A “Guerra do IOF” incendeia Brasília, polariza os Poderes e desfecho é imprevisível

Lula judicializa derrubada de imposto pelo Congresso, acirrando guerra por arrecadação e definindo futuro da governabilidade e das finanças públicas

Brasília – A semana que se encerra marcou uma verdadeira guerra política e fiscal que irrompeu nos corredores do Planalto em Brasília, colocando o Poder Executivo e o Legislativo em rota de colisão direta. O pivô do conflito, que já assume contornos de embate eleitoral para 2026, é o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e a decisão do Congresso Nacional de derrubar um decreto presidencial que elevava suas alíquotas. No centro do palco, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, após uma “derrota histórica” no Parlamento, optou por um caminho de alto risco: levar a disputa ao Supremo Tribunal Federal (STF). As consequências são imprevisíveis, mas, qualquer que seja seu desdobramento, não será bom para o país.

Mais do que uma mera controvérsia tributária, este confronto é um choque de titãs que expõe rachaduras profundas na relação entre os poderes, com implicações diretas para a estabilidade econômica, a capacidade de manobra do governo e, em última instância, o bolso do cidadão comum. É a “Guerra do IOF”, um capítulo tenso que promete redefinir alianças e estratégias políticas no Brasil.

As origens da Guerra
Para compreender a magnitude do atual embate, é preciso recuar no tempo e entender a natureza do IOF. Criado na década de 1960 e amplamente respaldado pela Constituição de 1988, o IOF é um tributo de natureza extrafiscal, ou seja, sua função não é apenas arrecadatória, mas também regulatória. O artigo 153 da Carta Magna confere à União a prerrogativa de instituir impostos sobre “operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários”, o que “faculta ao Executivo alterar as alíquotas destes tributos”. Essa flexibilidade é uma ferramenta poderosa nas mãos do presidente para ajustar a economia rapidamente.

Foi com base nessa prerrogativa que o governo Lula emitiu um decreto presidencial visando elevar o IOF. A motivação oficial, como o próprio presidente e seus auxiliares têm reiterado, era de justiça tributária. A ideia, conforme apurado, era taxar o “andar de cima”, os “bilionários” e as empresas de “bets” (apostas financeiras), buscando arrecadar mais para financiar políticas sociais e recompor o caixa do Estado. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, por exemplo, vinha defendendo internamente a necessidade de um “enfrentamento” no STF caso houvesse resistência.

Contrariando as expectativas e os avisos do Planalto, o Congresso agiu com celeridade surpreendente. Em uma manobra liderada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que o governo acusa de ter pautado o tema “sem avisar”, o Legislativo votou e aprovou sumariamente um projeto de decreto legislativo (PDL) que revogava o aumento do IOF. A aprovação, descrita como uma “derrota histórica” para o governo, pegou ministros de surpresa; a própria ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, teria tomado conhecimento da decisão pela publicação de Motta nas redes sociais na noite de terça-feira (24), naquela que já a semana mais desafiadora desde o início do governo.

Narrativa do governo para judicializar a disputa
A avaliação governamental é categórica e forma a espinha dorsal da ação no STF: ao derrubar o aumento do IOF, o Legislativo não apenas contrariou uma medida presidencial, mas, na visão do governo, infringiu a separação de poderes. Conforme o material analisado, o Executivo entende que houve uma “usurpação de competências” que seriam exclusivas do presidente da República, violando o princípio constitucional da autonomia na alteração de alíquotas do IOF. Essa é a argumentação que a Advocacia-Geral da União (AGU), sob a liderança do ministro que comanda a pasta, Jorge Messias, levará à mais alta corte do país, após uma “longa conversa” e o “martelo batido” pelo presidente Lula, superando resistências iniciais sobre a judicialização do caso.

