Na Amazônia Legal, milhares de produtores rurais vivem e produzem em terras sem titulação formal. Segundo dados recentes do Imazon, mais de 30% das propriedades na região não possuem regularização fundiária. A ausência de documentos não é apenas uma questão burocrática — é um obstáculo concreto que impede o acesso a uma série de políticas públicas fundamentais. Regularizar a terra é dar identidade jurídica à produção rural. Sem esse reconhecimento, o agricultor se torna invisível para o Estado.
Produtores invisíveis: os impactos da falta de titulação
A regularização fundiária é o processo que reconhece e formaliza a posse ou a propriedade da terra. Quando essa etapa não é cumprida, o produtor rural não pode comprovar legalmente que é o responsável pela área onde vive e trabalha. E isso tem consequências diretas e graves: sem documentação da terra, é impossível acessar crédito rural, linhas do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), licenciamento ambiental, políticas de fomento, programas de assistência técnica e até benefícios como o Garantia-Safra ou o acesso à energia elétrica via Luz para Todos.
Essa “invisibilidade institucional” coloca o produtor em uma posição de vulnerabilidade. Ele arca com os custos e os riscos da produção, mas sem a rede de proteção e apoio que o Estado deveria oferecer. Sem acesso ao crédito rural, por exemplo, a produção tende a ser de subsistência, sem capacidade de investimento em tecnologias sustentáveis, mecanização ou recuperação de áreas degradadas.
O ciclo da exclusão fundiária
A falta de titulação fundiária também compromete o acesso ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento obrigatório para o licenciamento ambiental e para adesão a programas de regularização ambiental (PRA). Embora o CAR possa ser feito por posseiros, muitos órgãos ambientais e instituições financeiras condicionam o andamento dos processos à regularidade fundiária. Em vários casos, mesmo com o CAR feito, o produtor esbarra em travas administrativas quando seu nome não consta como titular oficial da terra.
É nesse ponto que se forma um ciclo perverso: sem o título da terra, o CAR não avança; sem o CAR, não há licenciamento ambiental; sem licenciamento, não há acesso ao crédito e a programas de fomento. O produtor fica preso em um sistema que o marginaliza e o empurra para a informalidade — ou, pior, para práticas insustentáveis que podem culminar em embargos ambientais ou sanções.
Segurança jurídica e sustentabilidade na prática
Regularizar não é apenas entregar um papel. É garantir cidadania rural, segurança jurídica e estímulo ao desenvolvimento sustentável. Um produtor com a terra regularizada pode investir com tranquilidade, acessar políticas públicas, participar de chamadas públicas e cooperar com instituições de ensino e pesquisa.
Além disso, a regularização fundiária é essencial para a implementação de políticas ambientais e climáticas na Amazônia Legal. Como desenvolver projetos de reflorestamento, pagamento por serviços ambientais ou crédito de carbono se não sabemos quem é o responsável legal por cada parcela de terra?
Para ilustrar esse cenário, o mapa a seguir apresenta a sobreposição entre imóveis cadastrados no Sistema de Gestão Fundiária (SIGEF/INCRA) — que representam imóveis com titulação fundiária formal — e os imóveis registrados no SICAR, no estado do Pará. A imagem revela com clareza a discrepância entre o número de áreas que possuem CAR (em verde) e aquelas que têm titulação legal (em laranja), confirmando que boa parte da malha fundiária permanece informal, apesar do cadastro ambiental.
Figura 1 – Sobreposição de áreas cadastradas no SIGEF (INCRA) e no CAR (SICAR) no estado do Pará.

Esse panorama confirma a urgência de se priorizar a regularização fundiária como condição para o acesso à governança territorial, aos serviços públicos e à sustentabilidade rural.
Soluções para destravar a regularização fundiária
Para romper esse ciclo de exclusão, é necessário que a regularização fundiária seja tratada como política prioritária de desenvolvimento rural e ambiental. Isso envolve:
- Fortalecer os programas públicos de titulação, como o Terra Legal e iniciativas estaduais;
- Garantir segurança jurídica com base em critérios técnicos e sociais, respeitando os direitos adquiridos e os modos de vida tradicionais;
- Integrar os cadastros fundiários, ambientais e tributários em um sistema unificado e transparente;
- Garantir assistência técnica e jurídica para comunidades, assentamentos e pequenos produtores.
Além disso, estudos como o relatório do Imazon (2023) reforçam a necessidade de enfrentar entraves históricos à regularização fundiária no Pará, como a sobreposição de cadastros, lentidão na validação e ausência de governança integrada.
A regularização fundiária não é um luxo — é uma necessidade básica para quem vive no campo. É o ponto de partida para que o Estado enxergue, apoie e proteja seus cidadãos rurais. Na Amazônia Legal, onde os desafios são imensos e os conflitos fundiários são históricos, garantir o direito à terra é também garantir o direito ao futuro.
Referências bibliográficas
- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Sistema Nacional de Cadastro Imobiliário – SNCI. Disponível em: https://snci.incra.gov.br. Acesso em: jul. 2025.
- Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural – SICAR. Disponível em: https://www.car.gov.br. Acesso em: jul. 2025.
- Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON). Regularização fundiária no Pará: afinal, qual o problema? Belém: Imazon, 2023. Disponível em: https://imazon.org.br/regularizacao-fundiaria-no-para-afinal-qual-o-problema/
- Embrapa Amazônia Oriental / INPE. Projeto TerraClass: Uso e cobertura da terra na Amazônia Legal. Disponível em: https://terraclass.gov.br. Acesso em: jul. 2025.
- MENDES, Roberta. Sobreposição de áreas cadastradas no SIGEF e CAR no estado do Pará. Elaboração própria. Julho de 2025.
- BRASIL. Decreto nº 10.965, de 14 de setembro de 2022. Dispõe sobre o Programa Titula Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 set. 2022.
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