Quase quatro anos após ter sido baleada durante uma ação policial em que era mantida refém por um criminoso, a técnica de enfermagem Tatiane Barbosa Alves ainda enfrenta as consequências físicas e psicológicas do episódio. O caso, registrado no inquérito policial nº 0812192-57.2022.8.14.0401 e cujas 166 páginas o Ver-o-Fato teve acesso com exclusividade, tramitou na 11ª Vara Criminal de Belém, mas até hoje, segundo a vítima, nenhum policial militar foi responsabilizado pelos disparos que a atingiram. O caso foi arquivado.
Tatiane foi vítima de dois tiros quando era feita refém por um homem armado, na frente de uma loja, em novembro de 2021, na avenida Augusto Montenegro. Durante a tentativa de resgate, policiais militares atiraram na direção do bandido. Tatiane foi atingida gravemente. Uma das balas atingiu o quadril, enquanto a outra, o braço.
“Era pra ser só mais um dia comum. Eu havia retornado a Belém do Pará, cidade onde morei por seis anos durante as missões. Estava tentando recomeçar a vida após um período conturbado na minha família. Fui vítima de um sequestro, junto com minha amiga. Os disparos foram feitos pela própria polícia em minha direção, mesmo com o bandido apontando uma arma para minha cabeça. Fiquei mais de uma hora nas mãos dos criminosos, em meio a uma troca de tiros intensa. Quando finalmente fui liberada, não houve ambulância disponível, e no hospital fui colocada ao lado de um dos criminosos, também baleado. E fui liberada sem o devido atendimento ou encaminhamento”, desabafa Tatiane.
Ela relata não ter recebido qualquer suporte das autoridades. “Sinto que minha história foi silenciada, e por isso gostaria de pedir ajuda para que minha voz seja ouvida e que justiça seja feita”, acrescentou.
Tatiane procurou o Ver-o-Fato para contar sua história, afirmando que o noticiário da imprensa na época sequer citou seu nome e o drama por ela vivido. “Fui ignorada e a polícia contribuiu para que meu nome fosse apagado dos fatos. Ninguém se importou com que eu sofri e ainda estou sofrendo. E se eu tivesse morrido? Isso não pode ficar impune, só eu e minha família sabem o que estou sofrendo”.
Um laudo técnico emitido pelo Instituto de Perícias Científicas do Estado apontou não ser possível determinar o calibre dos projéteis extraídos do corpo da vítima, tampouco identificar de que arma partiram os tiros — lacuna técnica que acabou comprometendo a responsabilização dos envolvidos.
Processo contra o Estado
Apesar disso, Tatiane afirma que os agentes públicos estavam fortemente armados e tinham o dever de garantir sua integridade física, o que não ocorreu. Ela ainda sofre com sequelas físicas e passa por tratamento psicológico contínuo, lidando com crises de ansiedade, medo e insônia. O episódio deixou marcas profundas em sua vida pessoal e profissional.
Diante da omissão do Estado e da falta de responsabilização até agora, a vítima estuda processar o Estado do Pará por danos físicos, morais e psicológicos. A tese jurídica está sustentada na falha do dever estatal de proteger a vida e a integridade da refém, somada à conduta imprudente dos policiais, que não adotaram protocolos adequados para casos com presença de reféns.
O Ministério Público do Estado do Pará, que atuou como fiscal da lei durante o inquérito, não ofereceu denúncia contra os militares, e o caso acabou arquivado sob o argumento de impossibilidade de identificar com precisão a autoria dos disparos. Para Tatiane, a falta de punição reforça a sensação de impunidade: “Fui atingida pelas balas quando estava indefesa. Minha vida virou do avesso, e ninguém pagou por isso”, declarou.
O caso evidencia a urgência de revisar os protocolos de abordagem em situações com reféns e de garantir transparência e responsabilização nos casos em que ações do Estado resultam em ferimentos a inocentes.
Principais trechos do inquérito policial ( a íntegra está no final desta matéria)
Segundo consta no Boletim de Ocorrência e no depoimento da própria vítima, Tatiane Barbosa Alves declarou: “por volta das 13h00 do dia 20/11/2021, na Rodovia Augusto Montenegro, três homens armados desceram correndo de um veículo, perseguidos por uma viatura da Polícia Militar. Um deles me tomou como refém, apontando uma arma para minha cabeça. Houve troca de tiros com os policiais, ocasião em que fui atingida por dois disparos: um no braço esquerdo e outro no quadril.”
Ainda no depoimento, ela expressa convicção de que os tiros foram disparados por policiais militares: “Durante o confronto, senti as perfurações e caí no chão. Estava entre o bandido e os policiais. Acredito que os disparos vieram da polícia.”
Laudo pericial
“Conforme o Laudo nº 2022.01.000244-BAL, confeccionado pelo Instituto de Criminalística ‘Iran Bezerra’, não foi possível definir o calibre do projétil extraído da vítima, devido a deformações acidentais em toda sua extensão. Com isso, ficou impossibilitada a identificação da arma de origem do disparo.”
Parecer do promotor Eduardo Falesi do Nascimento
“Verificou-se que o disparo que atingiu a vítima teria sido efetuado por um dos policiais militares presentes na operação. Como se tratam de agentes de segurança pública no exercício da função, enquadra-se em excludente de ilicitude, conforme art. 23, III, do CP. Não há elementos probatórios para indiciamento. Proponho o arquivamento.”
Decisão da juíza Alda Gessiane Tuma
“Este Juízo não concorda com as razões do arquivamento, por entender que o fato deve ser melhor apurado. Determino a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, conforme o artigo 28 do CPP.”
Parecer do procurador-geral de Justiça, Cézar Mattar Jr
“Ratifico o pedido de arquivamento. Os policiais agiram no estrito cumprimento do dever legal. O exame de balística não foi conclusivo quanto ao calibre ou origem dos projéteis. A própria vítima indicou que os tiros vieram da polícia, mas a ausência de elementos técnicos impede a individualização da conduta. Inexistem condições para oferecimento da ação penal.”
Pelo que o Ver-o-Fato observa no inquérito policial, tanto o delegado responsável pelo caso, como a promotoria e o procurador-geral de justiça basearam-se no laudo pericial para propor o arquivamento. Um segundo laudo, para tirar qualquer dúvida, poderia ter sido requerido, inclusive junto ao setor competente da Polícia Federal em Belém, mas isso não foi feito.
Vale observar que a própria juíza Alda Gessyane discordou da manifestação do MP, mas diante do que diz a lei teve de acatar o arquivamento.
LEIA AQUI A ÍNTEGRA DO INQUÉRITO POLICIAL
Imagens e fotos

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