“Por que que tanta gente teme? Norte não é com M. Nossos índios não comem ninguém. Agora é só hambúrguer”. Diz a letra do Mosaico de Ravena, o hino moderno do Pará. Esta matéria abaixo está traduzida para o inglês.
Nos últimos meses, à medida que se aproxima a realização da COP30 em Belém, em novembro de 2025, uma série de reportagens e artigos de opinião foram e continuam a ser publicados em veículos do Sudeste e do Sul do país questionando — para não dizer atacando — a escolha da capital paraense como sede do mais importante evento climático do planeta. A tônica de boa parte dessas publicações é conhecida: alagamentos, deficiência de saneamento, insegurança, problemas históricos de infraestrutura urbana. O tom, no entanto, não é de crítica construtiva ou preocupação ambiental. É de desdém, ironia e, em certos casos, puro preconceito disfarçado de sofisticação analítica.
Os problemas existem? Sim, e não há vergonha em admiti-los. Belém tem desafios sérios, como toda grande cidade brasileira — e até mesmo como megalópoles globais. Quem conhece Paris sabe o que são inundações e crises de coleta de lixo. Quem já esteve em Nova York conhece os bairros esquecidos, povoados de pedintes “economicamente inviáveis”, abandonados pelo poder público. Quem passa por Roma ou Mumbai enxerga claramente a tensão entre patrimônio histórico e caos urbano.
Em São Paulo, a Marginal Tietê desafia quem trafega por ela a baixar o vidro do carro, em meio a colossais engarrafamentos de trânsito, para sentir o mau cheiro de um dos rios mais poluídos do mundo. Sem falar nas enchentes das chuvas que alagam bairros inteiros e residências, mergulhando-os no caos. Lógico que, por conta disso, não diremos que São Paulo é uma cidade de “esgoto a céu aberto”. E a Cracolândia, hein, um problema que há décadas desafia governos e soluções?
Nem por isso, São Paulo deixa de ser uma bela cidade, o coração econômico do Brasil. Pujança de diversidade cultural, étnica e onde o concreto e a arborização convivem com suas contradições e sem maiores atropelos. A mesma coisa se pode dizer do Rio de Janeiro e suas maravilhas, apesar dos transtornos dos tiroteios diários, da insegurança pública, da Baía de Guanabara totalmente poluída e das lutas sangrentas entre organizações criminosas e policiais. O Rio é o Rio e flutua acima das próprias mazelas, atraindo turistas do mundo.
E nós?
A questão é a seguinte: por que quando se trata de Belém, os problemas ganham uma conotação de incapacidade? De inferioridade? De vergonha nacional? O fim do mundo pintado em manchetes indignadas.
É aqui que entra um viés perigosamente generalizador e repetido: o preconceito regional, camuflado de análise jornalística nua a crua. É o velho neocolonialismo da elite sudestina — que enxerga o Norte e a Amazônia não como territórios plenos, dignos de protagonismo, mas como reservas exóticas para contemplação ou exploração.
Nelson Rodrigues, sempre genial e atual, dizia que o brasileiro tem “espírito de vira-lata”. Mas o que dizer de quem chega a Belém, como pitbull para morder a própria pata e “descobrir” e mostrar ao Brasil que aqui existem o Igarapé do Mata-Fome e a Vila da Barca, em vez de destacar que, apesar dos anos de abandono, seus moradores se organizam, denunciam o descaso, cobram providências das autoridades, mas não perdem a esperança de dias melhores e nem a alegria de viver? Ou que os “invisíveis” se tornam cada vez mais visíveis?
A crítica à escolha de Belém para sediar a COP30, quando feita com base em estereótipos e paternalismo, nada mais é do que a repetição de uma mentalidade histórica que subalterniza o Norte do Brasil.
Essa gente escriba é a mesma, da velha e carcomida imprensa, que bate palmas para governantes de plantão e faz cobertura, “em primeira mão”, de reuniões em gabinetes refrigerados de Brasília sobre as verbas que virão ou deixarão de vir para salvar vidas dos que penam nas filas do SUS no Pará. Ou da quase metade da população do estado que sobrevive “graças” ao Bolsa Família.