De um lado a necessidade fiscal, de outro, a confrontação política
A derrubada do aumento do IOF representa um revés fiscal direto para o governo. A receita esperada com a elevação do imposto era parte fundamental da estratégia de ajuste das contas públicas e de financiamento de programas sociais. Diante da perda, o Planalto se vê forçado a buscar alternativas. Uma Medida Provisória (MP) já está em vigor, e aumentou a alíquota do Imposto de Renda sobre Juros sobre Capital Próprio (JCP), elevou a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) para seguradoras e instituições de pagamento, além de ordenar mudanças nas regras de títulos privados incentivados, num explícito movimento de insegurança jurídica aos investidores, tenham o tamanho que tiver.

No entanto, a derrota no IOF e a resistência do Congresso em aprovar outras medidas de ajuste fiscal podem levar ao que auxiliares do presidente chamam de “garroteamento” orçamentário. Isso significa a possibilidade de novos e mais severos contingenciamentos de gastos, que poderiam “asfixiar” projetos e programas sociais, limitando a capacidade do governo de entregar resultados e impactando sua popularidade. Há uma avaliação que o governo corre riscos eleitorais, mas prefere “perder para a oposição do que perder a base social”, reforçando a necessidade de “marcar posição”.

A conta que pode mudar de mãos
Inicialmente, as empresas de apostas financeiras (bets), fintechs e bancos eram os alvos primários do aumento do IOF, na visão do governo. A não elevação imediata das alíquotas os poupa de um custo direto neste momento. Contudo, a MP compensatória sinaliza que outros setores do mercado financeiro e de capitais podem vir a sofrer aumento de carga tributária. Investimentos em títulos privados imobiliários e agropecuários, por exemplo, estão na mira para novas regras tributárias, assim como JCP e CSLL de seguradoras e instituições de pagamento.

Não há detalhes sobre impactos específicos em outras indústrias, mas qualquer contingenciamento orçamentário pode ter efeitos cascata, afetando contratos com fornecedores do setor público, investimentos em infraestrutura e o ritmo de crescimento de diversos setores que dependem, direta ou indiretamente, da atuação estatal.

Tudo indica que a “guerra” vai sobrar para o cidadão comum
Embora o IOF recaia principalmente sobre operações financeiras e não diretamente sobre o consumo diário do cidadão, a “guerra” tem implicações indiretas e é travada também no campo da opinião pública. A narrativa governamental de taxar “bilionários” e “bets” para beneficiar o “povo pobre” é uma mensagem política direta, visando mobilizar a base eleitoral e justificar suas ações fiscais. Se o Congresso é visto como o “inimigo do povo” por barrar essa taxação, a estratégia do Planalto pode ser bem-sucedida.

Por outro lado, a lembrança do rumor sobre a “taxação do Pix”, que fez a popularidade presidencial desabar, demonstra a sensibilidade da população a novas cargas tributárias, mesmo que não se concretizem. Se a arrecadação não for compensada e o governo precisar recorrer a cortes em serviços públicos essenciais, ou se a capacidade de implementar novas políticas sociais for limitada pelo “garroteamento” orçamentário, a população pode sentir o impacto de forma mais direta, mesmo que não seja por um imposto visível.

Incerteza e redefinição de cenários
O embate no STF gera um ambiente de incerteza para o mercado financeiro. Bancos, fintechs, fundos de investimento e investidores observam a disputa de perto, pois a decisão final poderá redefinir o ambiente de negócios e a previsibilidade fiscal. A judicialização de questões tributárias de grande porte sempre adiciona um elemento de risco, impactando a confiança e as decisões de alocação de capital.

Além disso, as medidas compensatórias propostas pelo governo na MP representam uma redefinição de regras tributárias para importantes segmentos do mercado, como já mencionado. Isso pode influenciar decisões de investimento, o custo de capital para empresas e, em última análise, a atratividade do Brasil para investidores domésticos e estrangeiros. A falta de previsibilidade, especialmente em um cenário fiscal já desafiador, é um elemento de preocupação para todos os setores.

