AMAZÔNIA – Entre o almoxarifado global e o berço de um futuro sustentável, uma floresta de gente

Texto escrito por um cidadão amazônida em busca do pacto que ainda não fizemos

Márcio Macedo – publicitário e pesquisador

A Amazônia, esse palavrão sonoro que o mundo inteiro conhece — mas tão poucos compreendem — é muito mais do que floresta, rio, calor e mistério. Na Amazônia Legal vivem mais de 20 milhões de habitantes, segundo dados do IBGE (2022), — que corresponde a cerca de 59% do território brasileiro, ocupada por 9 dos 26 Estados que fazem parte do País: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, em uma equação complexa de tradição, modernidade, economia de subsistência, bioeconomia, agronegócio, política, fé e sobrevivência.

É um mundo dentro do Brasil que ainda luta para ser visto como mais do que uma “reserva de mercado” para o resto do país e do planeta e, sim, temos uma natureza exuberante. Mas temos, sobretudo, gente. Gente que ama, que erra, que tenta acertar, que vive, sim, no coração verde do planeta, mas que também quer comer, criar filhos, empreender, estudar e se desenvolver.

Bertha Becker (2010) contraria a visão equivocada da Amazônia de que se trata de um vazio demográfico e enfatiza que a Amazônia é uma “floresta urbanizada”, que significa reconhecer que a conservação ambiental precisa dialogar com as necessidades sociais, econômicas e culturais, com mais de 70% da população amazônica vivendo em áreas urbanas.

Sustentabilidade com rosto local

Edna Castro (2015) e Gilberto Rocha (2018) concordam com Bertha Becker ao afirmar que a Amazônia é, sim, uma floresta urbanizada. Essa configuração territorial revela que a urbanização na Amazônia não se expressa apenas nas grandes cidades, mas também nas pequenas e médias cidades e nas redes socioterritoriais espalhadas pelos rios, florestas e estradas.

Ambos defendem que qualquer proposta de desenvolvimento para a Amazônia precisa considerar essa realidade: uma floresta habitada, viva, urbanizada e complexa, onde não há separação entre natureza e sociedade, mas sim uma relação dinâmica e interdependente.

Ligia Simonian (2000) analisa a relação entre Estado, sociedade e políticas públicas na Amazônia e discute como as ações de proteção ambiental e regulação do uso de recursos naturais têm impactado as populações amazônicas. Ela aponta que, apesar de avanços, ainda há desafios significativos na implementação de políticas que integrem efetivamente as comunidades locais na gestão ambiental.

Ainda que com pensamentos divergentes quanto ao como a Amazônia deve conseguir o protagonismo, estes pesquisadores carregam algo de muito mais valioso e que supera suas diferenças intelectuais: verem a Amazônia no lugar que deveria estar, na vanguarda do desenvolvimento sustentável no Brasil e no mundo.

Feitas estas contextualizações, vamos ao que penso sobre as questões que vejo centrais se quisermos tornar a Amazônia protagonista de fato e direito — e não somente no aspecto simbólico.

O discurso da vítima já não basta

É confortável — e politicamente oportuno — apontar o dedo para fora. Para os grandes grupos internacionais que compram terras, devastam áreas inteiras e extraem minérios e madeira como se a floresta fosse um almoxarifado disponível para saque. Para os empresários do sul e sudeste que veem aqui apenas matéria-prima barata. Para os governos centrais que historicamente tratam a Amazônia como “problema de segurança nacional” ou, mais recentemente, como um “ativo de negociação climática”.

Mas é preciso coragem para olhar para dentro.

A verdade — incômoda — é que o amazônida também precisa se olhar no espelho. A relação com a floresta, por vezes, é de exploração predatória, não de cuidado. Há um senso de pertencimento afetivo, sim. Mas ainda é frágil o senso de responsabilidade ambiental e estratégica. Falta a compreensão de que a floresta em pé vale mais do que derrubada — e não só do ponto de vista moral ou ecológico, mas econômico, produtivo e social.

A bioeconomia ainda é promessa

Avanços foram feitos, sem dúvida. O debate sobre bioeconomia ganhou corpo. Iniciativas de cadeias produtivas sustentáveis, com agregação de valor a partir de insumos florestais — óleos, frutos, resinas, saberes tradicionais — florescem aqui e ali. Mas ainda são ilhas de excelência cercadas por mares de atraso e desinteresse.