A música “Belém, Pará, Brasil”, da banda paraense Mosaico de Ravena, composta por Edmar da Rocha, captura esse sentimento com precisão dolorosa e poderosa:
“A culpa é da mentalidade
Criada sobre a região
Por que que tanta gente teme?
Norte não é com M
Nossos índios não comem ninguém
Agora é só hambúrguer
Por que ninguém nos leva a sério?
Só o nosso minério”
Belém não precisa da piedade irônica de quem acha que o Brasil começa em São Paulo e termina em Curitiba. Belém precisa de reconhecimento, investimento e visibilidade. A COP30, nesse sentido, é uma oportunidade sem precedentes: de mostrar ao mundo a riqueza ambiental, cultural, gastronômica e humana da Amazônia urbana. É uma chance de afirmar que sim, “isso é Belém, isso é Pará, isso é Brasil”, como canta o refrão orgulhoso da canção.
Manchetes canalhas
Belém é muito mais do que as manchetes canalhas e maldosas querem mostrar. É cidade de cheiro de tucupi e jambu, de jacarés metafóricos que não querem tropeçar em turistas desavisados, de palacetes históricos ameaçados pela especulação, mas também de resistência cultural vibrante. Belém é o Ver-o-Peso, um dos maiores mercados abertos da América Latina, onde se encontram o passado indígena, o legado lusitano e a vitalidade afro-amazônica.
É o lugar onde açaí não é sobremesa, é almoço. Onde o tambor da Umbanda nos bairros encontra o carimbó e a guitarrada. Onde se toma guaraná “quando não tem Coca-Cola”, com orgulho.
Se é verdade que há precariedades a serem enfrentadas e políticos que não estão à altura dos desafios que a cidade a eles impõe, também é verdade que há força, talento e identidade suficientes para sediar com dignidade e brilho um evento do porte da COP 30.
Não é necessário higienizar Belém para receber o mundo. O que é necessário é encarar com honestidade as contradições de uma cidade real, viva, intensa — como qualquer outra grande cidade global.
As críticas que tentam desqualificar Belém como sede da COP30 não estão apenas equivocadas e cheias de má fé. Estão, muitas vezes, impregnadas de um preconceito histórico que trata o Norte como apêndice. Um preconceito que, como diz a música, já feriu demais:
“Região Norte
Ferida aberta pelo progresso
Sugada pelos sulistas
E amputada pela consciência nacional”
É hora de virar essa página. E de mostrar, para quem ainda não entendeu, que o Norte quer — e merece — estar lá em cima. E mais: Norte não se escreve com M.
Por isso, quem quiser venha ver. Mas só um de cada vez. Porque os jacarés estão de prontidão — e eles não tropeçam à toa.
Translation (Tradução)
Belém, COP30, and Prejudice: A Response to Neocolonial Criticism Disguised as Urban Concern
Why do so many people fear? North isn’t spelled with an M. Our indigenous people don’t eat anyone. Now it’s just hamburgers. So says the lyrics of Mosaico de Ravena, the modern anthem of Pará.
In recent months, as the COP30 in Belém approaches in November 2025, a series of reports and opinion pieces have been and continue to be published in media outlets from Brazil’s Southeast and South, questioning—if not outright attacking—the choice of the Pará capital as the host of the planet’s most important climate event. The tone of many of these publications is familiar: flooding, poor sanitation, insecurity, and longstanding urban infrastructure issues. However, the tone isn’t one of constructive criticism or environmental concern. It’s one of disdain, irony, and, in some cases, pure prejudice disguised as sophisticated analysis.
Do the problems exist? Yes, and there’s no shame in admitting it. Belém faces serious challenges, like any major Brazilian city—or even global megalopolises. Those who know Paris are familiar with its floods and garbage collection crises. Those who’ve been to New York know its neglected neighborhoods, populated by “economically unviable” homeless people abandoned by the government. Those who pass through Rome or Mumbai can clearly see the tension between historical heritage and urban chaos.
In São Paulo, the Marginal Tietê challenges drivers to roll down their windows amid colossal traffic jams to smell the stench of one of the world’s most polluted rivers. Not to mention the rainy season floods that submerge entire neighborhoods and homes, plunging them into chaos. Of course, no one would call São Paulo an “open sewer” because of this. And what about Cracolândia, a decades-old problem that defies governments and solutions?
