No Brasil, um pedaço de papel pode custar muito mais do que aparenta. Uma simples folha com o registro de uma assinatura pode ultrapassar R$ 10, e cada carimbo ou autenticação é mais uma engrenagem de um sistema que movimenta bilhões todos os anos — um sistema que, desde a era colonial, se mantém intocável, protegido por leis e sustentado por um poderoso lobby.
O setor cartorial brasileiro, que abrange registros civis, de imóveis, títulos e documentos, protestos e notas, movimenta cifras astronômicas. Segundo estimativas de associações do próprio setor e reportagens da Folha de S.Paulo e da Veja, a receita anual total dos cartórios ultrapassa R$ 30 bilhões. Desse montante, boa parte vai parar no bolso de um pequeno grupo de titulares que, em muitos casos, faturam mais de R$ 100 mil por mês, sem contar benefícios indiretos e isenções.
O modelo atual nasceu com a Constituição de 1988, que determinou que os serviços cartoriais seriam exercidos por particulares, aprovados em concurso público, mas sob delegação do Estado. Na prática, criou-se um monopólio privado de função pública, blindado contra a livre concorrência.
O resultado é que, em vez de competir para oferecer serviços mais rápidos e baratos, os cartórios atuam em mercados fechados, delimitados por município ou circunscrição, cobrando taxas fixadas sem real disputa.
Da colônia ao século XXI: uma história de poder concentrado
A história começou em 1º de março de 1565, quando Pero da Costa foi nomeado primeiro tabelião do Brasil, no recém-fundado Rio de Janeiro. Desde então, tudo que dizia respeito à vida civil — nascimento, casamento, morte, compra e venda de terras, testamentos — passava por registros oficiais. Na época colonial, até a Igreja Católica tinha papel decisivo, registrando batismos e óbitos que depois eram reportados às autoridades.
Com a Proclamação da República, em 1889, os cartórios foram secularizados e institucionalizados. Mas, em vez de simplificar, o país perpetuou uma estrutura pesada, com pouco incentivo à eficiência. O que deveria ser um serviço público essencial virou fonte de renda extraordinária para poucos.
No século XXI, enquanto outros países integraram sistemas, digitalizaram registros e simplificaram trâmites, o Brasil se manteve preso ao papel, ao carimbo e a deslocamentos físicos. Essa inércia tem explicação: modernizar significa mexer em um mercado bilionário e em privilégios profundamente enraizados.
O custo da burocracia e o peso no bolso do cidadão
Comprar um imóvel no Brasil é um exemplo clássico do peso cartorial na vida econômica. Assinaturas, autenticações, registros e averbações podem consumir semanas, com taxas acumuladas que chegam a milhares de reais por operação. Um estudo sobre “O Custo da Burocracia no Imóvel” revelou que a lentidão e a complexidade dos trâmites aumentam em até 12% o valor final da casa própria, o que representa um impacto de R$ 18 bilhões por ano.
Não é só no mercado imobiliário que esse custo aparece. Qualquer transação que envolva contratos, procurações, certidões ou reconhecimento de firma tem tarifas fixas que, somadas nacionalmente, se transformam em um manancial de recursos. Esse dinheiro, que poderia circular na economia produtiva, acaba concentrado em um setor protegido por lei.
Monopólio blindado pelo lobby
Em 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tentou dar um passo em direção à modernização, regulamentando serviços digitais e flexibilizando a territorialidade. Mas recuou diante da pressão direta de tabeliães, mantendo regras que obrigam o cidadão a usar o cartório do próprio município, mesmo quando há alternativas mais baratas ou eficientes em outros lugares.
A restrição é tão artificial que especialistas comparam a obrigar alguém a comprar pão apenas na padaria do bairro, ignorando concorrência e melhores preços. O argumento oficial é de que a territorialidade garante segurança jurídica. Críticos, no entanto, apontam que ela garante, na verdade, a manutenção de um mercado cativo e altamente rentável.
O impacto dessa barreira na economia é profundo: estudos do próprio governo mostram que a modernização e a integração dos registros poderiam destravar o crédito no país, elevando o estoque total de R$ 4,5 trilhões para R$ 10 trilhões. Mas para isso seria necessário romper com o modelo monopolista.
