Sanções dos EUA a Moraes e recusa de ministros em assinar carta de apoio expõem profunda desunião, desafiando a coesão do Judiciário brasileiro em um momento crítico
Brasília – A retomada dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta sexta-feira, 1º de agosto, marcou o início de um semestre turbulento para o Judiciário brasileiro, expondo um tribunal dividido e sob intensa pressão externa e interna. A recente aplicação da Lei Magnitsky pelo governo dos Estados Unidos contra o ministro Alexandre de Moraes atuou como um catalisador, revelando fraturas há muito tempo latentes e desafiando a percepção de unidade na mais alta corte do país.
Na primeira sessão plenária após o recesso judiciário, o clima de tensão foi palpável. Observadores atentos notaram uma postura inédita de três ministros – Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – que discursaram de forma contundente, com declarações que se assemelhavam a pronunciamentos políticos e até antecipavam opiniões em processos em curso, colidindo frontalmente com o que está preconizado na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN).
A sessão se transmutou em “palanque político”. O contraste foi evidente, com oito dos 11 ministros preferindo o silêncio, demonstrando visível constrangimento diante do que se desenrolava.
O estopim para a crise mais recente foi a sanção imposta pelos Estados Unidos a Alexandre de Moraes, sob a égide da Lei Magnitsky. Essa legislação veta qualquer atividade com instituições bancárias ou econômicas norte-americanas para indivíduos sancionados por violações de direitos humanos ou corrupção. A resposta do ministro foi marcada por uma veemência notável. Em suas palavras, ele deixou claro que o rito processual do STF ignoraria as sanções.
“O rito processual do STF irá ignorar as sanções praticadas. Esse relator vai ignorar as sanções que foram aplicadas e continuar trabalhando como vem fazendo tanto no Plenário quanto na Primeira Turma, sempre de forma colegiada, diferentemente das mentiras, inverdades e desinformação das redes sociais”, declarou Moraes.
Essa declaração, além de reafirmar sua determinação pessoal, sublinhou a posição do STF de não se submeter a pressões externas que muitos na corte consideram uma afronta direta à soberania nacional e à autonomia do Judiciário.
O jantar da desunião: um racha de 6 a 5 e a frustração da unidade
Antes mesmo da acalorada sessão de 1º de agosto, a corte já havia demonstrado suas profundas divisões internas. O ministro Alexandre de Moraes, ao saber das sanções, pressionou seus colegas para que assinassem uma carta em sua defesa. No entanto, o consenso não foi alcançado; mais da metade dos 11 ministros do STF considerou impróprio fazer um documento assinado por todos para contestar uma decisão interna dos Estados Unidos. Essa recusa, que frustrou a expectativa de unanimidade de Moraes, levou à emissão de uma nota institucional de tom ameno, assinada apenas pelo presidente Roberto Barroso, sem qualquer menção direta aos EUA.
A tentativa mais emblemática de coesão, porém, foi o jantar oferecido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio da Alvorada, na noite de 31 de julho. O evento foi planejado para demonstrar unidade, replicando o gesto de solidariedade visto após os eventos de 8 de janeiro de 2023, quando as cúpulas dos Três Poderes se uniram. Apesar do empenho de Barroso, comissionado por Lula para convidar todos os magistrados, o resultado foi decepcionante: apenas seis dos 11 ministros compareceram. Os presentes foram Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Edson Fachin, que teria ido a contragosto, Flávio Dino, Gilmar Mendes e Roberto Barroso. Os ausentes foram André Mendonça, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Nunes Marques – sendo os dois últimos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o que adiciona uma camada política à ausência.
O comparecimento de apenas 6 dos 11 ministros evidenciou de forma incontestável um “racha” interno no STF, com uma clara divisão de 6 a 5, pelo menos nesse tema. Um detalhe que chamou a atenção foi a presença de Edson Fachin, que, apesar de “contrariado”, compareceu devido à sua iminente ascensão à presidência do STF em menos de dois meses, com Moraes como seu vice. Fachin avaliou que seria “institucionalmente inadequado” faltar, demonstrando uma preocupação com a estabilidade institucional apesar do desconforto pessoal. Há um “sentimento no STF de que Moraes está levando a todos na Corte para um caminho sem volta”, especialmente após sua sugestão implícita de que os EUA seriam “inimigos estrangeiros” do Brasil.
Palanque político montado em pleno Plenário do STF
A sessão de 1º de agosto se transformou em um palco para a defesa contundente da soberania nacional e da institucionalidade democrática. O presidente Luís Roberto Barroso abriu os trabalhos com um pronunciamento intitulado “O Supremo Tribunal Federal e a defesa da institucionalidade”. Em seu discurso, Barroso fez um levantamento histórico dos ataques sofridos pelo Judiciário no Brasil, ressaltando a importância de uma atuação firme e rigorosa do STF, especialmente em referência às ações penais sob relatoria de Moraes. Barroso não poupou elogios ao colega, destacando seu “inexcedível empenho, bravura e custos pessoais elevados”, posicionamento conflitante com a opinião de muitos observadores políticos isentos.
