O Palacete Camelier, hoje, e a angústia do herói do Paysandu

Só quem não conhece os moradores da Cidade Velha poderia se surpreender com a angústia com que Roberto Estevam Lobato se dirigiu, 12 anos atrás, ao Grupo de Memória da Engenharia, da UFPa.

Roberto Estevam queria fazer uma cobrança pública das autoridades responsáveis pela preservação das casas antigas de seu bairro, através da coluna publicada por um jornal de Belém, na qual o Grupo de Memória divulgava os resultados de suas pesquisas.

Especificamente, Roberto Estevam exigia providência em relação ao abandono escandaloso de um antigo imóvel no Largo do Arsenal.

Ele questionava aquelas autoridades, indignado, revelando conhecimento do nome original do imóvel: 

“Por que cuidaram do Palacete Pinho e abandonaram o Palacete Camelier?”

Roberto era conhecido não somente em seu bairro.

Também pelos torcedores do Paysandu.

Afinal, ele fez as cores do time brilharem em sua camisa de atleta, a ponto de merecer o apelido de Pelé, embora praticasse modalidade esportiva diferente da do Rei do Futebol.

Roberto morreu, no final de 2023.

Na ocasião, os jornais de Belém revelaram por que ele era o Pelé das quadras de basquete do Pará.

Um ídolo – “um verdadeiro herói’ -, enquanto defendeu as cores do Papão, nas décadas de 60 e 70.

Porque era capaz, por exemplo, de, numa única partida, como a amistosa entre o Papão e a seleção de Roraima, realizada em 1971, marcar 125 pontos.

Num recorde imortalizado em placa comemorativa outorgada pela Federação Paraense de Basquete.

A rua de Pelé é a sexta construída em Belém.

Antiga Rua da Alfama, depois foi chamada de Rua Santarém, e, mais tarde, se tornou a Rua Rodrigues dos Santos.

No início da rua está a Igreja de São João Batista, “joia da arquitetura”, como a definiu Germain Bazin, curador do Museu de Louvre, reconstruída por Landi, nos anos de 1700.

Nela, no século anterior, tinha sido aprisionado, pelos colonos portugueses, o padre Antônio Vieira, a mais fulgurante personalidade do reino de Portugal, naquele período.

Bem próxima da residência de Pelé, na direção oposta à da igreja, na esquina da Rua Gurupá, está, há cerca de um século, no alto da parede de uma casa, a obra ornamental – uma sereia – que deu nome a uma das mais antigas mercearias da cidade.

Pelé, morreu com 79 anos de idade.

Mas, desde criança comprou picolés na Mercearia Sereia.

Alguns ainda fabricados artesanalmente.

A Sereia, de barro e sem braços, se tornou personagem do bairro.

Só quem não conhece a Cidade Velha pode se surpreender com a ligação profunda que seus moradores têm com ela, postada no alto daquela esquina.

Uma ligação que os leva a vesti-la com as roupas usadas em cada festividade do nosso calendário cultural-esportivo.

No período do Carnaval, há sempre o dia em que a Sereia aparece com os trajes de foliã.

No Natal, suas roupas são as de Papai Noel.

E, no período das Copas do Mundo, se a Seleção Brasileira estiver disputando uma partida importante, é certo que a Sereia vestirá o uniforme de seus jogadores.

Nascer na Cidade Velha é um destino, sabiam Pelé e os vizinhos dele.

As famílias deles se instalaram ali havia muito tempo.

Nos Anos Dourados de 1950, quando crianças, eles ocupavam a rua, em todo final de tarde, com suas diversões prediletas.

As meninas recitavam e cantavam inúmeras parlendas muito antigas (“Bã-ba-la-lão, senhor capitão, na terra dos mouros morreu seu irmão, cozido e assado…”; “Um dois, feijão com arroz. Três, quatro, feijão no prato…”).

Os meninos trocavam petecas, carteiras vazias de cigarro, figurinhas, tampinhas de refrigerantes.

Um dos garotos que transitavam pela rua gostava de conversar com o sapateiro Dagoberto, morador da primeira quadra, cuja irreverência impressiona ainda hoje.

