O STF condenou até este domingo (20.abr.2025) 523 pessoas pelos atos extremistas do 8 de Janeiro. Os julgamentos têm sido realizados em sessões virtuais da 1ª Turma da Corte, sem sustentação oral das defesas.
Nessa modalidade, não há espaço para o contraditório em tempo real nem para o debate direto entre defesa, acusação e magistrados durante o julgamento. A argumentação é concentrada no relator –no caso, Alexandre de Moraes. A não ser que haja divergências ou ressalvas, é ele quem responde aos argumentos das defesas dos acusados no próprio voto. Os documentos, contudo, segundo análise do Poder360, têm poucas diferenças entre si.
A dosimetria das penas variou conforme a conduta atribuída a cada réu.
Alexandre de Moraes sugeriu penas de 1 a 3 anos para casos mais brandos, como incitação ao crime, e de 11 a 17 anos para os que responderam por crimes mais graves, como golpe de Estado.
No caso dos condenados de 11 a 17 anos de prisão, são citados .
Essas pessoas estão sendo condenadas por 3 a 5 crimes entre os que foram imputados pela PGR (Procuradoria Geral da República): abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, deterioração do patrimônio tombado e dano qualificado.
O Poder360 verificou que todos os votos seguem o mesmo molde, com os mesmos parágrafos sendo usados para justificar a imputação dos crimes e, inclusive, para rebater os argumentos das defesas direcionados à uma conduta específica do acusado.
Por exemplo, é repetido nos votos, a frase: “Não merece acolhimento, portanto, a alegação de manifestação ordeira e pacífica apresentada pela defesa, tendo sido registrado intenso confronto até a efetiva retomada dos prédios públicos que foram invadidos e depredados”.
As mesmas fotos da Praça dos Três Poderes no 8 de Janeiro também são usadas para justificar a invasão dos manifestantes aos prédios. Na maioria dos casos, não há uma foto do próprio acusado entrando em algum dos edifícios. As mesmas citações doutrinárias são utilizadas para embasar as justificativas do magistrado.
Fotos dos artefatos depredados na ocasião também compõem o bloco para justificar o crime de dano qualificado. É dito que as depredações ultrapassam um prejuízo de R$ 25 milhões. Nos votos, não é citado se o réu em questão depredou um artefato.
Moraes explica nas peças que é dispensável a identificação “de quem tenha efetivamente causado os inúmeros danos acima exemplificados e descritos” por se tratar de um contexto de “crimes multitudinários”. Afirma que a invasão aos prédios públicos foi feita por “multidão delinquente”, e que os líderes e responsáveis responderão de forma mais gravosa.
O mesmo argumento é trazido aos votos relacionados aos condenados a 1 ou 2 anos de prisão pelos crimes de incitação ao crime e associação criminosa. A pena foi agravada nos casos em que houve descumprimento de medidas cautelares, embora a justificativa do enquadramento penal tenha permanecido idêntica nos votos.
O ministro diz que 3 ou mais pessoas que se reúnem na intenção de cometer crimes, independentemente se consumados, já estabelece crime de associação criminosa. O ministro também cita que, embora não seja possível precisar o momento exato em que houve a adesão à associação criminosa, “é certo” que ela se deu antes do dia 8 de janeiro de 2023.
Ele cita a frase até mesmo em votos que absolvem acusados dos crimes de golpe de Estado e abolição violenta do estado democrático de Direito. Por exemplo, no caso de Felipe Nassau, onde Moraes também alega no voto que “não há provas de que o réu tenha se reunido anteriormente com a turba golpista em frente ao quartel general do Exército, nem que tenham marchado em conjunto com os demais golpistas”.
Nos casos em que o magistrado não enquadra o acusado por associação criminosa, ele costuma apenas registrar uma ressalva, afirmando que, naquele caso específico, não há provas suficientes para a condenação.