Yet, São Paulo remains a beautiful city, the economic heart of Brazil. A hub of cultural and ethnic diversity, where concrete and greenery coexist with their contradictions, without major disruptions. The same can be said of Rio de Janeiro and its wonders, despite daily shootouts, public insecurity, the completely polluted Guanabara Bay, and bloody struggles between criminal organizations and police. Rio is Rio, floating above its own struggles, attracting tourists from around the world.
And us?
The question is this: why, when it comes to Belém, do the problems take on a connotation of incapacity? Of inferiority? Of national embarrassment? The end of the world painted in indignant headlines.
This is where a dangerously generalizing and repetitive bias comes in: regional prejudice, camouflaged as raw journalistic analysis. It’s the old neocolonialism of the southeastern elite—who see the North and the Amazon not as full-fledged, dignified territories worthy of protagonism, but as exotic reserves for contemplation or exploitation.
Nelson Rodrigues, always brilliant and relevant, said that Brazilians have a “mongrel spirit.” But what can we say about those who arrive in Belém to “discover” and show Brazil that places like Igarapé do Mata-Fome and Vila da Barca exist, instead of highlighting that, despite years of neglect, their residents organize, denounce the abandonment, demand action from authorities, yet never lose hope for better days or the joy of living? Or that the “invisible” are becoming ever more visible?
Criticism of Belém’s selection to host COP30, when based on stereotypes and paternalism, is nothing more than the repetition of a historical mentality that subordinates Brazil’s North.
These same scribblers, from the old and decaying press, are the ones who applaud politicians in power and provide “exclusive” coverage of meetings in air-conditioned Brasília offices about funds that may or may not come to save lives of those suffering in Pará’s SUS hospital lines. Or about the nearly half of the state’s population surviving “thanks” to Bolsa Família.
The song “Belém, Pará, Brasil” by the Pará band Mosaico de Ravena, composed by Edmar da Rocha, captures this sentiment with painful and powerful precision:
“The fault lies in the mentality
Created about the region
Why do so many people fear?
North isn’t spelled with M
Our indigenous people don’t eat anyone
Now it’s just hamburgers
Why doesn’t anyone take us seriously?
Only our minerals matter”
Belém doesn’t need the ironic pity of those who think Brazil begins in São Paulo and ends in Curitiba. Belém needs recognition, investment, and visibility. COP30, in this sense, is an unprecedented opportunity: to show the world the environmental, cultural, gastronomic, and human richness of urban Amazonia. It’s a chance to affirm that yes, “this is Belém, this is Pará, this is Brazil,” as the song’s proud chorus declares.
Scoundrel headlines
Belém is much more than the scoundrel and malicious headlines try to portray. It’s a city of the scent of tucupi and jambu, of metaphorical alligators that don’t want to trip over unsuspecting tourists, of historic mansions threatened by speculation, but also of vibrant cultural resistance. Belém is Ver-o-Peso, one of the largest open-air markets in Latin America, where indigenous heritage, Portuguese legacy, and Afro-Amazonian vitality converge.
It’s the place where açaí isn’t dessert—it’s lunch. Where the drum of Umbanda in the neighborhoods meets carimbó and guitarrada. Where people drink guaraná “when there’s no Coca-Cola,” with pride.
If it’s true that there are shortcomings to address and politicians who fall short of the challenges the city imposes on them, it’s also true that there’s enough strength, talent, and identity to host an event of COP30’s magnitude with dignity and brilliance.
There’s no need to sanitize Belém to welcome the world. What’s needed is to face the contradictions of a real, living, intense city—like any other major global city—with honesty.
The criticisms that try to disqualify Belém as the host of COP30 are not just mistaken and full of bad faith. They are often steeped in a historical prejudice that treats the North as an appendage. A prejudice that, as the song says, has already wounded too much:
“North Region
An open wound from progress
Sucked dry by southerners
And amputated by national consciousness”
It’s time to turn this page. And to show those who still haven’t understood that the North wants—and deserves—to stand tall. And more: North isn’t spelled with M.
So, come and see. But one at a time. Because the alligators are on standby—and they don’t stumble.
- Carlos Mendes is a professional journalist and the editor of the Ver-o-Fato news portal.
VÍDEO DE “BELÉM, PARÁ, BRASIL” – MOSAICO DE RAVENA
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