EXCLUSIVO – PEC que morreu em 1995 manteve o STF que hoje assusta o Brasil

A emenda à Constituição do deputado federal paraense Nicias Ribeiro dava independência ao STF, tinha só juízes de carreira escolhidos pelo próprio Judiciário, mas sucumbiu à pressão das elites. E dorme até hoje nas gavetas do Congresso Nacional. O Ver-o-Fato resgatou essa infame história.

Em maio de 1995, o então deputado federal paraense Nicias Ribeiro, do MDB, apresentou ao Congresso Nacional uma proposta que, se tivesse sido aprovada, talvez tivesse mudado para sempre o rumo da Justiça brasileira. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 92 previa uma nova forma de composição para o Supremo Tribunal Federal (STF): os 11 ministros da Corte deixariam de ser escolhidos diretamente pelo presidente da República e passariam a ser indicados a partir de uma lista tríplice composta por juízes de carreira, elaborada pelo próprio Judiciário.

O Ver-o-Fato fez um trabalho exaustivo de pesquisa no Congresso Nacional e resgatou a história dessa PEC 92 para destacar e homenagear o trabalho quase profético de Niciais Ribeiro. Morador do bairro do Jurunas, em Belém, onde sempre viveu, ele foi vereador, deputado estadual e deputado federal por vários mandatos.  

Nos anos 80, Nicias foi sobrevivente de uma tragédia pessoal, um acidente de carro na rodovia Augusto Montenegro, onde morreram sua esposa e um filho. Ele
dirigia o veículo e carregou consigo várias sequelas físicas desse acidente. 

A PEC defendia um STF verdadeiramente autônomo, composto por magistrados que percorreram toda a trajetória da toga, de entrância em entrância, até os tribunais superiores. O projeto representava não apenas uma quebra da tradição política, mas uma tentativa legítima de blindar o Supremo contra o partidarismo, a promiscuidade institucional e os interesses de ocasião.

“Por que transformarmos o Poder Judiciário em algo que se assemelha a um corpo cuja cabeça é estranha ao seu conjunto orgânico?”, questionava o deputado, em tom duro e visionário.

A proposta foi sumariamente rejeitada. Arquivada por pressões cruzadas de elites do Executivo, do Legislativo e do próprio Judiciário, a PEC 92 dorme nos porões da história como um exemplo de projeto necessário que foi sufocado antes mesmo de respirar.

Ironia amarga: entre as 171 assinaturas que permitiram que a PEC tramitasse — apenas para ser enterrada oito anos depois — está a do então deputado Jair Bolsonaro, que depois se elegeu presidente do país e hoje está em prisão domiciliar, usando tornozeleira eletrônica por ordem do ministro Alexandre de Moraes, símbolo maior da politização do STF e personagem central das denúncias internacionais sobre supostos abusos judiciais e violação de direitos humanos no Brasil.

Trinta anos depois, a iniciativa de Nicias Ribeiro prova que ele tinha razão. O STF, atolado em crises de credibilidade, se vê hoje no centro de uma tempestade política, alvo de desconfiança da população e de críticas crescentes no cenário internacional, inclusive com um ministro, Alexandre de Moraes, sancionado pela Lei Magnitsky, enquanto outros sete tiveram os vistos de entrada nos Estados Unidos cancelados.

As decisões da Corte — muitas vezes com forte carga política — deixaram de inspirar respeito unânime e passaram a alimentar polarizações perigosas. Ministros viraram personagens midiáticos, partidos se utilizam do Supremo como trincheira, e decisões monocráticas substituem o debate democrático no plenário.

A PEC rejeitada expunha o cerne da distorção: um Supremo composto por indicações políticas, feito à imagem e semelhança do poder de plantão, está vulnerável à suspeição. Como frisou Nicias, é inaceitável que juízes de carreira, com décadas de atuação dedicada à Constituição, sejam sistematicamente ignorados na hora de se preencher a mais alta Corte do país — enquanto outros, sem experiência alguma na magistratura, ascendem por meio de conexões políticas ou simpatias ideológicas.

