Márcio Macedo – pesquisador e analista de dados
Há uma inquietação recorrente entre estudiosos e cidadãos atentos às dinâmicas da vida na Amazônia: por que, em boa parte da região, há uma percepção de resistência a processos estruturados, métodos sistematizados e rotinas organizacionais — aspectos que, em diversas culturas, são reconhecidos como pilares para a coesão social, o senso de pertencimento e a construção coletiva de um bem-estar comum?
Antes de torcer o nariz e não concordar automaticamente, saiba que não é uma crítica simplista. A proposta é mostrar como a ausência de rotina não é uma falha moral, mas uma construção histórica e cultural que pode ser transformada com mediações respeitosas.Se estiver disposto a deixar a zona de conforto, leia até o final. Do contrário, está tudo certo também.
Então, sigamos.Este texto trata de um convite à reflexão profunda, com base em evidências científicas, sociológicas, históricas e culturais. O que está em jogo aqui é compreender um traço comportamental regional que afeta não só a gestão pública e a vida econômica, mas também os vínculos comunitários e as possibilidades de desenvolvimento com qualidade e equidade.
Raízes históricas e geográficas do comportamento amazônico
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em sua vasta obra sobre os povos indígenas e populações tradicionais, chama atenção para o fato de que as formas de organização na Amazônia sempre foram descentralizadas, baseadas em redes de reciprocidade informais, e com baixa presença do Estado. A floresta, generosa em recursos naturais, somada à dispersão populacional, sempre permitiu uma relativa autonomia. Isso moldou uma cultura de improviso e adaptabilidade, mas também de desconfiança com estruturas formais.
A geógrafa Bertha Becker, ao estudar os desafios do planejamento territorial na região, argumentava que a lógica amazônica nunca foi urbana ou cartesianamente ordenada. É fluida, rizomática, baseada no movimento — o que, por um lado, confere resistência e criatividade, mas, por outro, dificulta a implementação de políticas públicas que demandam previsibilidade, controle e métricas de desempenho.
Pesquisas em psicologia social, como as de Geert Hofstede, apontam que culturas com baixa tolerância à incerteza tendem a valorizar regras, estruturas e protocolos. No entanto, a Amazônia parece operar em sentido inverso: a imprevisibilidade natural (cheias, secas, isolamentos logísticos) desenvolveu nas pessoas um modo de vida adaptativo, com alto grau de informalidade e criatividade individual.
Segundo o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, a ausência de rotinas e métodos estruturados também afeta os circuitos cerebrais relacionados à tomada de decisão de longo prazo. Quando o cotidiano é vivido no improviso, o cérebro prioriza a resolução imediata, em detrimento da construção coletiva planejada.
A política da informalidade e a cultura do “jeitinho”
A informalidade é a espinha dorsal da economia amazônica — e isso tem implicações diretas sobre o comportamento institucional e social. Estudos do IPEA e do IBGE mostram que, em muitas cidades da Amazônia Legal, mais de 50% da força de trabalho está na informalidade. Isso não apenas dificulta o acesso a direitos e proteções, como também fomenta um tipo de mentalidade onde regras formais são vistas como obstáculos, e não como garantias de justiça e ordem.
O “jeitinho”, nesse contexto, vira ferramenta de sobrevivência. Mas quando essa lógica se torna dominante, a cultura do “atalho” pode corroer o senso de coletividade, confiança institucional e até mesmo o desejo de construir algo em comum. E esta falta de percepção, dado que a dinâmica da vida alcança somente até o que é possível fazer no dia seguinte ou, no máximo, uma semana à frente desencadeia consequências perniciosas para o desenvolvimento coletivo local.
O paradoxo: grandes talentos, pouca articulação coletiva
Talvez o mais doloroso seja perceber que a região está repleta de pessoas talentosas, inovadoras, criativas — engenheiros, artistas, cientistas, líderes comunitários, jovens criativos, pessoas comuns que transformam dor e esquecimento em superação diária. No entanto, como afirmam estudiosos como Lélia Gonzalez e Milton Santos, quando não há estruturas coesas, planejamento e valores compartilhados, o talento individual não se converte em transformação coletiva.
Ficamos reféns de ações isoladas e rupturas constantes. São produções acadêmicas realizadas que ficam nos “arquivos” das bibliotecas, compartilhados somente entre os “pares” em congressos e eventos acadêmicos, sem que este conhecimento não transborde para a base, para as pessoas “comuns”, mas que são quem movem a roda da vida diariamente.
Caminhos possíveis: disciplina, método e pertencimento
Não se trata de impor modelos externos, mas de construir, a partir das potencialidades locais, uma nova pedagogia do pertencimento, como sugere o filósofo português: o Sul global precisa de “epistemologias do sul”, capazes de articular saberes tradicionais com ciência moderna. O que exige método, sim, mas também escuta e participação, sendo urgente investir em educação pública com foco em cidadania, cultura organizacional nas instituições, estímulo à cooperação entre grupos e entidades — e uma liderança capaz de inspirar pela constância e pela ética, não pelo carisma episódico.