Intermediação lucrativa e falta de transparência
Mesmo no ambiente digital, a população não consegue acessar registros diretamente. Precisa passar por associações privadas que funcionam como intermediárias, cobrando taxas adicionais. Embora se declarem “sem fins lucrativos”, essas entidades faturam milhões por ano e não têm transparência equiparável à de órgãos públicos.
Em alguns estados, apenas uma empresa — escolhida por decisão judicial — pode prestar determinados serviços digitais para cartórios, criando monopólios dentro do próprio monopólio. Em 2015, por exemplo, a Caixa Econômica Federal gastou R$ 30 milhões em contratos com intermediação para envio de documentos a cartórios paulistas, sem licitação e sem opção de lidar diretamente com os serviços.
Há ainda riscos relacionados à proteção de dados. Em um episódio recente, dados pessoais de mais de 1 milhão de brasileiros, incluindo crianças, vazaram de uma central cartorial digital. Essas bases concentram informações sensíveis, como biometria e assinaturas, e não contam com fiscalização pública robusta.
Tecnologia existe, mas não interessa
Ferramentas como o Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP) e até mesmo soluções blockchain poderiam transformar a prestação de serviços cartoriais, integrando informações, reduzindo custos e eliminando deslocamentos. Uma transferência de imóvel, que hoje leva semanas, poderia ser feita em dias. Uma certidão de nascimento emitida em outro estado poderia chegar em minutos, não em dias.
Mas, como apontou a Folha de S.Paulo, “tabeliães temem que essa digitalização seja o início do fim do modelo que lhes garante tantas prerrogativas”. Por isso, resistem.
Enquanto isso, a sociedade paga a conta — seja na fila do cartório, seja na tarifa embutida no preço do imóvel, seja na demora para abrir uma empresa ou finalizar um contrato. Em 2025, em plena era dos pagamentos instantâneos e das transações digitais seguras, o Brasil continua preso a um sistema que lucra com carimbo, papel e burocracia.
A questão central
No fundo, não se trata de tecnologia versus cartórios, mas de interesse público versus privilégio privado. A manutenção do atual modelo representa um desvio de recursos bilionários de um serviço que deveria ser público e eficiente para uma estrutura que serve a si mesma.
A pergunta que se impõe é simples: até quando o país vai tolerar que um grupo restrito continue enriquecendo às custas da lentidão, da falta de concorrência e da dependência burocrática da população?
Enquanto países como Estônia e Dinamarca eliminaram praticamente toda a burocracia física, integrando registros públicos em sistemas digitais acessíveis e baratos, o Brasil manteve o papel, o carimbo e a exigência de presença física. Hoje, um cidadão estoniano pode abrir uma empresa, registrar um contrato ou transferir um imóvel inteiramente online, em minutos — por uma fração do custo brasileiro.
O preço do atraso
A ineficiência cartorial tem um custo macroeconômico gigantesco. Um estudo do governo federal mostra que, se os registros públicos fossem digitalizados e integrados nacionalmente, o estoque de crédito no país poderia mais que dobrar, saltando de R$ 4,5 trilhões para R$ 10 trilhões.
No mercado imobiliário, a burocracia aumenta em até 12% o valor final da casa própria, segundo levantamento setorial. Isso significa R$ 18 bilhões a mais no bolso dos cartórios e nas custas processuais todos os anos.
Para as empresas, a lentidão e o custo de registro também afetam a competitividade. No ranking Doing Business do Banco Mundial — que media a facilidade de fazer negócios —, o Brasil sempre ficou atrás de dezenas de países justamente por causa do peso cartorial e notarial nos trâmites econômicos.
No Brasil, uma simples certidão emitida em outro estado pode levar dias para chegar e custar dezenas de reais — e isso quando não exige deslocamento físico.
A conta final
O que está em jogo não é apenas a modernização de um serviço, mas o fim de um modelo econômico fechado que transfere bilhões por ano de toda a sociedade para um grupo restrito. Enquanto cidadãos enfrentam filas, taxas e deslocamentos desnecessários, titulares de cartórios acumulam fortunas, amparados por leis e por um lobby político altamente eficaz.
O país tem tecnologia e capacidade para mudar. Mas, até agora, não teve vontade política para enfrentar um dos setores mais rentáveis e mais bem protegidos da economia brasileira.(Do Ver-o-Fato, com informações do UOL, Folha de São Paulo e Veja)
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