O Poder360 elenca abaixo as seguintes diferenças que aparecem entre os votos do ministro:
- uso de diferentes de trechos de relatório, a partir do que foi apresentado pela PGR, deixando algumas decisões maiores que as demais;
- quando a investigação conseguiu registros do acusado no local, as fotos são expostas;
- citações de advogados dos acusados e resposta;
- informações sobre a participação dos acusados em atos (quando chegaram ao acampamento e de que ato participaram);
- detalhes do interrogatório dos réus (frases proferidas à autoridade policial;
- se o denunciado proferiu palavras de ordem que demonstravam a intenção de depor o governo eleito;
- detalhes sobre a prisão de alguns acusados (data e local, diferenciando o prédio em que o acusado foi preso em flagrante).
CRIMES MULTITUDINÁRIOS
Os ministros Nunes Marques e André Mendonça, contudo, em votos para absolver os réus condenados a 1 ano de reclusão, criticam a associação ampliada e justificação idêntica dada aos que ainda estavam em condição de réus.
André Mendonça alega que a acusação “sequer indicou efetivamente” como exatamente cada um dos presos no acampamento aderiu e participou da associação criminosa e do delito de incitação de animosidade entre as Forças Armadas.
Nunes Marques disse que houve uma “significativa rotatividade do público” no ambiente “aberto” dos acampamentos do 8 de Janeiro. Ele defende ser “plausível cogitar” que diversos manifestantes tenham chegado às vésperas dos atos de depredação e que outros tenham partido de lá antes.
“A condenação por associação criminosa exige a identificação dos membros do grupo e a demonstração de que tenham se associado previamente no intuito de cometer crimes. Sendo assim, não se pode presumir, data venia, que todos os acusados presos no acampamento instalado em frente ao Quartel-General do Exército no dia seguinte aos eventos do 8 de Janeiro mantivessem, indistintamente, tal vínculo associativo, com certa estabilidade e o objetivo de praticar delitos indeterminados. Era dever da acusação esmiuçar as condutas de cada réu, o que, na verdade, não fez”, disse Marques.
O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello, sem se posicionar sobre o caso concreto, também já disse ao Poder360 que “a denúncia precisa individualizar a conduta criminosa”, visto que “são vários acusados”.
“Não conheço a peça. Não conheço o voto do ministro Alexandre [de Moraes]. Mas não dá, no âmbito do Judiciário, para tocar de cambulhada. Ou seja, a peça 1ª da ação penal deve ser individualizada”, declarou o ex-ministro.
O advogado criminalista Kakay, articulista do Poder360, vê que a imputação por organização criminosa cabe sem sombras de dúvidas aos 34 denunciados de terem organizado um golpe de 2022, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), mas que respeita a tese levantada pelo advogado e professor de direito penal da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Davi Tangerino sobre os crimes cometidos por quem esteve no 8 de Janeiro.
Segundo Kakay, “Tangerino levanta uma questão técnica que tem que ser discutida. O Supremo já a ultrapassou, mas pode ser revista. A discussão diz que aqueles que participaram da turma do ‘movimento inconsequente’ não podem ser condenados por organização criminosa, porque na sua visão, o crime estabelece necessidade de organização, plausibilidade sobre cada um que participou e sobre como se deu a divisão de tarefas, por exemplo”.
Para o articulista do Poder360, o advogado criminalista André Marsiglia, a alegação de crime multitudinário se contradiz com a de que os réus do dia 8 estavam a mando dos 34 denunciados do inquérito do golpe.
Segundo ele, o crime multitudinário pressupõe a espontaneidade da reunião das pessoas em torno do delito, muitas vezes sem a intenção prévia de cometê-lo. Isso entraria em conflito, afirma Marsiglia, com a ideia de que os envolvidos teriam atuado sob ordens ou planejamento prévio.
“Crime multitudinário existe para punir delitos decorrentes da desordem, da desorganização espontânea de uma massa. Entendo que estão usando esse instituto para poderem acusar a todos com rapidez e sem muitos questionamentos. É um uso enviesado e vulgar do instituto do crime multitudinário”, disse.