Ministro do STF diz ao Washington Post, em entrevista aos repórteres Terrence McCoy e Marina Dias, que o Supremo está ‘preservando a democracia brasileira’: ‘Faremos o que é certo’. Veja a entrevista completa, reproduzida hoje , 18, pelo jornal Estadão
” O juiz permitiu a si mesmo um momento de relaxamento. Seu amado time de futebol Corinthians estava jogando na televisão. O jogo não estava bom, disse ele, mas era uma distração útil — das sanções dos Estados Unidos contra ele, das provocações de Elon Musk e das tarifas impostas ao Brasil pelo presidente Donald Trump em resposta direta ao seu trabalho.
O breve devaneio do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes não durou muito. Seu telefone começou a receber várias mensagens.
Jair Bolsonaro, ex-presidente brasileiro que aguarda julgamento no mês que vem sob a acusação de liderar uma conspiração golpista violenta, parecia ter desobedecido a uma ordem de Moraes que o proibia de usar as redes sociais. O juiz agiu imediatamente, ordenando que o político conservador mais popular do país fosse colocado em prisão domiciliar.
“A Justiça não permitirá que um réu a faça de tola”, escreveu Moraes em sua decisão de 4 de agosto.
O episódio, relatado pelo juiz em entrevista exclusiva ao The Washington Post, foi emblemático das regras de conduta de Moraes, que regeram sua carreira marcada por embates de alto risco com políticos e empresários poderosos: nunca ceder. Sempre intensificar.
Como um jovem promotor, ele enfrentou a Prefeitura de São Paulo em uma vasta investigação de corrupção. Como juiz da Suprema Corte do Brasil, ele tem entrado em conflito com Bolsonaro, Musk e outras luminárias da direita global. Agora, seu oponente não é outro senão o presidente dos Estados Unidos.
Descrevendo a relatoria de Moraes na ação penal contra Bolsonaro como uma “caça às bruxas” e a campanha do juiz contra a desinformação online como um ataque à liberdade de expressão, Trump voltou toda a força econômica e diplomática dos Estados Unidos contra o Brasil. Ele impôs uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros e revogou o visto de Moraes para os Estados Unidos. No final do mês passado, o Departamento do Tesouro tomou a medida extraordinária de sancioná-lo sob a Lei Magnitsky, que é tradicionalmente usada contra acusados de violações graves dos direitos humanos.
Mas o juiz não se deixou intimidar.
“Não há a menor possibilidade de recuar nem um milímetro”, disse Moraes ao The Post em uma rara entrevista de uma hora em seu gabinete. “Faremos o que é certo: receberemos a acusação, analisaremos as provas e quem deve ser condenado será condenado, e quem deve ser absolvido será absolvido.”
Empoderado pela Suprema Corte para investigar ameaças digitais, verbais e físicas contra a ordem democrática do Brasil, Moraes tornou-se uma autoridade nacional e uma figura única no mundo: uma espécie de “xerife da democracia”. Seus decretos abrangentes repercutiram em todo o mundo, em sociedades cada vez mais polarizadas por debates sobre liberdade de expressão, tecnologia e o poder do Estado.
Ele suspendeu plataformas de mídia social, com destaque para o X (antigo Twitter), o que levou Elon Musk a chamá-lo de “Darth Vader do Brasil”. Ele ordenou a prisão de autoridades e destituiu, por decisão monocrática, o governador de Brasília depois que milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram a capital em 8 de janeiro de 2023. Agora, ao colocar Bolsonaro em prisão domiciliar e bloqueá-lo das redes sociais, ele efetivamente silenciou uma das figuras de direita mais reconhecidas do mundo.
Para entender como Moraes saiu de uma origem comum na classe média para se tornar o jurista mais poderoso da história do Brasil e para obter pistas sobre onde seus processos podem levar a maior democracia da América Latina, o The Post entrevistou 12 amigos e colegas antigos e atuais de Moraes, muitos dos quais falaram sob condição de anonimato para discutir assuntos delicados.
