Castanha-do-Pará: Um ‘Crédito de Carbono Comestível’ em meio à crise climática e burocrática

Com safra reduzida em 70% pela seca na Amazônia e entraves na certificação orgânica, a castanha amazônica busca reconhecimento e valorização que reflitam seu papel vital na preservação da floresta

Belém, Brasília, Santa Catarina – Às vésperas da 30ª Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP30), que será entre 10 e 21 de novembro, em Belém, capital do Pará. O Portal Ver-o-Fato promoveu na quinta-feira (29), uma mesa redonda para debater a bioeconomia da castanha-do-pará, e recebeu Victoria Mutran, diretora comercial da Exportadora Mutran, a maior beneficiadora da noz no Pará. O setor da castanha clama por união para que a conferência climática dê voz às demandas locais e promova um desenvolvimento econômico que valorize os produtos da floresta em pé, avaliou a executiva. A castanha, além de possuir propriedades alimentícias extraordinárias, — é, em última análise, um “crédito de carbono comestível”, em meio à crise climática e burocrática de organismos multilaterais internacionais.

Mesa redonda do Linha de Tiro. Imagem: Divulgação

Doutora em Engenharia de Produção, formada pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), com formação executiva em Empreendedorismo e Inovação pela Purdue University (EUA), doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora no prestigiado Imperial College London (Reino Unido), a empresária Victoria Mutran, foi entrevistada pelos jornalistas: Carlos Mendes (mediador), Emanuel Villaça, Jorge Reis, Val-André Mutran, e pelo professor da UFPA, cientista político e advogado, Elson Monteiro. Acompanhe os principais trechos da entrevista (íntegra do programa, acesse aqui).

O programa “Linha de Tiro”, mergulhou fundo nos desafios e oportunidades da bioeconomia amazônica, tendo como foco principal a castanha-do-Pará. A convidada trouxe uma perspectiva multifacetada sobre o setor, abordando desde a tradição familiar até as complexidades do mercado global e o papel da próxima COP30.

A discussão, iniciou com um breve panorama político-econômico de Brasília, marcado pela tensão fiscal e a polêmica do aumento do IOF. No entanto, o cerne do debate rapidamente se voltou para a Amazônia e seus produtos.

O paneiro e a “mão de onça” são as principais ferramentas de trabalho de um coletor de castanha-do-Pará. Foto: Marcos Vicentti/Secom/Governo do Acre

Castanha-do-Pará: um símbolo em busca de reconhecimento

Victoria Mutran, representante da quarta geração de uma família dedicada à castanha, destacou a profunda ligação pessoal e histórica com o produto. Ela ressaltou que a castanha-do-Pará é, por excelência, um símbolo da bioeconomia. A empresa na qual atua, Mutran Exportadora, tem 50 anos de existência e exporta para mais de 15 países.

Um dos pontos mais críticos levantados foi a perda de protagonismo do Brasil no mercado internacional da castanha. Segundo a executiva, a Bolívia hoje domina 80% desse mercado. Essa mudança se deve, em parte, à modernização do processamento boliviano, impulsionada por investimentos externos e a adaptação mais rápida às novas regulações sanitárias europeias.

“Mas hoje a Bolívia domina 80% do mercado internacional de castanha. Quando a gente fala em exportações, às vezes o Brasil fica até atrás do Peru, por incrível que pareça”, disse Victoria Mutran.

Apesar da retração nas exportações, o mercado nacional emergiu como um “salva-vidas” para a indústria brasileira a partir dos anos 2000. A crescente percepção da castanha como um “super alimento” e sua valorização pelo consumidor local garantiram a sobrevivência do setor.

Em 2022, a castanha foi o terceiro produto mais exportado no Acre. Foto: Marcos Vicentti/Secom/Governo do Acre

Extrativismo, sustentabilidade e os desafios da produção

A discussão sobre o modelo de produção da castanha revelou uma preferência clara de Victoria Mutran pelo extrativismo sustentável em detrimento da monocultura. Ela enfatizou que a castanheira depende do ecossistema para frutificar, o que a torna um “crédito de carbono em forma de comida”.

