Chamar político de ladrão no Brasil é crime? Nem o MPF tem certeza

O caso exposto pela revista Veja, nesta sexta-feira, 27, é um termômetro preciso — e inquietante — do momento em que vive a democracia brasileira. Mais do que um episódio isolado, a história do usuário de Itaperuna que comparou o senador petista Humberto Costa a um vampiro da propina escancara os impasses entre liberdade de expressão, judicialização da política e os limites, cada vez mais borrados, entre crítica legítima e crime de honra.

Em março de 2024, um cidadão fluminense publicou no X (antigo Twitter) uma montagem com Humberto Costa, chamando-o de “Drácula” e “ladrão”, evocando a já longínqua, mas ainda politicamente inflamável, Operação Lava Jato. O senador não gostou e acionou a Procuradoria-Geral da República (PGR), que encaminhou o caso à Polícia Federal (PF).

A PF, por sua vez, sugeriu o arquivamento por falta de tipificação penal clara, argumento aceito inicialmente por um procurador.

O entendimento era simples: o comentário, por mais deselegante ou agressivo que fosse, configurava crítica política, e não injúria ou difamação penalmente punível. Mas a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal decidiu o contrário e exigiu a continuidade da investigação, contrariando o primeiro arquivamento e a PF. Mesmo com novo procurador confirmando a improcedência do caso, o colegiado insistiu em manter a apuração em aberto.

A democracia posta à prova

Essa insistência por parte de uma instância do MPF lança uma luz perturbadora sobre a elasticidade da noção de “crime de opinião” no Brasil. O caso serve como alerta sobre o perigo de se permitir que instituições do Estado — inclusive o Ministério Público — possam usar sua estrutura para perseguir, intimidar ou mesmo apenas pressionar críticos, especialmente nas redes sociais, em nome de proteger figuras públicas.

Se um cidadão não pode se expressar politicamente, ainda que com dureza, sobre um senador — ainda mais num país com histórico de escândalos de corrupção envolvendo figuras públicas — então a democracia se torna decorativa. A crítica contundente, o sarcasmo político e até o exagero retórico são partes constitutivas da democracia. Retirá-los do debate público é tentar higienizar artificialmente a política, algo mais condizente com regimes autoritários do que com uma república livre.

A própria contradição do MPF, que arquivou um caso semelhante em Santa Catarina — no qual um vereador chamou Lula de ladrão — e ao mesmo tempo insiste em manter aberta a investigação contra o cidadão do Rio, alimenta a percepção de parcialidade institucional. E isso, por si só, já é suficiente para corroer a confiança da sociedade no sistema de Justiça.

Relativa ou seletiva?

O presidente Lula já declarou em público que a democracia no Brasil é “relativa”. Seus opositores preferem o termo “seletiva”. Seja qual for a definição, o que está em jogo é a solidez das garantias democráticas. Um regime só pode se dizer democrático quando suporta insultos, críticas, memes e indignações sem recorrer a processos penais para silenciar seus cidadãos.

Casos como esse levantam uma cobrança legítima à democracia brasileira: ela está pronta para conviver com a liberdade irrestrita de expressão? Ou se encaminha, mesmo que sob formas aparentemente legais, para uma espécie de “ditadura democrática”, na qual o cidadão é livre apenas para elogiar ou se calar?

Encastelados do STF

O episódio envolvendo Humberto Costa é um microcosmo do mal-estar político-institucional brasileiro. A perseguição judicial de críticas em redes sociais por parte de autoridades públicas não apenas esvazia o princípio democrático, como acentua a desconfiança já crônica que grande parte da população nutre por seus representantes e pelas instituições.

Se há um teste em curso, é este: o Brasil será capaz de garantir que a crítica política continue sendo um direito do cidadão — e não um risco jurídico? A resposta a essa pergunta é urgente, e talvez esteja, paradoxalmente, nas mãos dos mesmos atores que hoje ameaçam esse direito, sobretudo os encastelados do STF. (Do Ver-o-Fato, com informações de Veja)

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