibrada há duas décadas. Sem medo ou favor”, “aberto a todos os partidos, mas não influenciado por nenhum”, “todas as notícias que podem ser impressas”, “o nome mais confiável em notícias”, “a verdade é mais importante agora do que nunca: cada uma dessas frases, à sua maneira, afirma que o leitor terá a informação correta em suas páginas, impressas ou digitais.

Mas todos nós sabemos que o comportamento das pessoas nem sempre é compatível com aquilo que declaram preferir. A maioria que liga a televisão para ver as notícias não assiste à C-SPAN (que transmite ao vivo as sessões do Congresso dos EUA). E uma infinidade de dados sociológicos descobriu que as pessoas preferem conteúdos compatíveis às suas próprias crenças a conteúdos que não são compatíveis. E quais grupos de pessoas têm maior probabilidade de preferir um conteúdo ideologicamente compatível –não apenas preferir, como também declarar que o prefere?

É possível pensar em uma divisão a partir do poder: entre aqueles que têm poder, e aqueles que não o têm. Se você está no topo da pirâmide social, talvez veja as notícias imparciais como uma ameaça em potencial –algo que pode mobilizar aqueles que não têm poder contra você, expondo coisas que você preferiria que não fossem divulgadas. Ou, ao contrário, se você pertence a um grupo em desvantagem, talvez veja as notícias “imparciais” como parte da estrutura de poder existente –que conta as histórias que dão sustentação ao sistema responsável por deixá-lo na base da pirâmide.

Essa é a questão explorada em um interessante novo artigo que acabou de ser publicado na revista International Journal of Communication. Intitulado “Quem Quer Notícias Imparciais? Investigando Determinantes das Preferências por Imparcialidade em 40 Países”, o artigo tem como autores (respire fundo): Camila Mont’Alverne (Universidade de Strathclyde), Amy Ross A. Arguedas (Universidade de Oxford), Sumitra Badrinathan (American University), Benjamin Toff (Universidade de Minnesota), Richard Fletcher (Universidade de Oxford), and Rasmus Kleis Nielsen (Universidade de Copenhagen). Eis o resumo do artigo:

“Apesar da centralidade da imparcialidade para muitas culturas jornalísticas, e do amplo apoio do público, ainda há poucas pesquisas sobre quais aspectos influenciam as preferências das pessoas por notícias imparciais. Este artigo se baseia em dados de pesquisa em 40 mercados para investigar os fatores que moldam as preferências do público por notícias imparciais. Embora a maioria expresse preferência por notícias imparciais, há vários grupos de pessoas que se sobrepõem e que, provavelmente por motivos diferentes, têm maior probabilidade de preferir notícias que compartilhem seu ponto de vista: (a) os engajados ideológica e politicamente; (b) os jovens, especialmente aqueles que dependem principalmente das redes sociais para obter notícias; (c) as mulheres; e (d) os grupos menos favorecidos socioeconomicamente. Encontramos padrões sistemáticos em todos os países nas preferências por alternativas às notícias imparciais, com maior incidência em locais onde as pessoas usam mais fontes diferentes de notícias e que estão em posição inferior em termos de qualidade de suas democracias”.

O 1º desses 4 grupos poderia ser tomado já como certo. É improvável que pessoas sem uma ideologia própria fortemente definida e que não estão engajadas na política desejem um forte viés partidário em suas notícias. Afinal de contas, elas não têm nem mesmo um viés próprio nesse sentido!

Mas os outros 3 grupos –os jovens, as mulheres e os mais pobres– indicam que as pessoas com menos poder na sociedade têm maior probabilidade de consumir notícias ideológicas. Se você é um homem branco, de meia-idade e rico, uma grande parte da imprensa “imparcial” se dirige a você– não há necessidade, portanto, de buscar meios alternativos. Esse efeito é ainda mais forte em países menos democráticos, onde o Estado geralmente tem um papel maior no modo como as notícias são divulgadas.

Vamos analisar o estudo. Ele se baseia em um relatório, o 2020 Digital News Report, do Instituto Reuters da Universidade de Oxord (escrevemos sobre este relatório quando ele foi divulgado –texto em inglês). Em um enorme esforço de pesquisa, o relatório perguntou a 80.000 pessoas sobre seus hábitos de consumo de notícias e suas preferências em 40 países: 24 da Europa, 7 da Ásia, 4 da América Latina, 2 da África (Quênia e África do Sul), além dos EUA, do Canadá e da Austrália. Os jornalistas têm debates intermináveis sobre o significado de palavras como “imparcial”, “objetivo”, e “equilibrado”, mas raramente têm acesso a uma amostra tão grande do que o público pensa sobre tais palavras.