“Uma castanha, quando você come a castanha, aquilo é um crédito de carbono em forma de comida, porque é uma garantia de que para você poder produzir aquela semente, houve ao redor dela todo um ecossistema de floresta nativa e floresta amazônica, porque ela só existe aqui na Amazônia, para que ela pudesse produzir, a castanheira pudesse produzir e florescer”, explicou a especialista.

Chegada de um novo carregamento de castanha ao armazém da Cooperxapuri. Foto: Marcos Vicentti/Secom/Governo do Acre

A empresária/pesquisadora defendeu a ideia de “agroflorestas inteligentes” e o resgate de conhecimentos ancestrais indígenas para o manejo da floresta, visando aumentar a incidência de castanhas sem recorrer a métodos de cultivo em massa. Um dos grandes desafios, contudo, é a falta de um marketing eficaz que comunique essa história e valorize o produto no mercado externo.

A safra atual da castanha enfrenta uma crise sem precedentes, com uma quebra de volume de cerca de 70% em relação ao ano passado, atribuída à falta de chuvas em 2023 e 2024. Essa imprevisibilidade impacta diretamente o planejamento das empresas e a capacidade de garantir o fornecimento, dificultando o desenvolvimento de novos produtos com castanha no mercado externo.

A logística de coleta e escoamento da castanha, que envolve comunidades tradicionais e indígenas adentrando a mata, é outro gargalo. Além disso, a certificação orgânica, crucial para mercados exigentes, é um obstáculo. As regras, criadas para fazendas europeias, são impraticáveis para a vasta e complexa realidade da Amazônia.

“É muito difícil de obter a certificação orgânica da castanha. Por quê? Porque a regra foi criada para fazendas na União Europeia… como que um auditor vai conseguir visitar cada metro quadrado da floresta amazônica? Não existe isso, é impossível”, criticou a executiva.

Acre possui uma das maiores concentrações de castanheiras do mundo, mas é a Bolívia a maior exportadora para o mercado internacional. Foto: Cleiton Lopes/Secom/Governo do Acre

COP30: Uma oportunidade para a voz da Amazônia?

A proximidade da COP30 em Belém foi um tema central. Victoria Mutran vê o evento como uma oportunidade ímpar para que os formuladores de políticas e pesquisadores de fora da região compreendam a realidade amazônica, tanto em termos de negócios quanto social.

“Eu vejo a COP como uma oportunidade das pessoas que discutem a Amazônia fora de Belém, fora daqui da nossa região, realmente veem a nossa realidade, conhecerem de perto sobre os negócios daqui, sobre o dia a dia daqui, a realidade até social mesmo das cidades da Amazônia, da população da Amazônia”, destacou a industrial.

No entanto, ela ressaltou a necessidade de união do setor empresarial local para que suas demandas sejam ouvidas. A falta de uma associação organizada dificulta a articulação de uma voz política conjunta. Um exemplo claro das barreiras enfrentadas é a regulação europeia sobre o “brometo” na castanha, um componente natural que, por uma regra “irreal”, cria entraves comerciais.

A empresária citou a parceria da Mutran Exportadora com a gigante alimentícia Wickbold, e a ONG Origens Brasil — rede que promove negócios que valorizam os povos da floresta e a Amazônia viva —, como um modelo de sucesso. Essa colaboração visa promover o comércio ético e a rastreabilidade, valorizando a história por trás do produto e as comunidades envolvidas.

“Esse é um excelente exemplo de uma nova forma de você fazer o marketing do produto e valorizar principalmente a história por trás daquele produto, as pessoas que estão envolvidas naquela cadeia produtiva”, salientou Victoria.

A discussão sobre o nome da castanha — “Castanha-do-Pará”, “Castanha-do-Brasil” ou “Castanha-da-Amazônia” — também foi abordada, com Mutran expressando preferência por “Castanha-da-Amazônia” devido ao forte apelo de marketing que o nome “Amazônia” possui globalmente.

Apesar dos desafios, a visão de Victoria Mutran é de otimismo cauteloso. Ela acredita que, com políticas públicas adequadas e uma maior articulação do setor, é possível valorizar os produtos da floresta e impulsionar a bioeconomia, garantindo que a floresta em pé seja a base do desenvolvimento regional. A COP30, nesse sentido, representa uma chance de ouro para que a Amazônia mostre ao mundo que é possível conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental, desde que as particularidades e necessidades locais sejam compreendidas e respeitadas.

* Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.

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