Querem “salvar”, mas não querem passar uma semana na Amazônia

Por que só aqui se exige previsibilidade absoluta, infraestrutura perfeita, conforto pleno? Por que se cobra da Amazônia aquilo que não se cobra dos grandes centros globais?

Manoel Alves da Silva — sociólogo, doutor em Ciências Socioambientais

Querem salvar a Amazônia, mas não querem passar uma semana na Amazônia. Essa contradição revela o coração do debate que se instalou em torno da realização da COP 30 em Belém. Parte da opinião pública — nacional e internacional — parece querer proteger a floresta, desde que a floresta permaneça à distância. Desde que não haja contato com o calor, com a lama, com o cheiro da cidade, com a ausência de saneamento, com o povo negro, indígena, ribeirinho, com a Amazônia real. O problema é a desigualdade, a pobreza e a miséria que atingem a população da Amazônia.

No momento em que Belém, capital paraense e anfitriã da COP 30, se torna alvo de críticas contundentes — por sua infraestrutura precária, ausência de saneamento básico, carência de rede hoteleira e expressões concretas de racismo ambiental, de gênero e etário — é necessário ir além da superfície dessas análises. Tais críticas são reais, mas não devem ser argumento para sua desqualificação. Ao contrário, revelam a urgência e a pertinência da escolha da cidade como sede do evento. Tornar visível o que historicamente foi invisibilizado é o primeiro passo para qualquer processo de transformação.

A cidade não representa uma Amazônia idealizada ou cenográfica. Ela expressa, com todas as suas contradições, uma Amazônia urbanizada de forma incompleta, onde faltam direitos básicos como água potável, esgoto, gestão de resíduos, moradia digna, mobilidade, segurança alimentar, justiça ambiental e social. Uma Amazônia real, que foi sistematicamente excluída das grandes agendas internacionais, inclusive nos próprios fóruns ambientais globais.

Ao sediar a COP, Belém obriga o Brasil e o mundo a um enfrentamento inadiável com as desigualdades concretas que atravessam a crise climática. Não se trata apenas de emissões e métricas, mas de corpos concretos, vidas humanas e territórios historicamente marginalizados. As periferias alagadas, os povos originários desassistidos, a juventude sem perspectiva e os idosos ameaçados por doenças negligenciadas são a dimensão humana e urgente do debate climático.

Causa estranhamento o discurso que desqualifica a cidade sob o pretexto de sua “falta de preparo”. Na verdade, tal argumento camufla um desejo de exclusão. Há, muitas vezes, uma tentativa de higienização social, ambiental e racial, que visa ocultar a pobreza e as desigualdades em nome de um evento “limpo”, “moderno” e supostamente universal. Questiona-se Belém não por ser inviável, mas por ser verdadeira.

Ainda mais grave é o silêncio de lideranças políticas, intelectuais e acadêmicas diante desses ataques. Onde estão os deputados e senadores da região? Onde estão os estudiosos que se dedicam à Amazônia? A ausência de uma defesa pública da escolha de Belém revela, além de omissão, uma conivência tácita com a tentativa de remover a Amazônia do centro do debate internacional. Esse silêncio se converte em cumplicidade com um projeto que deseja uma Amazônia domesticada, e não a Amazônia real — múltipla, viva, conflitiva e potente.

Em relação aos preços das hospedagens, vale destacar que os picos tarifários são comuns em eventos internacionais. Isso ocorre em qualquer cidade do mundo. Não se questiona o custo de uma semana em Paris, Nova York ou Dubai — destinos inacessíveis para a maior parte da população amazônica. A crítica seletiva revela não apenas uma incoerência, mas também uma expectativa injusta de excelência estrutural em uma cidade historicamente negligenciada.

Curiosamente, quando convém, a lógica do mercado é defendida como solução universal — autorreguladora, eficiente, neutra. Mas quando aplicada à Amazônia, essa mesma lógica é subitamente contestada. Por que só aqui se exige previsibilidade absoluta, infraestrutura perfeita, conforto pleno? Por que se cobra da Amazônia aquilo que não se cobra dos grandes centros globais?

Belém está longe de ser apenas dor e ausência. A cidade é também força, cultura, ancestralidade, criatividade e articulação política. É território de resistência e invenção social. Receber a COP 30 é também afirmar essa potência — não como espetáculo, mas como realidade vivida e protagonizada por seus habitantes.

A realização da conferência na capital paraense é, portanto, uma oportunidade histórica. Não representa erro, mas um gesto político necessário. Pela primeira vez, a Amazônia urbana, com toda sua complexidade, ocupa o centro das decisões globais sobre clima e sustentabilidade. Trata-se de reconhecer que a transição ecológica não é apenas técnica: é social, política e, sobretudo, ética.