“Geralmente, refletindo os debates que se deram dentro e fora da profissão de jornalista, a pesquisa acadêmica contemporânea tende a tomar o conceito de imparcialidade de modo um pouco mais cético, questionando a viabilidade de alcançar esse ideal ou até mesmo a conveniência do esforço para tal. A ideia de que as notícias devem ser divulgadas de forma neutra, livre de preconceitos (objetivamente), é uma noção relativamente moderna que tem sido atribuída de diversas formas a diferentes fatores sociotécnicos, econômicos e culturais. No entanto, em ambientes de mídia cada vez mais plurais, há uma discordância crescente sobre o que o jornalismo pode (e deve) oferecer às sociedades ou como os jornalistas devem desempenhar adequadamente suas funções –papéis que muitas vezes estão tensionados”.

Os veículos de imprensa existem, pelo menos em um sentido, para atender ao seu público. Mas também existem para atender aos seus anunciantes. E os jornalistas operam em uma relação de simbiose desconfortável com as instituições de uma determinada comunidade –o governo, a polícia, as escolas, as empresas, a sociedade civil– que são o objeto de grande parte de seu trabalho. As notícias “imparciais” representam puramente um serviço ao público? Ou representam triangulações de todas as várias fontes de poder e partes interessadas da elite que interagem com elas?

(Este artigo amplia um artigo anterior, dos mesmos autores, que atestou um amplo apoio às notícias “imparciais” em 4 países –mas também “nenhuma compreensão consensual do significado da imparcialidade na prática… é questionável se o público concebe a imparcialidade da mesma forma que as organizações de notícias e os acadêmicos do jornalismo”).

O Digital News Report, cujos dados foram analisados, perguntou às pessoas o que elas preferiam ao consumir notícias: “receber notícias de fontes que compartilham seu ponto de vista”; “receber notícias de fontes que não têm um ponto de vista específico”; “receber notícias de fontes que desafiam seu ponto de vista”; ou “não sei”. As respostas mais populares, em geral, foram “receber notícias de fontes que não têm um ponto de vista específico” (51%) e “receber notícias de fontes que compartilham seu ponto de vista” (24%).

Nos países, os pesquisadores encontraram relações já esperadas –que as pessoas tinham maior probabilidade de preferir notícias ideologicamente alinhadas se fossem: (a) muito engajadas na política e com uma ideologia bem definida; (b) jovens; (c) muito dependentes das redes sociais para obter notícias; (d) mulheres; (e) menos ricas; ou (f) menos instruídas. Com exceção de (a), esses dados estão de acordo com a ideia de que as notícias compatíveis aos pontos de vista são mais valorizadas por aqueles que se sentem destituídos de poder em sua sociedade.

É interessante notar que os EUA se destacaram na questão da ideologia, tanto à esquerda quanto à direita. Entre os 40 países, os liberais dos EUA ficaram em 1º lugar em termos de quanto suporte extra dão à mídia “imparcial”. Isso foi provavelmente motivado pela era Trump 1, em que os liberais viam a mídia como um contrapeso ao governo do presidente. Esse fenômeno contrasta com uma tendência global segundo a qual as pessoas da esquerda são geralmente mais céticas em relação às fontes de notícias neutras. (Basta pensar no que era chamado de “imprensa alternativa” antes do surgimento da internet).

Enquanto isso, entre os 40 países, os conservadores dos EUA ficaram em 2º lugar no que se refere a quanto suporte extra dão à mídia ideologicamente alinhada. Em outras palavras, eles não confiam nas “notícias falsas” ou no chamado “jornalixo”, e voltam-se para a Fox ou para os seus semelhantes. (Somente os conservadores da Espanha deram mais apoio à mídia ideologicamente alinhada).

Escrevi um e-mail para Mont’Alverne, a autora principal do artigo, sobre essa tensão. Ela afirmou que parte do problema é que as ideias que pessoas têm sobre as notícias “imparciais”, em abstrato, nem sempre são compatíveis com as suas opiniões no mundo real. “É possível, e provavelmente é o que está acontecendo neste caso, que os norte-americanos de esquerda expressem preferência pela imparcialidade em geral e em abstrato”, disse Mont’Alverne por e-mail. “Mas, quando são questionados sobre isso de forma mais concreta, os limites dessa preferência se tornam mais visíveis”.

Esses efeitos apareceram em cada um dos países. Mas se observarmos as nações como um todo, um conjunto diferente de variáveis surgiu nos dados. As pessoas tinham menos probabilidade de valorizar notícias “imparciais” em países onde: (a) os jornalistas são vistos como se estivessem sob o controle do Estado; (b) os governos são menos democráticos e mais autoritários; e (c) onde as pessoas, em média, consomem mais fontes de notícias em vez de menos.

