Ligações falsas de supostos bancos, vendas de produtos que não existem, clonagem de cartões de crédito, dentre outros crimes. Em 2024, os criminosos aplicaram pelo menos quatro golpes por minuto contra brasileiros, muitos, a partir de presídios; Redes Sociais não são responsabilizadas
Brasília – Com o crescimento exponencial do comércio eletrônico no Brasil, especialmente após a Pandemia de Covid-19, quadrilhas, algumas com atuação de dentro de presídios, aplicaram em 2024, 2.166.552 casos de estelionato digital no país, um crescimento de 7,8% em relação a 2023, e de 408% quando comparado com os dados de 2018, contabilizou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (24), transformando o Brasil numa “Terra Sem Lei” no ambiente da internet.
Muitas pessoas acham que nunca irão cair em um crime digital, mas acabam sendo vítimas quando menos esperam. Isso não significa que a pessoa seja tola, e sim que os golpistas estão ficando mais espertos.
Anúncios falsos, largamente impulsionados pelos criminosos e que engordam as receitas de gigantes de tecnologia que controlam as Redes Sociais, tais como: Instagram, Facebook e mensageiro WhatsApp, empresas controladas pela Meta, dentre outras; somadas à ligações falsas de supostos bancos, vendas de produtos que não existem, clonagem de cartões de crédito, oferta de empregos fictícios, e até o roubo descarado de aposentados e pensionistas do INSS, fizeram a festa dos fora da lei que apuraram milhões com os crimes.
As big techs não se responsabilizam pelos anúncios que elas mesmo publicam e recebem para isso; os golpistas do INSS desfilam com carrões em postagens em redes sociais; bandidos presos em presídios não tem do que se queixar com a renda milionária, e por vai. O governo perdeu o controle da situação.
A situação é idêntica a uma epidemia sem remédio para contê-la. Os dados da 19ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública são aterradores. O levantamento, realizado pelos pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra que o crime de estelionato ganhou força no Brasil, enquanto crimes mais violentos estão em queda.
Os dados revelam, por exemplo, que o índice de Mortes Violentas Intencionais (MVI), indicador do Anuário que mapeia crimes como homicídio doloso, latrocínios (roubo seguido de morte) e mortes decorrentes de intervenção policial, caiu 5,4% em 2024 em comparação com 2023. Não por ação proativa do Estado, a explicação é óbvia: golpes na internet são enquadrados pela legislação brasileira com o status de baixo poder ofensivo.
Também tiveram redução os crimes patrimoniais, como roubos de veículos — 10,4% menor que em 2023; roubo a residências – 19,2% abaixo do período anterior; e roubo a estabelecimentos comerciais — com queda de 24,4%.
O aumento dos estelionatos, na contramão da queda dos crimes mais violentos, aponta, segundo análise dos pesquisadores do Fórum, uma mudança nas dinâmicas de atuação dos criminosos no país.
“Há uma epidemia de golpes e estelionatos, que, ao que tudo indica, está sob a influência do crime organizado e ainda sem controle por parte das autoridades”, afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os pesquisadores chamam atenção também para o crescimento de estelionatos feitos por meio eletrônico: 17% a mais que em 2023. Os números, no entanto, podem ser bem maiores, já que estados como São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro não separam as estatísticas de estelionatos eletrônicos dos demais casos.
Outros dados do anuário
O principal destaque do Anuário é, sem dúvida, a redução das Mortes Violentas Intencionais (MVI). Em 2024, o país registrou 44.127 MVI, uma taxa de 20,8 por 100 mil habitantes, representando uma queda de 5,4% em relação ao ano anterior e a menor taxa desde 2012. Essa tendência de queda, iniciada em 2018, é atribuída a uma combinação de fatores, incluindo políticas públicas de segurança, mudanças demográficas e, em parte, dinâmicas entre organizações criminosas.
No entanto, por trás dessa média nacional, residem profundas desigualdades regionais. Enquanto as regiões Sul e Sudeste consolidam as menores taxas de MVI (14,6 e 13,3 por 100 mil, respectivamente), o Norte e, sobretudo, o Nordeste permanecem como as regiões mais violentas, com taxas de 27,7 e 33,8 por 100 mil habitantes. Estados como Amapá (45,1), Bahia (40,6) e Ceará (37,5) figuram entre os mais violentos, reforçando a concentração da violência. Contraditoriamente, Maranhão (+12,1%), Ceará (+10,9%), São Paulo (+7,5%) e Minas Gerais (+5%) registraram aumento na taxa de MVI em 2024, o que acende um alerta sobre a necessidade de análise local.
Um dos pontos mais críticos do Anuário é o aumento da letalidade policial. A participação de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIP) no total das MVI teve uma leve alta nacional, de 13,8% em 2023 para 14,1% em 2024. O que realmente preocupa, no entanto, são os “padrões de uso letal da força” pelas polícias, com estados como Amapá, Bahia, Pará, Goiás, Sergipe e São Paulo apresentando proporções de MDIP superiores a 20% das MVI. O caso de São Paulo é particularmente notável, com um aumento de 61% na taxa de vítimas de intervenções policiais entre 2023 e 2024.
O documento também ressalta a escalada dos desaparecimentos, que cresceram 4,9% em 2024, totalizando 81.873 registros. Esse fenômeno, especialmente nas regiões mais violentas do país, levanta a preocupação de que a redução de MVI possa, em parte, estar “invisibilizando execuções e desaparecimentos forçados”, uma prática que, historicamente, busca ocultar crimes mais graves.
