As prostitutas da Belle Époque do Pará

Por volta de 1910, a Amazônia já enfrentava o fim de sua Belle Époque.

Começava a se distanciar no tempo o período de “quase meio século de ebulição e esplendor” de Belém e Manaus, como o denominou o jornalista Humberto Werneck no livro “O santo sujo”.

Lançado há alguns anos, o livro dele trata de um paraense genial, mas esquecido por seus conterrâneos, o compositor Jayme Ovalle, nascido em 1904.

Ainda assim, nas décadas iniciais do século passado, prostitutas estrangeiras – como as que tinham sido atraídas ao Pará pelos anos de fausto -, continuavam presentes em Belém.

Prova disto está na mensagem do governador Antonino de Sousa Castro dirigida em 1921 à Assembleia Legislativa na qual prestou contas da sua gestão, no ano anterior, referindo-se à situação difícil pela qual atravessava nossa região:

“Como sabeis – disse ele aos membros da Assembleia Legislativa -, vem o Estado debatendo-se há cerca de duas décadas, em crises sucessivas, paroxismos de um estado crônico, caracterizado pelo regime mais ou menos deficitário das suas finanças. Fonte quase exclusiva das rendas do erário público, a indústria extrativa da borracha encheu-nos de riquezas, quando valendo ouro, como nos empobreceu e arruinou, quando nada valendo”.

Na mensagem do governador, aquelas mulheres tiveram de ser citadas porque, quando chegavam, eram alcançadas pela administração estadual na obtenção de licença oficial para exercerem suas atividades.

Identificadas na Polícia como meretrizes, recebiam uma caderneta do Serviço Médico Legal.

Nela, constavam informações sobre origem racial, idade, estado civil, grau de instrução e naturalidade de sua portadora.

Segundo Antonino de Castro, 20 prostitutas estrangeiras, junto com outras 282, brasileiras, tinham sido examinadas semanalmente, em 1920, pelo Instituto de Profilaxia.

Aquele era o órgão encarregado do controle de doenças venéreas no Estado.

Entre elas, apenas três estrangeiras eram latino-americanas, todas do Peru.

Uma única era norte-americana.

As demais estrangeiras provieram da Europa.

Eram seis russas; duas austríacas; duas espanholas; duas italianas; duas portuguesas.

Havia ainda, uma sérvia e uma romena.

Somente oito haviam completado, em 1920, 35 ou mais anos.

As demais, naquela data, pertenciam à faixa de idades compreendida entre os 23 e os 33 anos.

Naquele ano de 1920, as estrangeiras pareciam ter mais chances de escapar da marginalização social que as brasileiras, a levar-se em conta os dados relativos a grau de instrução apresentados pelo governador.

Pois, enquanto apenas um quarto das estrangeiras não sabiam ler, entre as brasileiras só cerca de um terço eram alfabetizadas.

A situação desfavorável das brasileiras deveria ficar agravada devido à cor de suas peles, numa sociedade afetada por preconceitos como a paraense da época.

As europeias eram todas brancas.

Já entre as brasileiras, dois terços eram identificadas nas cadernetas como mestiças ou pretas.

No meio delas parecia ainda restar um indício do distanciamento econômico-cultural que o Pará da Belle Èpoque mantivera com o Centro-Sul do país. 

Entre estas brasileiras havia uma única paulista e uma única carioca.

As demais ou eram paraenses – cerca de um terço -, ou nordestinas – sobretudo, cearenses, mas também, maranhenses, paraibanas e pernambucanas. 

E, em menor número, piauienses e rio-grandenses do norte.

Estas últimas em número igual ao das oriundas de outro Estado nortista, o Amazonas.

As brasileiras, talvez como consequência de maior carga de preconceito social a lhes atingir, não tinham a mesma facilidade para se casar concedida às estrangeiras, mostravam os dados do governador.

Apenas uma, em cada cinco prostitutas brasileiras, tinha marido.

Já a metade das prostitutas europeias era casada.

Por outro lado, entre as brasileiras, uma prostituta em cada grupo de 16 tivera marido, e, enviuvara.

Enquanto entre as estrangeiras, a proporção, neste caso, era de uma em cada grupo de 4. 

Os dados lançados especificamente nos registros de saúde das estrangeiras revelam que também entre elas existiam diferenças sociais.

Um quarto delas era de analfabetas. Do mesmo modo, um quarto delas já não mantinha mais vínculo matrimonial preservando assim a presumível aceitação social de quem permanecia casada.

Tais diferenças poderiam estar relacionadas às duas categorias sociais de prostitutas estrangeiras existentes na Belle Èpoque: as polacas e as cocotes.

          As polacas eram prostitutas “pobres, quase sempre analfabetas e sem dote para um bom casamento”, diz Fábio Varsano, no artigo “Tráfico de escravas brancas: polacas no Brasil”, publicado na Revista Aventuras na História.

Vindas do Leste Europeu – ele acrescenta -, elas saíam de seus países ameaçadas por ondas de antissemitismo, sem perspectivas, e acabavam sendo recrutadas por gigolôs, muitos dos quais também, judeus.

Diferentemente delas, as cocotes eram consideradas prostitutas de luxo desde os anos de 1800.

Se pareciam com cortesãs – as favoritas dos reis antigos que vivam com luxo -, afirma o jornalista Patrick de Carolis, no site do seu programa Gran Tour, apresentado na emissora francesa France 3.

Inteligentes e calculistas, as cocotes viviam ostensivamente à custa de homens influentes, a quem, às vezes arruinavam, com gastos em roupas e joias, afirma Patrick.

Foi uma cocote quem arruinou o relacionamento de Manuel e Mariano Ovalle, respectivamente, avô e pai de Jayme Ovalle, conta Humberto Werneck, na biografia do “Santo Sujo”.