O relator da PEC, deputado José Divino, recomendou a rejeição da proposta. A comissão especial acatou. O Congresso engavetou. A história seguiu seu curso — ou, talvez, seu desvio.

Na justificativa que apresentou ao país, Nicias Ribeiro não escondeu o realismo: sabia que estava mexendo com estruturas poderosas. “Temos consciência de que esta Proposta terá grandes resistências, até mesmo porque ela representa a quebra de uma tradição em nosso país. Todavia, não temos compromisso com o erro”, escreveu. Seu diagnóstico, 30 anos depois, mostra-se ainda mais atual — e mais ignorado do que nunca.

Se o STF é hoje um poder questionado, com ministros tratados como inimigos políticos ou salvadores da pátria, isso se deve, em parte, à recusa histórica de repensar sua própria composição. A democracia, para ser madura, exige que os poderes sejam independentes — inclusive o Judiciário.

Mas a chance de construir um Supremo mais técnico, imparcial e fiel à magistratura foi desperdiçada. Quando o Brasil teve a oportunidade de fazer justiça à Justiça, preferiu manter o jogo viciado. E agora colhe as consequências.

O ápice dessa tensão veio recentemente, quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sancionou o ministro Alexandre de Moraes sob a Lei Magnitsky, acusando-o de violações de direitos humanos contra opositores do governo Lula, incluindo prisões arbitrárias e censura. Trump ainda alertou os demais ministros a não apoiarem Moraes, sob pena de represálias, intensificando o cerco ao Judiciário brasileiro.

A proposta de Nicias, com sua ênfase na meritocracia e na carreira judicial, poderia ter blindado o STF contra esse tipo de ingerência. Em vez disso, o tribunal segue vulnerável, refém de um sistema que o torna parceiro de políticos no poder, em vez de um contrapeso independente.

O deputado paraense faleceu em 2017, deixando o legado de alguém que lutou por um Brasil melhor.

A PEC 92 E O ARQUIVAMENTO

PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 92, DE 1995 (Do Sr. Nícias Ribeiro e Outros) Dá nova redação ao artigo 101 da Constituição Federal. (À COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE REDAÇÃO)

AS MESAS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS E DO SENADO FEDERAL promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:

Artigo único – O art. 101 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros escolhidos dentre os Membros dos Tribunais Superiores que integrem a carreira da magistratura, menores de sessenta e cinco anos de idade, indicados em lista tríplice pelo próprio Tribunal.

Parágrafo único – Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelos Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal.”

JUSTIFICATIVA DE NICIAS

“A carreira da magistratura no Brasil tem sido frustrante para muitos daqueles que a abraçaram, uma vez que é negado aos juízes o direito de, por merecimento ou antiguidade, ascenderem às funções de Ministro do Supremo Tribunal Federal, que seriam os caminhos normais da carreira da magistratura nacional.

Na verdade a carreira de um juiz tem início com um concurso público, e o aprovado caminha de entrância em entrância sonhando com a possibilidade de um dia tornar-se membro de um Tribunal inferior. Quando o magistrado consegue integrar um Tribunal no seu Estado, passa a sonhar, como é natural, a possibilidade de se tornar Ministro de um Tribunal Superior.

Se conseguir alcançar este patamar, o magistrado de carreira passa a vislumbrar apenas a possibilidade de sua aposentadoria, a não ser que conte com a amizade e a simpatia de políticos influentes que possam defender a sua indicação para Ministro do STF, já que esta Corte não é constituída, necessariamente, por magistrados de carreira.

Aliás, o artigo 101 da nossa Carta Magna deixa bastante claro que para ser Membro do Supremo Tribunal Federal basta que o candidato tenha, apenas, “notável saber jurídico e reputação ilibada” (grifamos). Como se vê, não é exigido sequer que um Ministro do Supremo Tribunal Federal seja pelo menos bacharel em direito, fato que entendemos ser inadmissível, uma vez que o “notável saber jurídico e reputação ilibada” são requisitos extremamente subjetivos e de difícil comprovação, podendo possibilitar, apesar do absurdo, a nomeação de médicos, engenheiros e profissionais de outras áreas, para as funções de Ministro daquela Corte Suprema.