Os 2 primeiros grupos rapidamente fazem sentido. Se a imprensa “imparcial” do seu país for dominada por um Estado autoritário, é menos provável que as pessoas a valorizem como uma fonte confiável. O 3° grupo pode parecer um pouco mais intrigante. Porém, os países onde as pessoas consomem mais fontes de notícias provavelmente são aqueles que têm um ecossistema de notícias mais intenso, com vários pontos de vista distintos, o que significa que há maior chance de uma alternativa politicamente alinhada estar disponível.

“Encontramos uma correlação negativa entre o número de fontes que as pessoas consultam em média e o nível de preferências por imparcialidade nesse mercado, e uma associação positiva com a preferência por notícias que compartilham seus pontos de vista. Isso pode ser explicado pelo fato de que, em mercados dominados por menos marcas –muitas vezes com financiamento público, como a BBCos entrevistados desse mercado também tendem a expressar níveis mais altos de preferência pela imparcialidade.

“No Reino Unido, onde os entrevistados consultavam uma média de 4 fontes de notícias, o menor número entre todos os países, 62% das pessoas diziam preferir notícias sem nenhum ponto de vista. No Quênia e na Turquia, por outro lado, 2 dos países com um número acima da média nas fontes de notícias consultadas (13 para cada um), um percentual muito menor disse preferir notícias sem ponto de vista (29% e 34%, respectivamente).”

Em apenas 4 dos 40 países, mais pessoas disseram preferir notícias que partilhem seus pontos de vista a notícias sem nenhum viés: Turquia, Quênia, México e Filipinas. Todos são países onde as tradições democráticas, na melhor das hipóteses, enfrentam desafios.

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Reprodução/Nieman

porcentagem em cada país que diz preferir notícias sem ponto de vista ou notícias que compartilham seu ponto de vista

Algumas variáveis não tiveram um impacto significativo na preferência pelas notícias imparciais: o grau de polarização política do país, e se as pessoas confiavam mais em jornais, na televisão, ou nos canais pagos.

Pessoas pertencentes a grupos desfavorecidos socialmente, como mulheres, jovens, com rendas familiares mais baixas e menos instruídas, podem se sentir menos apegadas às normas jornalísticas que, segundo elas, não atendem a seus interesses. Isso pode ser um reflexo das queixas sobre as limitações do jornalismo a respeito de notícias que se propõem imparciais, mas que podem parecer tendenciosas em favor de parcelas mais privilegiados da sociedade –especialmente quando se trata da cobertura de grupos frequentemente estigmatizados ou ignorados.

“Para parte desse público, expressar uma preferência por notícias que partilham de seus pontos de vista pode ser um outro modo de dizer que preferem notícias que retratem de maneira mais justa pessoas com as quais ele se identifica.

[…]

Quando os entrevistados dizem que preferem notícias ‘sem ponto de vista’, como fazem os indivíduos relativamente mais favorecidos na maioria dos países, é possível estejam expressando uma preferência pelas notícias que refletem e não desafiam as perspectivas dominantes da sociedade.  Esses entrevistados poderiam ter respondido de forma diferente caso encontrassem notícias ‘imparciais’ que não refletissem, de maneira esmagadora, suas próprias experiências de vida ou visões de mundo.

Tudo isso para dizer que o desejo do público por “imparcialidade” depende profundamente do contexto –está relacionado ao ambiente político, social e econômico específico em que as pessoas vivem. É menos um dogma do jornalismo e mais uma resposta às condições, motivada por incentivos. “Portanto, cabe às organizações de notícias e aos jornalistas avaliar qual abordagem é mais adequada aos seus contextos”, concluem os autores.

Mont’Alverne afirmou que sua principal conclusão a partir do estudo foi que as pessoas que querem notícias com um viés, podem desejar isso por razões bastante diferentes –que vão desde motivações políticas até o sentimento de falta de representatividade. “Isso reforça a importância de realmente considerar o que o público pensa sobre o jornalismo, pois é comum que a percepção das pessoas seja diferente das suposições dos jornalistas e acadêmicos”, disse.


*Joshua Benton é escritor sênior e ex-diretor do Nieman Lab, fundado por ele em 2008.


Texto traduzido por Bruna Carvalho. Leia o original em inglês.


O Poder360 tem uma parceria com duas divisões da Fundação Nieman, de Harvard: o Nieman Journalism Lab e o Nieman Reports. O acordo consiste em traduzir para português os textos do Nieman Journalism Lab e do Nieman Reports e publicar esse material no Poder360. Para ter acesso a todas as traduções já publicadas, clique aqui.