Manuel, o avô, enviuvou da mãe de seus filhos e decidiu se casar com uma notória cocote.

Todos os filhos dele ficaram indignados, inclusive o futuro pai de Jayme, Mariano, ainda adolescente.

Coube a ele, Mariano, desempenhar uma difícil missão dada por seus irmãos: a de demover Manuel, pai deles, daquela intenção.

Para que Mariano obtivesse sucesso seus irmãos deram-lhe uma informação diante da qual, eles achavam, Manuel desistiria daquele casamento.

A informação era a seguinte: todos eles, filhos de Manuel, já tinham tido relações sexuais com a cocote, noiva de Manuel.

Mariano cumpriu a difícil missão. 

Mas, seu pai manteve a decisão de se casar com a cocote.

E expulsou Mariano de sua casa.    

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

Translation (tradução)

The Prostitutes of Pará’s Belle Époque

Around 1910, the Amazon was already experiencing the end of its Belle Époque.
The period of “almost half a century of turmoil and splendor” in Belém and Manaus — as journalist Humberto Werneck described it in his book O santo sujo (The Dirty Saint) — was beginning to fade into the past.

Published a few years ago, Werneck’s book tells the story of a brilliant but largely forgotten man from Pará: composer Jayme Ovalle, born in 1904.

Even so, in the early decades of the 20th century, foreign prostitutes — the same kind who had once been drawn to Pará during its golden years — were still present in Belém.

Evidence of this appears in a 1921 address by Governor Antonino de Sousa Castro to the Legislative Assembly, in which he reported on his administration the previous year and described the difficult circumstances the region was facing:

“As you know,” he said to the members of the Assembly, “for about two decades, the State has been struggling through successive crises — paroxysms of a chronic condition — marked by a more or less deficit-driven financial regime. As the near-exclusive source of state revenue, the rubber extraction industry made us rich when rubber was worth gold, just as it impoverished and ruined us when it lost its value.”

In that same message, the governor was compelled to mention those women, as they were required to obtain official state licenses in order to legally work upon arrival.

Identified by the police as prostitutes, they were issued a booklet from the State Medical-Legal Service.
This document included information about their racial background, age, marital status, education level, and place of origin.

According to Antonino de Castro, in 1920, 20 foreign prostitutes — along with another 282 Brazilian women — were examined weekly by the Institute of Prophylaxis, the state agency responsible for controlling venereal diseases.

Among the foreign women, only three were Latin American — all from Peru.
There was just one North American.
The others came from Europe: six Russians, two Austrians, two Spaniards, two Italians, two Portuguese, one Serbian, and one Romanian.

Only eight of them were 35 or older in 1920.
The rest were between 23 and 33 years old.

That year, foreign women seemed to have better chances of escaping social marginalization than Brazilian women, based on the governor’s data about literacy.
While only one-quarter of the foreign women were illiterate, among the Brazilians, just about one-third could read.

The Brazilian women’s situation was made even worse by the color of their skin, in a society like Pará’s at the time — deeply affected by racial prejudice.

All the European women were white.
Among the Brazilian women, two-thirds were identified in their health records as mixed-race or Black.

This also reflected the lingering economic and cultural distance between Pará and Brazil’s more developed South and Southeast.
Among the Brazilians, there was only one from São Paulo and one from Rio de Janeiro.
The rest were either from Pará itself (about a third), or from the Northeast — mostly from Ceará, but also from Maranhão, Paraíba, and Pernambuco.
There were smaller numbers from Piauí and Rio Grande do Norte, matching the number from Amazonas, another northern state.

Due to the greater weight of social prejudice, Brazilian women also had fewer chances of marrying, according to the governor’s records.
Only one in five Brazilian prostitutes had a husband.
Among the European women, half were married.
As for widows, among Brazilian women, only one in every sixteen had been married and widowed.
Among the foreign women, the rate was one in four.

Even among the foreign prostitutes, the health records showed social differences.
One-quarter of them were illiterate. Another quarter no longer maintained a marriage, which may have affected their social standing.

These differences point to two social categories of foreign prostitutes during the Belle Époque: polacas and cocottes.

Polacas were poor prostitutes, often illiterate and without dowries to secure a good marriage, as Fábio Varsano explains in the article White Slave Trade: Polacas in Brazil, published in Aventuras na História magazine.

Coming from Eastern Europe, these women were fleeing waves of anti-Semitism and lack of prospects in their homelands, often recruited by pimps — many of whom were also Jewish.

By contrast, cocottes were considered luxury prostitutes as early as the 1800s.

They resembled courtesans — the favored women of old kings who lived in luxury — as journalist Patrick de Carolis describes on the website of his program Gran Tour, broadcast by France 3.

Intelligent and calculating, cocottes openly lived off powerful men, sometimes driving them to ruin through lavish spending on clothes and jewelry.

One such cocotte destroyed the relationship between Manuel and Mariano Ovalle — the grandfather and father, respectively, of composer Jayme Ovalle — as Humberto Werneck recounts in The Dirty Saint.

Manuel, the grandfather, was widowed and decided to marry a notorious cocotte.
All his children were outraged — including the teenage Mariano, Jayme’s future father.

It fell to Mariano to carry out the difficult task his brothers assigned him: to dissuade their father from the marriage.

To help him succeed, they gave him what they believed was decisive information:
All of them — Manuel’s sons — had already had sexual relations with the cocotte he intended to marry.

Mariano delivered the shocking news.
But Manuel refused to change his mind: he went ahead with the marriage — and expelled Mariano from the house.

*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist.

(Illustration: a group of young cocottes)

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