Poder Executivo: Lula, Haddad e a AGU na ofensiva
Liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Executivo vê a derrubada do IOF como uma afronta direta à sua prerrogativa constitucional e uma tentativa clara de enfraquecer o governo. Auxiliares do presidente dizem que ele está “muito decepcionado com a postura do presidente da Câmara, Hugo Motta”, que “ajudou a atropelar a medida presidencial”.

Motta contesta peremptoriamente a acusação: “A decisão [de derrubar o Decreto] foi suprapartidária”, escreveu na sua conta do X.

Fogo no Parquinho
A judicialização, embora inicialmente houvesse “resistência por parte do ministro Jorge Messias” da AGU, tornou-se uma posição unânime dentro do governo. Ministros como Fernando Haddad (Fazenda) argumentam veementemente pela inconstitucionalidade da ação do Congresso e pela necessidade de “marcar posição” para defender as pautas do governo, especialmente as de justiça tributária. A avaliação interna, reforçada por Rui Costa (Casa Civil) e Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais), é que o confronto é necessário para sinalizar à base eleitoral que o governo está lutando para taxar os mais ricos e proteger os mais pobres, visando as eleições de 2026. “O governo está consciente dos riscos que corre, inclusive eleitorais, ao confrontar o Congresso na questão fiscal”, mas prioriza “não perder a base social”.

Poder Legislativo: O Congresso e o jogo de Hugo Motta
O Congresso, sob a batuta de Hugo Motta, presidente da Câmara, defende sua prerrogativa de fiscalizar e derrubar atos do Executivo que considere inadequados. Para o governo, a ação de Motta representa uma “quebra de promessa” de previsibilidade na pauta, feita no momento de seu apoio para a presidência da Casa. Interlocutores do Planalto avaliam que a decisão do parlamentar paraibano teve como objetivo travar uma disputa política para garantir uma base dele no Congresso, a exemplo do que ocorria com Arthur Lira (PP-AL), seu antecessor.

Apesar de não haver uma declaração formal do Congresso sobre a motivação da derrubada, a leitura política do governo indica que os parlamentares deram “sinais claros de que decidiram antecipar a disputa eleitoral, buscando enfraquecer o governo”. A resistência à aprovação de medidas de ajuste fiscal propostas pelo governo desde o ano passado, e agora a ação sobre o IOF, é vista como parte de uma estratégia de enfrentamento.

Poder Judiciário: O STF como árbitro feeeddrdrinal
O Supremo Tribunal Federal emerge como o palco final desta disputa de poderes. Ministros como Gilmar Mendes já ponderaram publicamente que, embora a questão do IOF seja “inerentemente política”, há precedentes que permitiriam a análise judicial se o decreto legislativo “exorbite os limites constitucionais”. Essa fala abre as portas para a ação da AGU e sinaliza que o STF não se eximirá de atuar como árbitro no conflito.

O STF já está sob os holofotes em outras frentes de atrito entre os poderes, como a questão das emendas parlamentares impositivas, onde o ministro Flávio Dino tem exigido maior transparência do Congresso. Sua atuação é duramente criticada nos bastidores do Congresso, onde é chamado do “Líder do Governo no STF.”

A judicialização do IOF adiciona mais um ponto de tensão a essa complexa teia de relações, reforçando o papel do Judiciário como um contraponto central às ações do Executivo e do Legislativo.

A opinião pública, a batalha de narrativas, e o teatro de operações de guerra virtual
Fora dos salões de poder, a disputa é intensamente travada nas redes sociais e na imprensa. O governo, através da Secretaria de Comunicação (Secom), comandada por Sidônio Palmeira, busca fixar a narrativa de uma “história de justiça tributária”, com campanhas e hashtags como #congressoinimigodopovo e #haddadtemrazão. A ideia é mostrar que o governo está “trabalhando para taxar o ‘andar de cima’, os ‘bilionários’ e as ‘bets’”, para “levar o povo pobre a um padrão de vida um pouco mais digno”. O presidente Lula, inclusive, já publicou ilustrações e vídeos em suas redes sociais com essa visão.