Naquela época de predomínio absoluto do Catolicismo, a molecada do bairro estudava catecismo na Igreja de São João, com a austera “doutora Betina”.

(“Quem é Deus? Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra. Por que Deus é eterno? Deus é eterno porque não teve princípio, nem terá fim”).

Betina Ferro Costa era, na verdade, a médica pioneira da Cardiologia no Pará, que teve seu nome, mais tarde, dado ao Hospital Universitário da UFPA.

Mas Dagoberto chamava, com irreverência, os alunos dela de “lambaios” de padre, como se fosse um anarquista deslocado naquele espaço urbano.

Pois, a expressão designava o pano empregado na limpeza de fornos de pão, e, significava, por extensão, servilismo.

O nome daquele menino que gostava de conversar com o sapateiro provocador: Vicente Salles.

A ele, Dagoberto deu os livros sobre Marxismo que iniciariam seus longos estudos.

Com eles, Vicente iria se transformar num grande pesquisador da cultura amazônica.

Outro menino nascido naquela rua em cuja esquina está a Sereia, a Gurupá, também cruzava a rua de Pelé.

Dirigia-se, porém, ao Ver-o-Peso.

E, na sua caminhada, ouvia o burburinho de vendedores de rua.

Com estes sons, ele alimentaria depois a criação de uma das mais belas músicas já surgidas na Amazônia: o “Adágio do Ver-o-Peso”.

Seu nome: Tynnôko Costa

Assim, num bairro impregnado de História, de Arquitetura Erudita, de Música, de Filosofia,  a preocupação de Pelé com aquele imóvel abandonado não causava espanto entre seus vizinhos.

Espantosa, de fato, era a memória de Pelé.

Capaz de fazer revelações sobre aqueles escombros, abandonados, a céu aberto, havia décadas, para constrangimento dos moradores da Cidade Velha.

Como se fosse um grande monumento em lembrança da irresponsabilidade dos nossos gestores públicos.

Quem mais, além de Pelé, poderia revelar que o imóvel se chamara Palacete Camelier?

Quem mais sabia que nele funcionou um estaleiro?

Pois, Pelé sabia mais.

Quando menino, ele chegara a frequentar o palacete.

E, via nele barcos que precisavam de conserto.

Isto porque seus pais ocuparam um terreno próximo dali, cedido pela família de Antônio Pinho, proprietária do Palacete Pinho.

“Guardo até hoje a escritura da cessão daquele terreno”, dizia Pelé.

Dois anos já se passaram desde a morte de Pelé.

Mais de uma década transcorreu desde a manifestação pública dele de inquietação com o que sobrou do Palacete Camelier.

E, uma única providência foi tomada.

Foram erguidos tapumes em torno dos escombros.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

Translation (tradução)

The Camelier Mansion today, and the anguish of Paysandu’s hero

Only those unfamiliar with the residents of the Cidade Velha neighborhood could be surprised by the anguish with which Roberto Estevam Lobato reached out, twelve years ago, to the UFPA’s Engineering Memory Group.

Roberto Estevam wanted to publicly demand accountability from the authorities responsible for preserving the old houses in his neighborhood, through a newspaper column in Belém where the Memory Group published the results of its research.

Specifically, Roberto Estevam called for action regarding the scandalous abandonment of an old property at Largo do Arsenal.

He questioned those authorities with indignation, showing knowledge of the original name of the building:

“Why did they care for the Palacete Pinho and abandon the Palacete Camelier?”

Roberto was well known not only in his neighborhood, but also among the fans of Paysandu.

After all, he made the team’s colors shine on his athlete’s jersey to such an extent that he earned the nickname “Pelé,” even though he played a sport different from that of the King of Football.

Roberto passed away at the end of 2023.

At the time, the newspapers in Belém revealed why he had earned the nickname “Pelé” on the basketball courts of Pará.

He was an idol—“a true hero”—while he played for Papão during the 1960s and 70s.

He was capable, for example, of scoring 125 points in a single match, such as the friendly game between Papão and the Roraima state team, held in 1971.

This record was immortalized on a commemorative plaque awarded by the Pará Basketball Federation.

Pelé’s street is the sixth street built in Belém.