Justiça climática exige mais do que redução de emissões. Exige verdade, inclusão e compromisso com os territórios vulnerabilizados. A Amazônia não pode continuar sendo tratada como cenário. Ela é sujeito político e espaço estratégico para o presente e o futuro.

A COP 30 em Belém não é um desafio a ser evitado, mas uma oportunidade civilizatória que não pode ser desperdiçada.

“Translated to English” (traduzido para o inglês)

They Want to “Save” It, But They Don’t Want to Spend a Week in the Amazon

Why is absolute predictability, perfect infrastructure, and full comfort demanded only here? Why is the Amazon held to standards never required of global centers?

By Manoel Alves da Silva — Sociologist, PhD in Socio-Environmental Sciences

They want to save the Amazon — as long as they don’t have to spend a week in the Amazon. This contradiction lies at the heart of the debate surrounding COP30 in Belém. A portion of public opinion — both national and international — seems eager to protect the rainforest, so long as it remains at a distance. As long as there is no contact with the heat, the mud, the smells of the city, the lack of sanitation, the Black, Indigenous, and riverside peoples — the real Amazon. The issue here is inequality, poverty, and the misery experienced by Amazonian populations.

As Belém, the capital of Pará and host city of COP30, becomes the target of harsh criticism — over its fragile infrastructure, lack of basic sanitation, limited hotel capacity, and visible expressions of environmental, gender, and age-based racism — we must move beyond surface-level analysis. These criticisms are real and legitimate, but they should not be used as reasons for disqualification. On the contrary, they highlight the urgency and relevance of choosing Belém to host the event. Making visible what has historically been made invisible is the first step toward transformation.

Belém is not a romanticized or cinematic version of the Amazon. It embodies, with all its contradictions, an incompletely urbanized Amazon — where basic rights such as clean water, sewage treatment, waste management, dignified housing, mobility, food security, and environmental and social justice are still lacking. This is the real Amazon — one systematically excluded from major international agendas, even within global environmental forums.

By hosting COP30, Belém forces Brazil and the world to confront the concrete inequalities driving the climate crisis. This is not just about emissions and metrics — it is about real bodies, real lives, and historically marginalized territories. Flooded neighborhoods, underserved Indigenous communities, youth with no prospects, and elderly people at risk from neglected diseases — this is the human, urgent dimension of the climate debate.

It is unsettling to hear the city being discredited on the grounds of its alleged “lack of readiness.” In truth, this argument often masks a desire for exclusion. There is a recurring attempt to “sanitize” the event — socially, environmentally, and racially — to hide poverty and inequality in the name of a “clean,” “modern,” and supposedly universal gathering. Belém is not questioned because it is unfit — it is questioned because it is real.

Even more troubling is the silence of political, intellectual, and academic leaders in the face of these attacks. Where are the local representatives in Congress? Where are the scholars dedicated to studying the Amazon? Their silence, beyond omission, signals tacit complicity with an effort to remove the Amazon from the center of international debate. It enables a project that seeks a tamed, domesticated Amazon — not the real Amazon: diverse, alive, conflicted, and powerful.

As for rising accommodation prices, it must be noted that price spikes are common during international events — in any city. No one questions the cost of spending a week in Paris, New York, or Dubai — destinations largely inaccessible to most Amazonian residents. This selective criticism is not just inconsistent; it reflects an unfair expectation of structural excellence from a city that has historically been neglected.

Ironically, market logic is often defended as a universal solution — self-regulating, efficient, neutral. But when applied to the Amazon, that same logic is suddenly challenged. Why is absolute predictability, flawless infrastructure, and full comfort demanded only here? Why is the Amazon held to standards not imposed on major global centers?

Belém is far more than hardship and absence. The city is also strength, culture, ancestry, creativity, and political articulation. It is a territory of resistance and social innovation. Hosting COP30 is a way to affirm that power — not as spectacle, but as lived reality, led by its people.

The decision to hold the conference in the capital of Pará is, therefore, a historic opportunity. It is not a mistake, but a necessary political act. For the first time, the urban Amazon — in all its complexity — will take center stage in global climate and sustainability discussions. This is a recognition that the ecological transition is not merely technical — it is social, political, and above all, ethical.

Climate justice demands more than emission cuts. It requires truth, inclusion, and commitment to vulnerable territories. The Amazon must no longer be treated as a backdrop. It is a political subject and a strategic space — for the present and the future.

COP30 in Belém is not a challenge to be avoided. It is a civilizational opportunity we cannot afford to waste.

The post Querem “salvar”, mas não querem passar uma semana na Amazônia appeared first on Ver-o-Fato.