Faltam políticas públicas integradas, incentivo à verticalização das cadeias produtivas — para que não continuemos exportando matéria-prima barata e importando o produto final caro. E, sejamos francos, falta também visão de longo prazo entre os próprios empresários locais, que muitas vezes se alinham com a lógica extrativista, imediatista, exportadora e descompromissada com o desenvolvimento regional.

O agronegócio avança — e ameaça. E no meio dessa encruzilhada, o agronegócio — com sua lógica de escala, monocultura, mecanização e mercado internacional — avança de maneira avassaladora. Não raro, com terras compradas por estrangeiros ou grupos do sul/sudeste, que replicam aqui o modelo que já esgotou o Cerrado e boa parte da Mata Atlântica.

A Amazônia é vendida como a última fronteira agrícola. Mas a que preço? Que futuro isso projeta para as próximas gerações amazônidas? Um futuro de empregos precários, cidades inchadas, contaminação por agrotóxicos e terras degradadas? É isso que queremos chamar de progresso?

A ausência de um pacto amazônico

Enquanto isso, nossos líderes locais — políticos, empresariais, acadêmicos, religiosos e comunitários — seguem divididos em feudos, em disputas fratricidas, mais preocupados com a próxima eleição do que com o próximo ciclo de desenvolvimento regional. E essa desorganização é o terreno fértil onde prospera a exploração externa.

Lá no sul e sudeste, os estados se organizam em blocos, alinham discursos, protegem interesses comuns e, depois de garantir o que querem, brigam entre si pela fatia do bolo. Aqui, fazemos o inverso: brigamos primeiro, nos sabotamos, e entregamos de bandeja os anéis — e os dedos.

Protagonismo ou subordinação?

É hora de romper o ciclo. De assumir o protagonismo com coragem, inteligência e unidade. Não como vítimas, mas como agentes da transformação. A Amazônia pode, sim, ser vanguarda global na agenda ambiental. Mas isso exige mais do que discursos bonitos. Exige organização. Exige pacto. Exige que olhemos para o Pará, para o Acre, para o Amazonas e demais estados como um projeto comum, com estratégias integradas, políticas públicas coordenadas e interesses alinhados.
Chega de esperar que Brasília, Nova Iorque ou Bruxelas decidam nosso destino. É aqui que a virada começa. Ou deveria começar.

Um pacto para além da floresta

Este artigo é só o primeiro de uma série. Pretendo mergulhar fundo em cada uma das feridas aqui citadas. E há muitas. Mas não o farei com o dedo em riste. Farei como quem ama essa terra e não aceita mais vê-la tratada como periferia do futuro.

Porque a Amazônia não pode mais ser apenas uma floresta. Ela precisa ser um projeto de nação. E, quem sabe, de civilização. Pedro Bial diria que é hora de levantar-se do sofá. Paulo Henrique Amorim, talvez, bradaria que estamos no “tudo dominado”. Eu, amazônida que escreve da beira do rio e do caos,
digo: estamos vivos. E ainda dá tempo de mudar a história.

  • Marcio Macedo, paraense de Itaituba, publicitário, mestrado em comunicação empresarial, linguagens e político-eleitoral e pós-doutorado em desenvolvimento sustentável. Pesquisador na Análise Inteligência.

Translation (tradução)

AMAZON – Between the global stockroom and the cradle of a sustainable future, a forest of people

Text written by an Amazonian citizen in search of the pact we have yet to make

Márcio Macedo – advertiser and researcher *

The Amazon, that resounding word known worldwide — yet understood by so few — is much more than forest, river, heat, and mystery. In the Brazilian Amazon, over 20 million people live, according to IBGE data (2022), across roughly 59% of Brazil’s territory, encompassing 9 of the country’s 26 states: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, and Tocantins. It’s a complex equation of tradition, modernity, subsistence economy, bioeconomy, agribusiness, politics, faith, and survival.

It is a world within Brazil that still struggles to be seen as more than a “market reserve” for the rest of the country and the planet. Yes, we have exuberant nature. But above all, we have people. People who love, err, strive to get it right, and live in the green heart of the planet, yet also want to eat, raise children, innovate, study, and develop.

Bertha Becker (2010) challenges the mistaken view of the Amazon as a demographic void, emphasizing that it is an “urbanized forest.” This means recognizing that environmental conservation must engage with social, economic, and cultural needs, with over 70% of the Amazonian population living in urban areas.

Sustainability with a local face

Edna Castro (2015) and Gilberto Rocha (2018) agree with Bertha Becker, affirming that the Amazon is indeed an urbanized forest. This territorial configuration reveals that urbanization in the Amazon is not limited to large cities but also includes small and medium-sized towns and socio-territorial networks spread across rivers, forests, and roads.