Formerly Rua da Alfama, then renamed Rua Santarém, it eventually became Rua Rodrigues dos Santos.

At the beginning of the street stands the Church of São João Batista—a “jewel of architecture,” as defined by Germain Bazin, curator of the Louvre Museum—rebuilt by Landi in the 1700s.

It was there, in the previous century, that the Jesuit priest Antônio Vieira—Portugal’s most brilliant figure of that era—was imprisoned by colonial settlers.

Not far from Pelé’s home, on the opposite end from the church, at the corner of Rua Gurupá, there has been, for about a century, a decorative piece—a mermaid—mounted high on the wall of a house. It gave its name to one of the city’s oldest corner stores.

Pelé died at the age of 79.

But since childhood, he bought popsicles at Mercearia Sereia, some of which were still handmade.

The mermaid, made of clay and armless, became a neighborhood character.
Only those who don’t know Cidade Velha would be surprised by the deep connection its residents have with that figure perched on the corner.

A connection so strong that they dress the mermaid for every cultural and sports event on the calendar.

During Carnival, there is always a day when the mermaid appears in a reveler’s costume.
At Christmas, she wears Santa Claus attire.

And during World Cup season, if the Brazilian National Team is playing an important match, the mermaid can be seen dressed in the team’s uniform.

Being born in Cidade Velha is a destiny—something Pelé and his neighbors knew well.
Their families had lived there for generations.

In the Golden Years of the 1950s, when they were children, they filled the street every late afternoon with their favorite games.

The girls recited and sang countless old nursery rhymes:
(“Bã-ba-la-lão, senhor capitão, na terra dos mouros morreu seu irmão, cozido e assado…”
One, two, beans and rice. Three, four, beans on the plate…”)

The boys traded shuttlecocks, empty cigarette packs, collectible stickers, bottle caps.
One boy who often walked down the street liked to talk to Dagoberto, a cobbler living on the first block, whose irreverence still impresses people today.

At a time when Catholicism held absolute sway, the neighborhood children studied catechism at the Church of São João under the stern “Doctor Betina.”

(“Who is God? God is a most perfect spirit, Creator of Heaven and Earth. Why is God eternal? God is eternal because He has no beginning and will have no end.”)

In fact, Betina Ferro Costa was the pioneering cardiologist of Pará, whose name was later given to UFPA’s University Hospital.

But Dagoberto irreverently called her students “lambaios de padre” (literally, “priest’s rag boys”), as if he were an anarchist out of place in that urban space.
The term referred to the cloth used for cleaning bread ovens and, by extension, implied servility.

The name of the boy who enjoyed talking to the provocative cobbler was Vicente Salles.
Dagoberto gave him books on Marxism that would spark his long journey of study.
With them, Vicente would become a major scholar of Amazonian culture.

Another boy born on that same street—on the corner with the Sereia, at Rua Gurupá—also crossed Pelé’s street.

But his destination was the Ver-o-Peso market.

Along the way, he heard the hum of street vendors.

Those sounds would later inspire one of the most beautiful musical compositions ever created in the Amazon: the Adágio do Ver-o-Peso.

His name was Tynnôko Costa.

In a neighborhood steeped in history, scholarly architecture, music, and philosophy, Pelé’s concern about that abandoned building came as no surprise to his neighbors.

What was truly surprising was Pelé’s memory.

He could recount details about those ruins – left exposed to the elements for decades -embarrassing the residents of Cidade Velha.

As if the remains stood as a great monument to the irresponsibility of our public officials.

Who, besides Pelé, could have revealed that the building was once called Palacete Camelier?

Who else knew it once housed a shipyard?

Well, Pelé knew even more.

As a child, he had been inside the mansion.

He remembered seeing boats there that needed repairs.

That’s because his parents occupied a nearby plot of land, donated by the family of Antônio Pinho, owner of the Palacete Pinho.

“I still keep the deed of that land transfer, Pelé would say.

Two years have now passed since Pelé’s death.
More than a decade has gone by since his public outcry over the fate of Palacete Camelier.

And only one measure has been taken:

Plywood fences have been erected around the ruins.

  • Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: The Camelier Mansion, today)

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