Elites querem calar a voz da floresta: COP 30 sem Belém é farsa

Manuel Alves da Silva – sociólogo e doutor em ciências socioambientais

José Francisco Pereira – secretário nacional de meio ambiente e sustentabilidade da UGT

O editorial do jornal O Globo, de 8 de agosto de 2025, propõe transferir parcial ou totalmente a COP 30 de Belém para o Rio de Janeiro. Longe de se sustentar nos argumentos apresentados, essa ideia revela preconceito profundo contra a Amazônia e seu povo. Ao alegar dificuldades logísticas e estruturais, mascara interesses econômicos e geoestratégicos, reproduzindo uma visão colonial que insiste em excluir social, racial e ambientalmente a região — como se a floresta e seus habitantes fossem um problema a ser afastado.

Diante desse cenário, a liderança do governador do Pará, dos demais governadores amazônicos e dos ministros paraenses torna-se crucial para consolidar uma governança multissetorial que reafirme a importância estratégica da região. Trabalhadores e trabalhadoras, empresários, Estado e mercado precisam atuar de forma articulada, pois a sustentabilidade socioambiental não nasce de iniciativas isoladas, mas do diálogo entre os diversos atores que vivem a realidade amazônica. É esse pacto que pode promover um desenvolvimento justo, inclusivo e sustentável, valorizando a floresta em pé, fortalecendo cadeias produtivas locais e assegurando justiça climática e social para todos.

Além disso, a mobilização conjunta do Parlamento Amazônico, das bancadas federais, das centrais sindicais, das universidades, das entidades empresariais e da sociedade civil é decisiva para que a COP 30 seja muito mais que um evento protocolar: que se torne uma plataforma de protagonismo amazônico na luta por justiça climática, desenvolvimento sustentável e direitos dos povos.

O editorial de O Globo escancara uma herança colonial ao afirmar que a Amazônia “não tem a infraestrutura urbana e a urbanidade necessárias para a elite passar uma semana”. Essa visão ignora que mais de 70% da população amazônica vive em cidades ativas, com redes culturais, científicas e comunitárias vibrantes. O incômodo de parte da elite é ter de pisar no chão da Amazônia real — o Brasil profundo que, por décadas, foi invisibilizado.

Desconsiderar Belém como sede da COP é negar o próprio propósito da conferência: colocar no centro do debate os territórios mais impactados e que guardam soluções para a crise climática. A precariedade de parte da infraestrutura é fruto histórico de abandono e desigualdade, não motivo para afastar o debate do coração da floresta. A hotelaria, alvo de críticas, sofre a mesma pressão de grandes eventos, mas é tratada com preconceito e racismo estrutural por ser amazônica.

Em suma, o que está em jogo não é logística, mas política: manter a Amazônia como vitrine distante, fonte de recursos e créditos de carbono, sem participação efetiva na governança global. Transferir a COP para o Rio de Janeiro seria esvaziar seu sentido, transformando a urgência climática em espetáculo desconectado das realidades locais.

A Amazônia é a base da nova economia do século XXI — pulsando na bioeconomia, na economia circular, no mercado de carbono e nas energias limpas. É um território vivo, com cerca de 27,8 milhões de habitantes e biodiversidade única, vital para a estabilidade climática global. No Pará, a liderança na produção de cacau e açaí, majoritariamente por sistemas agroflorestais e agricultura familiar, prova que é possível conservar e gerar renda. Mais de 30% dos estabelecimentos de agricultura familiar do Brasil estão na Amazônia, responsáveis por 70% dos alimentos consumidos no país. Com políticas públicas para ciência, tecnologia, crédito e acesso a mercados verdes, essa cadeia produtiva pode se expandir, valorizando a floresta em pé como ativo econômico e socioambiental.

Sem trabalhadores e trabalhadoras, não há sustentabilidade na Amazônia. E são justamente os mais pobres, negros, mulheres, jovens e idosos das periferias urbanas os mais afetados pelos impactos climáticos: enchentes, deslizamentos, ilhas de calor e insegurança alimentar. Na Região Norte, apenas 27,4% dos domicílios têm acesso à rede de esgoto (PNAD Contínua/IBGE, 2023), e no Pará apenas 13,6% dos esgotos são tratados. Mais de 15 milhões de pessoas na Amazônia Legal vivem sem saneamento adequado, realidade que atinge especialmente mulheres, juventudes negras e populações tradicionais. Sem enfrentar essa precariedade, qualquer proposta de transição ecológica será incompleta.

Relatórios da ONU-Habitat (2022) e da Coalizão Negra por Direitos mostram que a exclusão socioespacial das periferias é também climática: são territórios mais vulneráveis às enchentes, à escassez de água potável e às ilhas de calor. A COP 30 deve reconhecer as periferias amazônicas como territórios estratégicos de regeneração urbana, justiça climática e democracia ambiental — e não apenas focar em tecnologias limpas ou bioeconomia de exportação.

As universidades, institutos federais e centros de pesquisa amazônicos têm papel central: desenvolvem tecnologias sociais, sistemas agroflorestais, bioindústrias, alternativas energéticas limpas e soluções de adaptação às mudanças climáticas, integrando ciência, saberes tradicionais e protagonismo comunitário.

A Amazônia é floresta, rios, biodiversidade, cidades, povos e trabalhadores. Transferir a COP 30 para fora de Belém seria perpetuar o colonialismo ambiental e político que há séculos marginaliza a região. Justiça climática exige governança multissetorial que una trabalhadores, empresas, Estado e mercado em torno de um desenvolvimento justo e inclusivo.

A COP 30 em Belém é mais que logística: é um posicionamento político e civilizatório. É reconhecer que a Amazônia não é problema, mas solução — e que o futuro do planeta depende do protagonismo dos seus povos.

O mundo não pode perder essa oportunidade.

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