A maioria defendeu Moraes, dizendo que suas medidas duras ajudaram a preservar a democracia brasileira em um momento em que o autoritarismo está crescendo em todo o mundo. Mas outros disseram que ele se tornou poderoso demais e foi culpado de abusar de seu poder, colocando em risco a legitimidade da mais alta corte do país.
“Estou triste com a deterioração da instituição”, disse Marco Aurélio Mello, que se aposentou do Supremo Tribunal Federal em 2021, após 31 anos. “A história é implacável”, continuou Mello. “Ela acerta as contas mais tarde.”
Saboreando café dentro de seu gabinete repleto de livros, Moraes discordou. O Brasil havia sido infectado pela “doença” da autocracia, disse o juiz. E era seu trabalho aplicar a “vacina”. “De maneira alguma recuaremos do que devemos fazer,” afirmou Moraes. “Digo isso com total tranquilidade.”
“Um momento extraordinário”
No início de 2019, Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal, telefonou para Moraes, que era, na época, o mais novo membro do Corte, com um pedido urgente. Segundo interlocutores da conversa, Toffoli disse a Moraes que havia um problema e que ele poderia ser a pessoa certa para resolvê-lo.
As instituições brasileiras, já pressionadas por sucessivas investigações de corrupção e escândalos políticos, estavam lidando com a rápida ascensão política de Jair Bolsonaro, um defensor assumido da ditadura militar do país. Sua campanha havia popularizado um segmento antes marginal da população que era a favor do retorno do regime militar. Seu filho Eduardo — um de seus representantes mais proeminentes — havia mirado contra o STF, dizendo que poderia fechar a Corte com “um soldado e um cabo”.
”O que é o STF? Tira a poder da caneta da mão de um ministro do STF, o que ele é na rua” Eduardo disse em 2018. “Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter manifestação popular a favor dos ministros do STF? Milhões na rua?”
Desinformação, ameaças e pedidos para dissolver o tribunal floresceram repentinamente nas redes sociais. O STF já havia reforçado suas medidas de segurança, comprando uma frota de veículos blindados e armas de gás lacrimogêneo, mas Toffoli queria fazer mais. Ele decidiu que o tribunal e o país precisavam de um escudo — uma investigação contra as fake news e a retórica antidemocrática. E Moraes, que passou grande parte de sua carreira na área de execução penal, deveria ser o responsável por empunhá-lo, explicou Toffoli mais tarde.
Toffoli se recusou a comentar para este artigo.
A abertura da investigação, que Toffoli chamou de decisão mais difícil de seu mandato, marcou uma ruptura acentuada com o precedente. Tradicionalmente, o tribunal não tem autoridade para iniciar suas próprias investigações. E os casos normalmente são distribuídos por um sistema de loteria. Mas seus colegas de justiça concordaram, por um voto de 10-1, que a investigação classificada era vital.
“Estávamos completamente desprotegidos; era um momento extraordinário”, disse um alto funcionário do judiciário. “Se o tribunal não tivesse um instrumento para se defender — se dependesse apenas da polícia ou dos promotores — estava frito.”
Mello foi a única voz dissidente: “Foi uma investigação que, na minha visão, foi iniciada erroneamente”, disse ele ao The Post.
Ao lançar a investigação, Moraes tinha um conjunto diverso de ferramentas. Ao contrário da Suprema Corte dos EUA, que apenas julga, a mais alta corte do Brasil tem poder para realizar investigações e tem à sua disposição a força policial federal. Moraes também poderia contar com uma estrutura legislativa que define a liberdade de expressão de forma mais restrita do que nos Estados Unidos e fornece proteções legais para o estado democrático.