Gilmar Mendes, o ministro mais antigo da Corte, foi incisivo em suas críticas ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), acusando-o de “fugir covardemente do país e difundir aleivosias contra o Supremo Tribunal Federal”. Mendes manifestou “veemente repúdio” a atos de hostilidades sofridos por Moraes, afirmando que “os fatos se revelam ainda mais graves porque decorrem de uma ação orquestrada” por pessoas “avessas à democracia”. Ele enfatizou que os julgamentos do STF não se curvam a interesses políticos, pressões externas ou simpatias ideológicas, e que a toga simboliza imparcialidade e compromisso exclusivo com a Constituição.
Alexandre de Moraes, por sua vez, proferiu um discurso ainda mais contundente, classificando as pressões externas como uma ação de “organização criminosa” que busca submeter o funcionamento do STF ao crivo de um Estado estrangeiro. Ele chamou os responsáveis de “pseudopatriotas” e de cometerem “traição à pátria”, referindo-se à negociação de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, uma decisão formalizada pelos EUA.
“Traição à pátria […] Como se glória houvesse na traição, assumindo a autoria de verdadeira intermediação com o governo estrangeiro para imposição de medidas econômicas contra o próprio país, resultando na taxação de 50%”, afirmou Moraes, comparando a atuação de réus e instigadores de ataques a “milicianos do submundo do crime”.
O ministro reiterou sua decisão de “ignorar as sanções que lhe foram aplicadas” e prometeu que os julgamentos dos quatro núcleos da ação penal que investiga a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 ocorrerão ainda neste semestre, reforçando a determinação da Corte em cumprir sua missão constitucional.
Apoio governamental
Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre uma incomum relação que deveria se ater ao campo institucional entre a cúpula do Judiciário e o atual Chefe do Executivo, isso foi reforçado. A Procuradoria-Geral da República (PGR), representada pelo procurador-geral Paulo Gonet, e a Advocacia-Geral da União (AGU), com Jorge Messias, alinharam-se publicamente à defesa da soberania nacional e da atuação do STF. Gonet expressou solidariedade a Moraes, reafirmando o papel constitucional do STF, enquanto Messias, representando o governo Lula, prometeu que a AGU “tomará todas as providências necessárias para a defesa da soberania nacional”, rechaçando que autoridades brasileiras sejam “ameaçadas ou punidas por Estados estrangeiros”. Juristas consideraram as declarações algo inédito na história da República.
O próprio Presidente Lula, descrito como “indignado” com a medida americana, prepara um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV para o domingo (3/8) em defesa de Moraes e do STF. Esse gesto reforça o apoio do Executivo à Corte em meio à crise, embora a ausência de parte dos ministros no jantar tenha evidenciado uma falha na projeção de unidade entre os Poderes.
Impactos e perspectivas
A atual conjuntura expõe o STF a um escrutínio sem precedentes, com potenciais impactos em diversas esferas da vida pública brasileira:
Esfera Política: A divisão de 6 a 5, escancarada no jantar e confirmada nas nuances da sessão, pode fragilizar a imagem de unidade da Corte, potencialmente dificultando consensos em decisões futuras de grande relevância nacional. A polarização política, já acentuada no país, encontra eco dentro do próprio Judiciário, tornando as negociações e a gestão de crises institucionais ainda mais complexas. A defesa enfática da soberania nacional, tanto pelo STF quanto pelo Executivo e órgãos de controle, indica uma postura de endurecimento diante de intervenções externas, o que pode gerar atritos diplomáticos futuros.
Esfera Social: A percepção pública da imparcialidade e autoridade do STF pode ser corroída pela exposição das divergências internas e pela linguagem forte empregada pelos ministros, especialmente em um ambiente já polarizado. A constante menção à “trama golpista” e a promessa de julgamentos iminentes podem manter a sociedade em estado de alerta e com expectativa de desdobramentos importantes que afetam a estabilidade democrática. A narrativa de “traição à pátria” contra críticos do tribunal pode aprofundar divisões sociais e alimentar a polarização, criando um ambiente de desconfiança generalizada.
Esfera Econômica: Embora não haja um impacto direto e imediato nas variáveis macroeconômicas, a instabilidade política e institucional prolongada tende a gerar incerteza, o que pode afastar investimentos e afetar a confiança do mercado a longo prazo. A menção à taxação de 50% em produtos brasileiros, associada à “traição à pátria”, embora um ponto específico, ilustra como questões de soberania e atritos internacionais podem ter repercussões comerciais, afetando setores específicos da economia.
A série de eventos recentes no STF, desencadeada pelas sanções da Lei Magnitsky, marca um momento crucial para a institucionalidade brasileira. A Corte se vê na encruzilhada entre a defesa intransigente de sua autonomia e a necessidade de resgatar uma imagem de unidade e imparcialidade. A forma como esses desafios serão gerenciados nos próximos meses definirá não apenas o futuro do Supremo e o andamento de casos cruciais como os do 8 de janeiro, mas também a resiliência das instituições democráticas do Brasil diante de pressões complexas e multifacetadas.
Reportagem: Val-André Mutran é repórter especial para o Portal Ver-o-Fato e está sediado em Brasília.
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