Both argue that any development proposal for the Amazon must consider this reality: an inhabited, living, urbanized, and complex forest where nature and society are not separate but dynamically interdependent.

Ligia Simonian (2000) analyzes the relationship between the state, society, and public policies in the Amazon, discussing how environmental protection and resource regulation actions have impacted Amazonian populations. She notes that, despite progress, significant challenges remain in implementing policies that effectively integrate local communities into environmental management.

Though their views on how the Amazon should achieve prominence differ, these researchers share something far more valuable than their intellectual differences: the vision of the Amazon in its rightful place, at the forefront of sustainable development in Brazil and the world.

With this context in mind, here’s what I believe are the central issues if we want to make the Amazon a true protagonist — not just symbolically.

The victim narrative is no longer enough

It’s comfortable — and politically convenient — to point fingers outward. At international groups buying land, devastating entire areas, and extracting minerals and timber as if the forest were a stockroom open for plunder. At entrepreneurs from the South and Southeast who see the Amazon only as a source of cheap raw materials. At central governments that have historically treated the Amazon as a “national security issue” or, more recently, a “climate negotiation asset.”

But it takes courage to look inward.

The uncomfortable truth is that Amazonians must also look in the mirror. Our relationship with the forest is often one of predatory exploitation, not care. There is indeed an emotional sense of belonging, but the sense of environmental and strategic responsibility remains fragile. There’s a lack of understanding that a standing forest is worth more than a felled one — not just morally or ecologically, but economically, productively, and socially.

The bioeconomy remains a promise

Undoubtedly, progress has been made. The bioeconomy debate has gained traction. Initiatives for sustainable production chains, adding value through forest resources — oils, fruits, resins, traditional knowledge — are emerging here and there. But these are still islands of excellence surrounded by seas of backwardness and disinterest.

There’s a lack of integrated public policies and incentives for verticalizing production chains so we stop exporting cheap raw materials and importing expensive finished products. And, let’s be honest, there’s also a lack of long-term vision among local entrepreneurs, who often align with the extractive, short-term, export-driven logic, uncommitted to regional development.

Agribusiness advances — and threatens. In the midst of this crossroads, agribusiness — with its logic of scale, monoculture, mechanization, and international markets — advances relentlessly. Often with lands bought by foreigners or groups from the South/Southeast, replicating a model that has already exhausted the Cerrado and much of the Atlantic Forest.

The Amazon is sold as the last agricultural frontier. But at what cost? What future does this project for the next generations of Amazonians? A future of precarious jobs, overcrowded cities, pesticide contamination, and degraded lands? Is this what we call progress?

The absence of an Amazonian pact

Meanwhile, our local leaders — political, business, academic, religious, and community — remain divided in fiefdoms, engaged in fratricidal disputes, more concerned with the next election than the next cycle of regional development. This disorganization is the fertile ground where external exploitation thrives.

In the South and Southeast, states organize into blocs, align their narratives, protect common interests, and only then fight among themselves for their share of the pie. Here, we do the opposite: we fight first, sabotage each other, and hand over the rings — and the fingers — on a silver platter.

Protagonism or subordination?

It’s time to break the cycle. To embrace protagonism with courage, intelligence, and unity. Not as victims, but as agents of transformation. The Amazon can indeed be a global vanguard in the environmental agenda. But this requires more than pretty speeches. It demands organization. It demands a pact. It demands that we see Pará, Acre, Amazonas, and the other states as a shared project, with integrated strategies, coordinated public policies, and aligned interests.

No more waiting for Brasília, New York, or Brussels to decide our fate. The turnaround starts here. Or it should.

A pact beyond the forest

This article is just the first in a series. I intend to dive deep into each of the wounds mentioned here. And there are many. But I won’t do so with a raised finger. I’ll do it as someone who loves this land and refuses to see it treated as the periphery of the future.

Because the Amazon can no longer be just a forest. It must be a national project. And, who knows, a civilizational one. Pedro Bial would say it’s time to get off the couch. Paulo Henrique Amorim might proclaim that “everything is under control.” I, an Amazonian writing from the river’s edge and the chaos, say: we are alive. And there’s still time to change history.

  • Márcio Macedo, from Itaituba, Pará, advertiser, with a master’s in corporate, linguistic, and political-electoral communication and a post-doctorate in sustainable development. Researcher at Análise Inteligência.

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