“Entendo que para uma cultura americana é mais difícil entender a fragilidade da democracia porque nunca houve um golpe lá”, disse Moraes. “Mas o Brasil teve anos de ditadura sob [o presidente Getúlio] Vargas, outros 20 anos de ditadura militar e inúmeros golpes. Quando você é muito mais atacado por uma doença, você forma anticorpos mais fortes, e busca uma vacina preventiva.”
Moraes não perdeu tempo. Em um mês, ele ordenou que o primeiro lote de contas de mídias sociais fosse desativado. Depois veio uma operação abrangente contra dezenas dos apoiadores mais vocais de Bolsonaro — blogueiros de direita, influenciadores e políticos — aos quais ele acusou de estar por trás de ameaças contra o tribunal e de desinformação que põe em perigo a democracia. O próprio ministro da Educação do presidente foi nomeado alvo depois de ter instigado a prisão de juízes do Supremo Tribunal Federal. Moraes então ordenou a prisão de um deputado em exercício que havia defendido o regime repressivo da ditadura militar.
À medida que a investigação de Moraes se aprofundava, seu poder também aumentava. O sistema judiciário do Brasil frequentemente agrupa casos semelhantes sob a jurisdição de um único juiz, e Moraes logo estava encarregado de praticamente todas as investigações sobre supostos ataques contra a ordem democrática por Bolsonaro e seus apoiadores. Então, ele ascendeu para se tornar presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que opera em paralelo ao tribunal federal e tem o poder de investigar má conduta relacionada às eleições e de barrar políticos de exercerem cargos.
Embora muitos em Brasília defendessem seu papel, alguns começaram a se sentir desconfortáveis com a extensão de sua autoridade.
“A investigação era para ser limitada em tempo e abrangência,” disse um alto funcionário judicial. “Mas ela nunca terminou, e ninguém mais o questiona.”
Agora, todos no Brasil conheciam Alexandre de Moraes. Em breve, o mundo também conheceria seu nome.
Ambição impulsionadora
Nenhum dos amigos e colegas do juiz expressou surpresa com a maneira como ele exerceu seu novo poder. Era apenas Moraes, eles disseram: inflexível, agressivo e propenso a demonstrações de poder bruto.
Um ex-promotor de São Paulo, que deu a Moraes seu primeiro estágio, disse que ele parecia determinado, quando jovem, a provar algo. Filho de um empresário modesto e uma professora, Moraes não tinha um sobrenome prestigioso como outros estagiários. Mas no início dos seus 20 anos, o mentor disse, Moraes ficou em primeiro lugar em um exame do ministério público “muito, muito, muito difícil”, superando advogados mais experientes.
“Ele tem uma incrível capacidade de trabalho”, disse o mentor. “Ele trabalha todos os finais de semana.”
Sua carreira como promotor no ministério público estadual era promissora. Em 1997, ele liderou uma investigação sobre um suposto esquema de propinas envolvendo a compra em massa de carne de frango a preços exorbitantes pelo governo da cidade de São Paulo. O escândalo — conhecido como “escândalo do frango” — dominou as notícias. Mas Moraes tinha ambições maiores e, em 2002, deixou o ministério para se tornar secretário da justiça do estado de São Paulo.
“Ambos viemos da classe média; nunca fomos ricos”, disse um amigo de longa data. “E finalmente havíamos conseguido alguma segurança financeira, então fiquei chocado que ele largaria isso por uma posição política que poderia acabar em poucos meses. Ele disse que tinha que arriscar.”
“Ele sempre quis estar no Supremo Tribunal”, acrescentou outro velho amigo.
Uma vez instalado, ele fez de sua missão defender a instituição — e rapidamente foi puxado para uma escalada de luta de ego e vontade com Bolsonaro. Em agosto de 2021, à medida que o presidente começou a atacar o sistema de votação do Brasil durante sua campanha pela reeleição contra o esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva, Moraes nomeou Bolsonaro como alvo de investigação.
Após Bolsonaro perder, milhares de seus apoiadores, convencidos de que a eleição havia sido roubada, invadiram os prédios federais de Brasília em um motim que relembrou a invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021. Foi Moraes quem supervisionou os processos que proibiram Bolsonaro de ocupar cargos públicos.
