Moraes faz interpretação elástica sobre crime de soberania

O ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), enquadrou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no crime de atentado contra a soberania nacional (artigo 359-I do Código Penal). A tipificação consta na decisão que determinou o uso de tornozeleira eletrônica por Bolsonaro, medida cautelar imposta nesta 6ª feira (18.jul.2025).

O artigo 359-I, incluído no Código Penal em 2021, trata de condutas que visam a provocar atos de guerra contra o Brasil ou facilitar a invasão do território nacional. Moraes afirma que Bolsonaro e seu filho, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), cometeram “atos hostis” ao buscarem apoio do governo dos Estados Unidos para interferir em decisões do STF.

Leia abaixo o que diz o artigo:

Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Aumenta-se a pena de metade até o dobro, se declarada guerra em decorrência das condutas previstas no caput deste artigo. § 2º Se o agente participa de operação bélica com o fim de submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.”

Segundo o ministro, pai e filho atuaram para “induzir, instigar e auxiliar governo estrangeiro” a praticar atos que comprometeriam a soberania brasileira, visando a interferir no julgamento da ação penal 2.668, na qual Bolsonaro é um dos réus por tentativa de golpe de Estado.

Especialistas ouvidos pelo Poder360 consideram que houve extrapolação na interpretação do tipo penal, considerando que o artigo 359-I menciona, de forma literal, só situações envolvendo atos de guerra ou invasão do território nacional.

O advogado constitucionalista e articulista deste jornal digital André Marsiglia criticou o entendimento adotado por Moraes. Para ele, o artigo invocado pelo ministro trata de situações extremas, como colaboração com atos de guerra contra o país, o que não se aplicaria ao caso.

“A lei trata esse tipo de ação como algo semelhante a um ato de guerra. Como se fosse um auxílio a um ato preparatório de guerra, quase como se você estivesse ajudando um país estrangeiro a se preparar para atacar o seu próprio país. Seria algo próximo de uma traição. Mas é forçar demais acreditar que foi isso que aconteceu”, disse.

Marsiglia afirmou que relatar a um governo estrangeiro o que seriam ilegalidades no Brasil não configura ato de guerra nem auxílio a esse tipo de ação. Disse que presumir que isso seria uma forma de colaborar com um ataque ao país é “esticar demais o conceito”. Trata-se, segundo o advogado, de uma interpretação excessivamente elástica, e que, por isso, não poderia justificar a prisão de ninguém.

Rodrigo Chemim, doutor em direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná e procurador de Justiça no Estado, também criticou o enquadramento feito por Moraes. Para ele, a conduta descrita não se encaixa no que o artigo estabelece.

“A imputação por atentado à soberania nacional também não resiste à boa técnica. O tipo exige a existência de negociação com governo estrangeiro com o objetivo de que este pratique ‘atos de guerra’ contra o Brasil e não ‘atos hostis’, como a decisão invoca”, declarou.

Segundo ele, atos de guerra não se confundem com medidas diplomáticas desfavoráveis ou mesmo com sanções econômicas anunciadas, “ainda que, no contexto presente, elas possam ser questionadas no plano internacional, à luz do artigo 2.7 da Carta da ONU.

O trecho do texto da ONU (Organização das Nações Unidas) mencionado por Chemim trata da não intervenção da organização em assuntos internos dos Estados que integram o órgão. Eis o que diz: 

“Nada contido na presente Carta autorizará as Nações Unidas a intervir em questões que sejam essencialmente da jurisdição interna de qualquer Estado ou exigirá que os Membros submetam tais questões a uma solução nos termos da presente Carta; mas este princípio não prejudicará a aplicação de medidas de execução nos termos do Capítulo 7.”

Na análise de outros advogados, a interpretação de Moraes pode parecer subjetiva, mas encontra respaldo no que diz o tipo penal.

Segundo o coordenador do grupo de advogados Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, o conceito de “guerra” não se restringe apenas ao uso de armas.

“Pode parecer subjetivo, mas não é. Existem vários tipos de guerra. Hoje, você não lida apenas com armas, há outras formas de conflito. Essa questão de natureza econômica, por exemplo, é um tipo de ataque à soberania do país, com impactos econômicos e financeiros concretos. Ou seja, há respaldo para essa decisão, sim”, disse.

Ele afirmou também que, “por mais que, à 1ª vista, pareça subjetiva –e, de certo modo, é–”, Moraes tem base para tomar essa decisão. “Porque, dentro das linhas, existem alianças. E, nesse tipo de caso, nesse tipo de crime, não dá para ser totalmente taxativo. Há, sim, um grau de subjetividade necessário para enquadrar o fato concreto”, declarou.

Ao Poder360, o advogado criminalista e articulista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, defendeu a tipificação adotada por Moraes com base no artigo 359-I do Código Penal.

“Acho que claramente se aplica. Aquilo ali é uma indicação de onde está sendo feita a investigação. Mas é evidente que ele cometeu um crime contra a soberania. Ele admitiu isso há mais de 1 mês. O Eduardo Bolsonaro, que estava no exterior, articulando apoio de forças do Executivo norte-americano para o Bolsonaro, junto ao Congresso americano, contra o Poder Judiciário brasileiro”, disse.

ENTENDA

A decisão de Moraes contra Bolsonaro faz parte da investigação que apura a atuação de Eduardo nos Estados Unidos. Segundo a Polícia Federal, o deputado tentou pressionar autoridades brasileiras e buscou apoio externo para impor sanções contra ministros do STF, integrantes da Procuradoria Geral da República e da própria corporação.

O ministro ainda afirma que Bolsonaro usou as redes sociais para apoiar manifestações estrangeiras contrárias ao STF e condicionou publicamente o fim das sanções à concessão de uma anistia penal em seu favor.

“As ações de Jair Messias Bolsonaro demonstram que o réu está atuando dolosa e conscientemente de forma ilícita […] com a finalidade de tentar submeter o funcionamento do Supremo Tribunal Federal ao crivo de outro Estado estrangeiro, por meio de atos hostis derivados de negociações espúrias e criminosas”, escreveu Moraes.

Diante disso, o ministro entendeu que há um risco concreto de obstrução da Justiça, continuidade da prática criminosa e possibilidade de fuga.

“A situação descrita revela necessidade urgente e indeclinável, apta para justificar a imposição de novas medidas cautelares que possam assegurar a aplicação da lei penal e evitar a fuga do réu”, afirmou.