Os documentos da paraense rebelde, proscrita da nossa História das Artes

A injustiça que atinge, há mais de um século, a escultora paraense Julieta de França é tão gritante que levou a doutora em Sociologia pela USP Ana Paula Cavalcanti Simioni a desafiar, publicamente, historiadores, críticos especializados e diretores de museus.

Simioni os instigou, através do jornal O Globo, a apresentarem uma razão que justificasse a exclusão dela da História das Artes do Brasil.

Ela lembrou que Julieta estudou e expôs na Europa, no início do século XX, graças à obtenção por parte dela do prêmio máximo conferido pela Escola Nacional de Belas Artes unicamente a seus alunos extraordinários.

O qual consistia numa bolsa de estudos, de um ano, na cidade de Paris, centro mais avançado da produção artística da época.

A pesquisadora fez questão de destacar: todos os homens que, como Julieta, obtiveram aquele prêmio, imediatamente, entraram para a História das Artes Brasileiras.

Julieta, contudo, conseguiu mais do que eles, com seus estudos.

Em Paris, ela produziu arte de qualidade durante cinco anos.

Em 1903, expôs sua escultura em gesso “La rêve de l´enfant prodigue”, no Salão da França, um espaço reservado para exposições artísticas que era colocado entre os mais prestigiados do mundo, na época.

Com a escultura, Julieta ganhou Menção Honrosa naquela exposição.

E sua obra foi vista, pela crítica francesa, como do mesmo nível de “O Pensador”, de Auguste Rodin.

O pai da escultura moderna, aliás, era o grande mestre de um centro de ensino no qual Julieta estudou, o Instituto Rodin.

No instituto circulavam, naquele período, entre os alunos, outros dois gênios da História da Arte: Henri Matisse e Paul Gaugin.

Estes fatos estão comprovados em recortes de jornais que Julieta juntou num álbum, a que ela deu o título de “Souvenir de ma carrière artistique”.

Nele, a escultora reuniu peças comprobatórias da sua trajetória como artista.

Ao álbum, a Simioni conseguiu ter acesso, na fase de pesquisa de seu doutoramento.

Ela definiu-o como uma espécie de autobiografia.

E assim o descreveu no artigo “Souvenir de ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira”, publicado nos Anais do Museu Paulista, volume 15.n.1, edição correspondente a janeiro/junho de 2007:

“O álbum, com elegante capa de couro e tecido, mede aproximadamente 25 centímetros por 30 centímetros.

Em seu interior há aproximadamente 100 folhas.

Muitas delas vazias.

As demais são ocupadas por 76 recortes de jornais, todos versando sobre a carreira da artista: exposições, crítica obras, encomendas públicas recebidas etc.

Além disso, nele podem encontrar-se, ainda, 18 cartas.

Algumas privadas e outras trocadas com figuras públicas; 20 fotografias, sendo a maior parte de obras suas e três de pessoas intimamente ligadas à artista. 9 diplomas e programas escolares. E, finalmente, 6 certificados”.

 Diante daquela documentação, Semioni perguntou, no artigo publicado por O Globo:

“Quantos artistas brasileiros foram para Paris, passaram cinco anos, conseguiram expor no salão e obtiveram menção honrosa?”

Ninguém respondeu.

Pior que aquele silêncio foi outra descoberta feita por Simioni.

A obra de Julieta premiada – ainda com a placa original do Salão da França -, encontra-se, hoje, no acervo morto do Museu Nacional de Belas Artes, junto com outros trabalhos da artista.

Nunca foi exibida para o público.

Na verdade, não só Julieta foi desvalorizada. Isto aconteceu com todas as artistas de sua época, constatou Semioni.

Naquele seu artigo, ela lembrou da mentalidade vigente, no passado.

“Os homens seriam providos de criatividade, capazes de grandes invenções, enquanto que as mulheres, embora mais sensíveis e detalhistas, possuiriam faculdades apenas imitativas, sem a criatividade do gênio”.

No caso de Julieta, porém os preconceitos contra as mulheres foram agravados pelos comportamentos rebeldes dela.

Manifestados claramente em duas ocasiões.

A primeira vez, quando ainda estava, em Paris, na condição de simples estudante bolsista.

Ela teve uma ousadia que, por si só, a expôs a uma espécie de maldição social.

Ao examinar a correspondência íntima dela, guardada no seu álbum, Simioni descobriu que Julieta engravidou e se tornou mãe solteira, enquanto ainda estudava. 

A segunda vez, quando já era uma artista premiada na França, e, entrou em confronto com ninguém menos que o escultor Rodolpho Bernardelli, diretor da Escola Nacional de Artes, do Rio de Janeiro, onde, antes, ela tinha ganho a bolsa de estudos.

Bernardelli, um mexicano naturalizado brasileiro, iria se tornar o maior nome da escultura nacional, entre o fim do Império e o início da República. 

 Embora ele mesmo também tenha sido prestigiado no Exterior com medalhas recebidas na Bolívia, na Venezuela, na Espanha, e, na Itália, o escultor, aparentemente por inveja, não aceitou a iniciativa de Julieta de propor a venda de uma obra dela ao Congresso brasileiro, depois que ela obteve êxito num salão de artes da França.