A oposição, por sua vez, tenta associar as medidas fiscais do governo a uma suposta intenção de “taxar o Pix” ou de aumentar a carga sobre a economia informal, visando erodir a popularidade presidencial, especialmente entre a base mais fiel. Essa batalha narrativa é crucial para moldar a percepção pública sobre quem está “do lado do povo” nesta “Guerra do IOF”.

O que esperar na próxima batalha
A “Guerra do IOF” está longe de um armistício, e seus desdobramentos prometem moldar o cenário político e econômico brasileiro nos próximos meses, e talvez anos.

A entrada da AGU no STF formaliza a judicialização do conflito. O resultado dessa batalha legal será o principal determinante para o futuro do IOF e, mais querosene, para a relação de forças entre Executivo e Legislativo. Uma decisão favorável ao governo reforçaria a prerrogativa presidencial em alterar alíquotas de impostos como o IOF via decreto, conferindo maior agilidade fiscal ao Planalto. Por outro lado, uma decisão a favor do Congresso consolidaria o poder do Legislativo de sustar tais decretos, potencialmente limitando a capacidade de resposta fiscal do governo e forçando uma maior negociação com o Parlamento para cada ajuste tributário. A cúpula da AGU reconhece que, embora existam elementos para a inconstitucionalidade, a ação no STF “inevitavelmente ajudaria a tensionar ainda mais o ambiente entre os Poderes”. O desfecho pode levar tempo, mantendo o ambiente de incerteza.

Relação Executivo-Legislativo sob tensão máxima
Independentemente da decisão judicial, a relação entre o Planalto e o Congresso, já abalada, tende a permanecer tensa. O “martelo batido” de Lula para ir ao STF é visto como um sinal de “enfrentamento” e não de conciliação. Essa confrontação pode dificultar sobremaneira a aprovação de outras pautas do governo no Congresso, especialmente as medidas de ajuste fiscal que os parlamentares têm resistido a aprovar. A pauta das emendas parlamentares impositivas, que já gera atrito com o STF e envolve figuras como Flávio Dino, é outro ponto de pressão que pode ser usado como moeda de troca ou retaliação. O governo, inclusive, avalia que o “garroteamento” orçamentário decorrente dessa guerra pode atrasar a execução das emendas, gerando pressão sobre os próprios parlamentares em suas bases eleitorais.

Nos bastidores da Guerra, o jogo eleitoral em ação
A “Guerra do IOF” é vista por ambos os lados como um movimento decisivo no tabuleiro eleitoral de 2026. O governo busca “definir os campos” e reforçar sua identidade de luta contra privilégios, projetando-se como defensor dos mais pobres. A “leitura política reforçou argumentos de Haddad”, que vê na derrubada do IOF uma inconstitucionalidade e uma oportunidade de reforçar a imagem de um governo que busca a justiça tributária. A oposição, por sua vez, tenta capitalizar sobre qualquer percepção de aumento de impostos ou fragilidade governamental. A popularidade presidencial, já em oscilação após episódios como o rumor do “Pix tax” e o escândalo do INSS, será um termômetro importante para a efetividade dessas estratégias políticas. A capacidade do governo de compensar a perda de receita sem onerar excessivamente outros setores da economia ou o cidadão comum será fundamental para sua credibilidade e apoio popular a médio prazo.

A necessidade de receita do governo persiste. Se a judicialização não reverter a derrubada do IOF, o governo terá de prosseguir com as medidas compensatórias já propostas (a MP sobre JCP, CSLL e títulos privados) ou buscar outras fontes de arrecadação. Isso pode gerar novas fricções com o Congresso e o setor produtivo. A incerteza sobre a arrecadação pode levar a um ambiente de menor previsibilidade fiscal, impactando investimentos e o crescimento econômico a longo prazo. A “Guerra do IOF” é, portanto, um reflexo de um desafio maior: como o Brasil vai fechar suas contas e financiar suas políticas públicas em um ambiente de profunda polarização e instabilidade política.

Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.

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