Ele então assumiu o comando da investigação que culminou no ano passado nas alegações de que Bolsonaro planejou manter o poder por meio da força militar e assassinar seus rivais políticos, incluindo Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o próprio Moraes. O juiz entrevistou testemunhas chave e foi um dos juízes que aprovou as acusações criminais que poderiam colocar o ex-presidente na prisão por décadas.
Bolsonaro, que não concedeu nenhuma entrevista desde que entrou em prisão domiciliar, negou as acusações e diz ser vítima de perseguição política.
“Este é um devido processo legal”, respondeu Moraes. “Cento e setenta e nove testemunhas já foram ouvidas.”
À medida que suas investigações se multiplicavam e expandiam, e o contra-ataque aumentava online, Moraes enfrentou um leque mais amplo de oponentes. Primeiro veio Musk, que no ano passado recusou-se a cumprir as ordens de Moraes para derrubar contas no X que o juiz afirmou estarem ameaçando a ordem democrática do Brasil. Em fevereiro, ele suspendeu o Rumble, uma plataforma popular entre os conservadores que compartilha servidores com o Truth Social, após resistir às ordens de remoção.
Os impasses aumentaram o perfil global de Moraes — e chamaram a atenção de Trump. A empresa de mídia social do presidente processou Moraes no início deste ano em uma corte federal na Flórida, acusando-o de suprimir os direitos de liberdade de expressão dos usuários nos Estados Unidos.
“Esse homem está fora de controle”, disse Martin de Luca, advogado da Trump Media no Brasil, ao The Post.
Questionado se tinha poder demais, Moraes descartou a noção. Ele disse que seus colegas do Supremo Tribunal haviam revisado mais de 700 de suas ordens após recursos.
“Sabe quantas eu perdi?”, ele perguntou. “Nenhuma.”
A investigação continuará
Aos olhos do governo americano, Moraes é um vilão global. “Juiz e júri em uma caça às bruxas ilegal”, disse o Secretário do Tesouro Scott Bessent. “O rosto mundial da censura judicial”, nas palavras do Secretário de Estado Adjunto Christopher Landau.
A acrimônia não é mútua, disse Moraes. Na parede de madeira do lado de fora de seu gabinete, ele pendurou apenas três documentos: A Declaração de Independência. A Declaração de Direitos. O preâmbulo da Constituição dos EUA.
Moraes disse que sempre buscou inspiração na história da governança americana, discorrendo sobre as obras de John Jay, Thomas Jefferson e James Madison. “Todo constitucionalista tem uma grande admiração pelos Estados Unidos”, disse o juiz.
Ele disse que o Brasil e os Estados Unidos eram amigos. O crescente abismo entre eles, ele acreditava, era temporário, impulsionado pela política e pelo tipo de desinformação que ele passou anos tentando reprimir. Ele destacou Eduardo Bolsonaro. Com financiamento de seu pai, o deputado federal liderou uma campanha diplomática rebelde instando hostilidades dos EUA contra o Brasil e sanções contra Moraes.
Eduardo, que chamou Moraes de “gangster de toga”, não respondeu a um pedido de comentário.
“Essas narrativas falsas acabaram envenenando a relação — narrativas falsas apoiadas pela desinformação espalhada por essas pessoas nas redes sociais”, disse Moraes. “Então o que precisamos fazer, e o que o Brasil está fazendo, é esclarecer as coisas.”
Moraes pensou por um momento na perda de liberdades pessoais. Sua crescente lista de inimigos. As restrições de viagem.
“Isso é agradável de passar?” Ele disse. “Claro que não é agradável.”
Mas o Brasil estava contra forças poderosas que queriam desfazer a democracia, disse Moraes, e era seu trabalho detê-las. “Enquanto houver necessidade”, disse ele, “a investigação continuará.”
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