O problema da resistência amazônica a regras e métodos não é um “defeito cultural”, mas sim um produto histórico, político e estrutural. A colonização violenta, a ausência do Estado, a precariedade crônica e a cultura do improviso são alguns fatores estruturantes desse comportamento. No entanto, diversos autores/pesquisadores amazônicas mostram que é possível mudar esse cenário por meio de educação contextualizada, valorização de saberes locais, planejamento participativo e articulação institucional multissetorial:
Márcio Souza, escritor e ensaísta amazonense, discute a resistência amazônida a modelos organizacionais que vêm da imposição externa e da marginalização histórica da cultura amazônica. Há uma defesa da autonomia regional como forma de identidade; José Aldemir de Oliveira,Geógrafo do Amazonas, analisa como a falta de infraestrutura e o isolamento reforçam o improviso e a descontinuidade nas políticas públicas, criando barreiras estruturais à organização; Ismael dos Santos, Pesquisador paraense, estuda como a descontinuidade política e escolar dificulta a implantação de rotinas pedagógicas e a sistematização de saberes;
Ester Sabino da Silva, Psicóloga acreana, pesquisa como regras são muitas vezes rejeitadas por causa do trauma histórico com autoridades abusivas e ausência do Estado e como isso impacta o comportamento coletivo; Lúcia Helena da Silva Freitas estuda como pequenos empresários confundem liberdade com ausência de método. Falta tradução cultural dos processos de gestão para a realidade local; André Costa,sociólogo e antropólogo maranhense, analisa como a cultura oral e imediatista valoriza o presente, em detrimento do planejamento como resultado de uma longa história de políticas públicas fragmentadas;
Gersem Baniwa, Educador indígena e filósofo amazonense, defende que o que é visto como desorganização pode ser uma lógica indígena distinta e propõe diálogo entre cosmovisões para integrar diferentes formas de organização; Lúcia Goulart, Psicóloga Social (UNIR),trabalha como a precariedade gera uma cultura do improviso, com baixa internalização de rotinas, falta de estabilidade emocional e institucional para hábitos consistentes e os Professores do NAEA/UFPA (Núcleo de Altos Estudos Amazônicos) que apontam a baixa institucionalidade como raiz de muitos problemas de gestão e organização do Estado na Amazônia.
Podemos avançar coletivamente
A Amazônia pode, sim, tornar-se uma região central e respeitada — não apenas pelo seu patrimônio natural, mas por sua capacidade de organização coletiva, pela criação de uma cultura de disciplina sem autoritarismo, mas de regras com sentido, de métodos com participação. E para isso, será preciso enfrentar o conforto do vitimismo e da improvisação como estilos de vida. É hora de dar um passo à frente — com humildade para aprender, coragem para mudar e compromisso com o bem comum.
Aqui segue um spoiler do próximo artigo, se não for cancelado antes.
Entre dois extremos: da vitimização ao excesso de autoconfiança (ou soberba, mesmo!)
Trataremos de um conceito discutido por Bradley Campbell e Jason Manning, sociólogos que exploram a ascensão da chamada “cultura do vitimismo” no ocidente contemporâneo. Discorreremos sobre a cultura do vitimismo, que valoriza o estado de vítima como forma de obter apoio moral e social.
E o que isso tem relação com a Amazônia? ora nos olhamos “o cocô do mosquito do cavalo do bandido”, cheios de lamentações, ora nos erguemos com soberba de “vanguarda”, ignorando nosso estágio de aprendizado contínuo.
Assim, a região amazônica oscila entre dois polos perigosos:
- Vitimismo excessivo – acreditar que somos a “vítima eterna”, o que paralisa ações e incentiva a autoimagem de inferioridade.
- Soberba arrogante – acreditar que estamos acima do resto, sem reconhecer nosso estágio de evolução ou a necessidade de aprendizado sistemático.
Ambos os extremos nos impedem de evoluir como região relevante ambientalmente, anestesiam nossas ações e nos induzem a encararmos a real provocação: A de que precisamos fazer a construção passo a passo de competências locais sólidas, consistentes em nossa capacidade de construir conhecimento, tecnologia e cultura, mas de maneira coletiva, relevante e acima de querelas paroquiais elitistas. Até daqui 15 dias.
*Marcio Macedo, paraense de Itaituba, Comunicador Social (UFPA), Pesquisador, Mestrado em Comunicação Empresarial (PUC/PR); Linguagens (UTP/PR); Estratégias e Pesquisas Político-Eleitorais (ABEP e IBPAD); Doutorado e Pós-doutorado em Desenvolvimento Sustentável (NAEA/UFPA). Analista de Dados na Análise Inteligência. 47 99603 5332 –www.analiseinteligencia.com.br – [email protected] – @analiseinteligencia
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