Por isso, historicamente, os Ministros do Supremo Tribunal Federal tem sido indicados pelos Presidentes da República ao Senado Federal que invariavelmente tem aprovado as indicações e, desta forma, diz-se que foi respeitado o preceito constitucional… É certo que a Constituição, neste aspecto, tem sido respeitada. Todavia, a forma de composição do Supremo Tribunal não tem sido a mais indicada, em razão de propiciar a que Ministros dessa corte venham a se considerar suspeitos em julgamentos de processos que envolvam Presidentes da República por terem sido nomeados por indicação desses, como ocorreu ultimamente no processo do ex-Presidente Fernando Collor de Melo.

A continuar a utilização exclusiva do critério político, poderá acontecer o dia em que o Supremo Tribunal Federal, como um todo, venha se declarar suspeito para julgar casos dessa natureza, uma vez que pode ocorrer, apesar do exagero, de todos os Ministros considerarem-se suspeitos para julgar atos de um determinado Presidente ou ex-Presidente da República, por terem sido indicados por estes.

Afora esses dados, é importante que seja lembrado que o Poder Judiciário, no Brasil é administrado pelo Supremo Tribunal Federal, do qual é o seu órgão máximo. Essa circunstância nos leva a indagar se é correto que o Supremo Tribunal Federal seja constituído por pessoas estranhas ao Poder Judiciário, mesmo que esses “cidadãos” tenham “notável saber jurídico e reputação ilibada”.

Realmente, talvez até por inadvertência permitiu-se essa possibilidade que, uma vez admitida, possibilitaria admitir também, por exemplo, que o Congresso Nacional tivesse a sua Mesa Diretora constituída por cidadãos estranhos ao Senado Federal e à Câmara dos Deputados. Será que os Membros dessas Casas legislativas sentir-se-iam confortáveis com tal absurdo?!…

Assim sendo, da mesma forma, os Membros do Congresso Nacional não admitiriam jamais ser liderados, administrados ou presididos por pessoas estranhas às suas atividades legislativas, pelo simples fato de essas pessoas desconhecerem os problemas do Poder e o processo legislativo. Como então se impor ao Judiciário que ele seja administrado por um órgão constituído por pessoas estranhas ao seu meio? Ou por que não se dar aos membros da carreira da magistratura o direito de administrarem o Poder do qual efetivamente fazem parte? Porque transformarmos o Poder Judiciário em algo que se assemelha a um corpo cuja cabeça é estranha ao seu conjunto orgânico?…

Ademais, o Supremo não apenas coordena as ações normativas e administrativas do Poder Judiciário. Cabe àquela Corte de Justiça, além da guarda da Constituição e da difícil tarefa de processar e julgar as mais altas autoridades da República, a competência de julgar recursos e outras causas que se originam naquela Corte, como é o caso das ações criminais que são muito comuns no dia a dia de um juiz singular e com as quais certamente o Supremo Tribunal não tem nenhuma ou quase nenhuma intimidade.

Por essas razões é que defendemos a tese de que o Supremo Tribunal Federal deve ser constituído de Ministros que tenham “notável saber jurídico e reputação ilibada”, mas que, necessariamente, sejam juízes de carreira, até mesmo como reconhecimento àquele magistrado que dedicou a sua vida à judicatura nacional.

Assim sendo, nada mais coerente e nada mais justo do que fazer do Supremo Tribunal Federal o órgão onde se concentrem as melhores cabeças da magistratura nacional, cujos juízes, em fim de carreira, integrariam, até mesmo por merecimento, a mais alta corte da justiça brasileira. E, por já serem integrantes de um Tribunal Superior, certamente seria indiscutível o “notável saber jurídico e a reputação ilibada”, até mesmo por razões de exigência constitucional.