No campo dos crimes contra o patrimônio, o Anuário aponta uma transformação radical. Embora roubos em geral tenham caído, os estelionatos continuam em ascensão, registrando 2.166.552 casos em 2024, um crescimento de 7,8% em relação ao ano anterior. Essa inversão da lógica criminal, com a migração para o ambiente digital, é um dos grandes desafios da segurança pública moderna. A alta incidência de roubos e furtos de celulares (850.804 aparelhos em 2024) reflete a centralidade desses dispositivos na vida das pessoas e a preocupação com a impunidade, dada a baixa taxa de recuperação dos aparelhos (um para cada 12 subtraídos).
Feminicídios disparam
A violência de gênero segue em patamares alarmantes. Em 2024, o Brasil registrou 1.492 feminicídios, o maior número desde a criação da lei em 2015, e um aumento de 0,7% na taxa em relação ao ano anterior. As tentativas de feminicídio também cresceram expressivamente (19%). A maioria das vítimas de feminicídio é mulher, negra (63,6%), jovem (18 a 44 anos), morta dentro de casa (64,3%) por companheiros ou ex-companheiros (79,8%), e com uso de arma branca (48,4%). Outros crimes como lesão corporal dolosa no contexto de violência doméstica (257.659 casos), ameaça (747.683 casos), perseguição (95.026 casos) e violência psicológica (51.866 casos) também mantêm números elevados ou em crescimento.
A violência contra crianças e adolescentes mostra uma tendência preocupante. Enquanto o país celebra a redução geral das MVI, as mortes de adolescentes de 12 a 17 anos cresceram 4,2% em 2024, impulsionadas pela letalidade policial (19,2% das MVI nessa faixa etária). Crimes não-letais como maus-tratos, abandono de incapaz e produção de material de abuso sexual infantil também avançam. O Anuário destaca a importância de preenchimento correto dos microdados, revelando que 61,3% dos estupros de vulnerável são contra crianças de 0 a 13 anos.
Recomendações de especialistas e autoridades
O Anuário, através das vozes de especialistas e da análise dos dados, aponta para diversas recomendações:
Controle e transparência da ação policial: É urgente que os estados com alta letalidade policial adotem medidas rigorosas de controle, fiscalização e responsabilização. A experiência de Minas Gerais, que historicamente tem polícias com menores índices de letalidade, pode servir de modelo, enquanto o Rio de Janeiro, que reduziu sua letalidade policial em 9,5% após medidas cautelares no âmbito da ADPF 635, mostra o potencial de intervenções externas.
Aperfeiçoamento da gestão de dados: Há uma necessidade crítica de padronização e aprimoramento dos sistemas de registro de dados criminais em todas as esferas federativas. A ausência de padronização impede análises comparativas precisas e dificulta a formulação de políticas baseadas em evidências. A Senad (Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas e Gestão de Ativos), com a reconstrução do Obid (Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid)), a institucionalização do SAR (Sistema de Alerta Rápido sobre drogas do Brasil) e o desenvolvimento do PNIDD (Programa Nacional de Integração de Dados Periciais sobre Drogas), busca avançar na governança de dados sobre drogas, o que deve ser replicado para outras áreas da segurança.
Políticas focalizadas e intersetoriais: As desigualdades regionais e o perfil das vítimas (jovens, negros, mulheres) exigem políticas mais focalizadas, que considerem as especificidades de cada território e grupo. Ações de prevenção, proteção e enfrentamento à violência devem ser intersetoriais, envolvendo segurança, saúde, educação e assistência social.
Combate a crimes digitais: A migração do crime para o ambiente virtual demanda o fortalecimento das capacidades investigativas e repressivas das polícias, com investimentos em tecnologia e capacitação especializada para lidar com estelionatos e fraudes digitais.
Enfrentamento à violência de gênero e contra crianças e adolescentes: Apesar dos avanços legislativos, é crucial investir em políticas de prevenção primária, conscientização e ampliação do acesso a redes de proteção. A efetiva aplicação da Lei Maria da Penha, a proteção das Medidas Protetivas de Urgência (MPU) — cujos descumprimentos são alarmantes — e a elucidação dos feminicídios são imperativos. Para crianças e adolescentes, o Anuário destaca a importância de reconhecer e denunciar todas as formas de violência, inclusive as mais sutis, e de aprimorar os registros.
Reforma do sistema prisional: O Plano Pena Justa, com seus objetivos de controle da superlotação, melhoria da qualidade das vagas, redução de entradas indevidas e aumento das saídas, é uma iniciativa vital. A atenção à justiça racial na composição da população prisional e a ampliação das atividades de laborterapia são cruciais para a ressocialização.
Integração federativa e cooperação internacional: A complexidade do tráfico de drogas na Amazônia, por exemplo, exige maior articulação entre as polícias estaduais e federais, bem como cooperação internacional com países vizinhos. A criação do Centro de Cooperação Policial Internacional da Amazônia (CCPI Amazônia) é um passo importante nessa direção.
Em suma, o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública desenha um cenário desafiador, mas também aponta caminhos para um futuro mais seguro. A efetividade das políticas dependerá da capacidade dos governos de todas as esferas de traduzir os dados em ações concretas, priorizando a proteção dos cidadãos e a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.
Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.
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