Colocado na presidência da comissão que ficou encarregada de analisar a qualidade da obra de Julieta, Bernardelli a rejeitou.

  Julieta não aceitou aquela rejeição, passivamente.

 Ao contrário, reuniu mais de 50 manifestações de apoio ao inconformismo dela diante da decisão de Bernardelli, entre os artistas e os críticos mais relevantes da França, de Portugal, da Itália e do Brasil.

Num atrevimento que lhe valeu a exclusão de suas obras dos salões de exposição no Brasil, já naquela fase.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

Translation (tradução para o inglês)

The documents of the rebellious paraense banished from Our Art History

The injustice that, for over a century, has been inflicted upon the sculptor from Pará, Julieta de França, is so blatant that it led Ana Paula Cavalcanti Simioni—holder of a PhD in Sociology from the University of São Paulo—to openly challenge historians, art critics, and museum directors.

Through the newspaper O Globo, Simioni urged them to present a single valid reason for Julieta’s exclusion from Brazil’s official Art History.

She reminded readers that Julieta studied and exhibited in Europe at the beginning of the 20th century, thanks to having received the highest award granted by the National School of Fine Arts exclusively to its most outstanding students.

This award consisted of a one-year scholarship in Paris, then the most advanced center of artistic production in the world.

Simioni emphasized: every male artist who, like Julieta, had earned this prize was promptly enshrined in Brazilian Art History.

Julieta, however, achieved even more than they did through her studies.

In Paris, she produced high-quality work for five years.

In 1903, she exhibited her plaster sculpture Le Rêve de l’Enfant Prodigue (The Dream of the Prodigal Child) at the Paris Salon—one of the most prestigious art exhibitions in the world at the time.

With this sculpture, Julieta earned an Honorable Mention at the Salon.

The French critics considered her work to be on the same level as The Thinker by Auguste Rodin.

Rodin, the father of modern sculpture, was in fact the great master of an art institute where Julieta studied: the Rodin Institute.

At the time, the institute’s students also included two other giants of art history: Henri Matisse and Paul Gauguin.

These facts are documented in newspaper clippings that Julieta preserved in an album she titled Souvenir de ma carrière artistique.

In it, the sculptor assembled evidence of her career.

Simioni had access to this album during her doctoral research, describing it as a kind of autobiography.

She provided the following description in her article Souvenir de ma carrière artistique. Uma autobiografia de Julieta de França, escultora acadêmica brasileira (Souvenir de ma carrière artistique: An Autobiography of Julieta de França, Brazilian Academic Sculptor), published in the Anais do Museu Paulista, Vol. 15, No. 1, January–June 2007:

“The album, with an elegant leather-and-cloth cover, measures approximately 25 by 30 centimeters.
Inside, there are about 100 pages, many of them blank.

The remaining pages hold 76 newspaper clippings, all about the artist’s career: exhibitions, art criticism, public commissions received, and so forth.

In addition, it contains 18 letters—some private, others exchanged with public figures; 20 photographs, most of them depicting her works, and three showing people closely connected to her; 9 diplomas and school programs; and, finally, 6 certificates.”

Confronted with this documentation, Simioni asked in her O Globo article:

“How many Brazilian artists went to Paris, stayed for five years, managed to exhibit at the Salon, and earned an Honorable Mention?”

No one answered.

Worse than this silence was another discovery made by Simioni.

Julieta’s prize-winning work—still bearing its original plaque from the Paris Salon—is now kept, along with other works of hers, in the dead storage of the National Museum of Fine Arts.

It has never been shown to the public.

In fact, it was not only Julieta who was devalued—Simioni found that this happened to all female artists of her time.

In her article, she recalled the prevailing mindset of the era:

“Men were believed to possess creativity, capable of great inventions, while women, though more sensitive and detail-oriented, were thought to have merely imitative faculties, lacking the creativity of genius.”

In Julieta’s case, however, prejudice against women was compounded by her rebellious behavior—clearly displayed on two occasions.

The first occurred when she was still in Paris, a mere scholarship student.

She dared to do something that, by itself, brought upon her a kind of social curse.

Through Julieta’s private correspondence preserved in the album, Simioni discovered that she had become pregnant and was a single mother while still studying.

The second instance came after she had already been awarded in France, when she clashed with none other than Rodolpho Bernardelli, director of the National School of Fine Arts in Rio de Janeiro, where she had once won her scholarship.

Bernardelli, a Mexican-born Brazilian citizen, would become the most prominent figure in national sculpture between the end of the Empire and the beginning of the Republic.

Although he himself had received honors abroad, with medals from Bolivia, Venezuela, Spain, and Italy, the sculptor—apparently out of envy—did not accept Julieta’s proposal to sell one of her works to the Brazilian Congress after it had met with success at a French art salon.

As head of the committee tasked with evaluating Julieta’s work, Bernardelli rejected it.

Julieta did not take this rejection passively.

On the contrary, she gathered over fifty statements of support for her protest against Bernardelli’s decision—from some of the most respected artists and critics in France, Portugal, Italy, and Brazil.

This boldness earned her exclusion from Brazilian exhibition salons from that moment onward.

*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: Julieta’s album containing records of her career)

The post Os documentos da paraense rebelde, proscrita da nossa História das Artes appeared first on Ver-o-Fato.