Como Rui Barbosa, nós também pensamos que a justiça militante é com o advogado, enquanto que a justiça imperante é com o magistrado. Daí a tese que defendemos com a presente emenda à Constituição, a qual, se aprovada, abrirá uma nova prospectiva aos integrantes da carreira da magistratura em nosso país. Temos consciência de que esta Proposta terá grandes resistências, até mesmo porque ela representa a quebra de uma tradição em nosso país.

Todavia, não temos compromisso com o erro. Se erramos, devemos voltar atrás com toda a humildade e promovermos a devida correção no tempo e no espaço. Sabemos também que esta Proposta de Emenda à Constituição fere interesses de alguns setores da sociedade civil. Entretanto, entendemos, que a tese por nós defendida deve ser discutida pelo Congresso Nacional dado não ser justo que os senhores juízes – membros efetivos da carreira da magistratura nacional – continuem sendo tolhidos de administrarem o Poder do qual efetivamente são parte integrante.

Finalmente, Senhores Congressistas, o que desejamos com esta proposta é dar ao Poder Judiciário a efetiva independência preconizada no artigo 2º da nossa Carta Magna, transformando os cargos de Ministro do Supremo Tribunal Federal no ápice da carreira da magistratura nacional, com a promoção, por merecimento, dos Senhores Juízes de carreira, que estejam ocupando os cargos de Ministros em qualquer um dos colendos Tribunais Superiores em nosso país.

Assim, cremos que o Congresso Nacional estará fazendo justiça aos cidadãos de notável saber jurídico e de reputação ilibada que se dedicaram ao exercício da judicatura, prolatando sentenças de entrância em entrância, até que chegassem a condição de Ministro de um Tribunal Superior.

Plenário Ulysses Guimarães, em 11 de maio de 1995. NICIAS RIBEIRO. Deputado Federal PMDB-PARÁ”

PROJETO REJEITADO: VEJA

A PEC nº 92, de 1995, de autoria do Sr. Nícias Ribeiro e outros, propunha uma nova redação para o Artigo 101 da Constituição Federal. A proposta sugeria que o Supremo Tribunal Federal (STF) fosse composto por onze Ministros escolhidos dentre os membros dos Tribunais Superiores que integrassem a carreira da magistratura. Esses indivíduos deveriam ter menos de sessenta e cinco anos de idade e seriam indicados em lista tríplice pelo próprio Tribunal.

A nomeação dos Ministros do STF seria feita pelo Presidente da República e aprovada pelo Senado Federal. A justificativa para essa proposta era conceder ao poder judiciário uma “independência efetiva”. Os autores argumentavam que a atual composição do STF não era ideal, pois permitia a nomeação de indivíduos que não eram magistrados de carreira, e que, portanto, poderiam não estar familiarizados com os problemas diários do judiciário.

Argumentava-se também que o sistema atual fomentava a dependência de “amizade e simpatia de políticos influentes” para que um magistrado fosse indicado ao STF. Os defensores da proposta acreditavam que o cargo de Ministro do STF deveria ser o ápice da carreira judicial, uma promoção por merecimento para juízes que já estivessem servindo como Ministros em outros Tribunais Superiores.

O documento também fazia referência ao caso do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, onde Ministros nomeados por um Presidente poderiam se considerar suspeitos ao julgar casos envolvendo esse mesmo Presidente. Os autores da PEC reconheceram que a proposta desafiava uma longa tradição no país e poderia enfrentar resistências significativas.

Em 19 de maio de 1995, uma comunicação oficial observou que a proposta tinha um número suficiente de assinaturas para prosseguir. Havia 171 assinaturas válidas, 13 assinaturas repetidas e 9 assinaturas que não conferiam.

No entanto, uma comissão especial foi formada para avaliar a PEC nº 92/95. O relator, Deputado José Divino, emitiu um parecer recomendando a sua rejeição. O parecer foi aprovado, levando à rejeição da proposta.

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