Tenho uma sobrinha que vive me dizendo que nasci na Idade da Pedra porque ainda imprimo as passagens aéreas e tenho agenda de papel. Mas bastou uma visita minha à sua casa, aqui em Marabá, para encontrar um velho caderno escolar no fundo do armário e ficar nostálgica. Aliás, nem foi tanto pelo caderno, mas pelo que estava dentro dele.
Foi sentar no chão da sala, espalhar as folhas e soltar um “tu nem sabe!”. E começou a contar, com os olhos brilhando de lembrança e rindo sozinha do que chamava de “o primeiro quase-amor da minha vida”.
Na adolescência dela, lá pelos anos 2000, já existia e-mail, mas era coisa de lan house da Folha 28. As redes sociais engatinhavam, e a palavra “crush” ainda não tinha sido naturalizada em Marabá. Era tempo de “gostar de alguém”. Simples assim.
Ela gostava de um garoto que morava na rua de trás. Cabelinho partido, bermuda jeans e um jeito de olhar que desmontava qualquer plano de fingir desinteresse. Um dia, ele mandou uma foto por e-mail. Uma foto só. De si mesmo, sorrindo tímido. Era tudo o que ela precisava pra enfeitar o caderno de História. Imprimiu colorida, com tinta de cartucho da impressora da tia, e colou com cola bastão. Uma relíquia.
Não parou por aí. Um e-mail curto, com um “beijo” tímido no fim, foi impresso e dobrado com cuidado. Guardado entre as páginas como quem esconde um bilhete secreto do tempo.
Nunca se beijaram. Nunca namoraram. Mas ela jurava que aquele sentimento valia mais do que muitos “relacionamentos sérios” que viriam depois. Era o amor platônico em sua forma mais pura, forjado entre calçadas, risadas tímidas e silêncio compartilhado sob o poste da Grota Criminosa.
E tinha o tal caderno de perguntas, uma febre entre as meninas da escola. Cada página, uma pergunta. A mais esperada, claro: “Quem você gosta?”. Ela deu um jeito de fazer o caderno circular e chegar até ele. E não é que o danado respondeu o nome dela? “Primeiro nome só, mas tava lá”, ela dizia, com orgulho. Era o “match” antes do algoritmo, um sim tímido no papel, mas retumbante no coração.
Com o tempo, cada um seguiu seu rumo. Ele sumiu da vizinhança. Disseram que tinha ido estudar fora. Ela cresceu, veio a vida, o vestibular, os boletos e a modernidade. As fotos passaram a ter filtro, e as declarações de amor viraram figurinhas de WhatsApp.
O caderno ficou esquecido num canto do armário. Até aquele dia. E foi ali, cercada de memórias, que ela me contou o resto da história.
Dias depois, por coincidência ou conspiração do destino, os dois se esbarraram em um supermercado da Nova Marabá. Ela com sacolas de pão e iogurte. Ele com barba rala, olhar maduro e o mesmo sorriso torto de antes.
“Ei, tu é a…?”, ele perguntou.
Era.
Conversaram ali mesmo, na frente dos iogurtes. Riram. Falaram da escola, da vizinhança, da velha internet discada. Ele ainda lembrava do e-mail que mandara. Ela ainda tinha a foto. E, pela primeira vez, trocaram um número de telefone que não exigia orelhão nem cartão da Telepará.
Agora, de vez em quando, ela me manda fotos dos dois tomando sorvete na Beira-Rio. “Amigos com histórico”, ela diz. Mas o brilho no olhar entrega que aquele velho caderno de confidências continua escrevendo novas páginas. E, desta vez, sem precisar de impressora.
Recentemente, ela me confidenciou que encontrou dentro de uma caixa de papelão uma nova foto dele — dessa vez impressa por ela mesma, revelada em loja do Shopping Pátio Marabá. Era de um fim de tarde juntos, com o céu rosado e os pés descalços no cimento da Orla. “Tive que guardar no caderno também”, disse, como quem sela um capítulo novo com cola bastão e memória.
O mais curioso é que, mesmo vivendo num mundo onde tudo é efêmero e instantâneo, ela escolheu não postar aquela foto. Disse que era “só deles”, como se guardasse um segredo bonito entre as páginas de um livro antigo. Como se o coração ainda preferisse o silêncio do papel à euforia dos likes.
Ela me perguntou outro dia se eu acreditava em destino. Eu, com meus cabelos brancos e manias jurássicas, só respondi: “Acredito em reencontro”. E ela sorriu.
No fundo, acho que o amor, mesmo atravessando cabos de fibra ótica e nuvens digitais, ainda prefere começar com uma folha de papel e um toque de inocência. E às vezes — só às vezes — ele reaparece na seção de frios do supermercado.
* O autor é jornalista há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
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