Um pesquisador inconformado com a perda estúpida da fortaleza de Belém

Pouca gente sabe que o Círio Fluvial foi criação de um jornalista.

Não de um jornalista qualquer.

Mas de um dedicado jornalista pesquisador do passado do Pará, Carlos Rocque.

Em 1986, ele era o responsável pela Companhia Paraense de Turismo – Paratur, órgão oficial de Turismo do Pará.

O político que confiou a ele aquela responsabilidade era um ainda jovem governador, Jader Barbalho, ex-líder estudantil, eleito para seu primeiro mandato por paraenses esperançosos de ver o Pará liberto de velhas, viciadas e corruptas raposas, que sempre chegam aos seus cargos públicos.   

Quinze anos depois desta passagem de Rocque pela Paratur, um jornal de Belém publicou um artigo assinado por aquele político com o título “A festa do Círio”, no qual ele confirmou o mérito do jornalista-pesquisador na criação da manifestação massiva de fé religiosa.

Ele escreveu:

“O historiador Carlos Rocque, na presidência da Paratur, criou a Romaria Fluvial”.

Rocque morreu no ano 2000, ainda embalado por um sonho que provavelmente alimentava já antes de ocupar a presidência da Paratur: o de ver restaurada a Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, construída, em 1685, na Baía do Guajará, a oito quilômetros da entrada de Belém.

A fortaleza tinha tido bela forma arredondada, semelhante à do igualmente antigo Forte de São Marcelo, na Baía de Todos os Santos, ainda hoje elegantemente postado diante de Salvador.

          A fortificação de Belém se tornou conhecida como Fortaleza da Barra.

Foi construída com trinta e cinco canhões, de acordo com o projeto elaborado pelo engenheiro-militar português, Antônio Rodrigues Lameira de França.

Durante exatos 262 anos, quem chegou a Belém, de navio ou barco, necessariamente passou por ela.

Isto acabou, em 1947, devido a uma decisão estúpida tomada pela administração do Estado naquele período.

A decisão de transformar a velha fortaleza num depósito de explosivos.

Algo tão asnático quanto uma decisão tomada agora por membros da Assembleia Legislativa.

A de reformar um anexo do prédio ocupado por aquele órgão, no Largo do Palácio, contíguo ao Solar do Barão do Guajará, pondo em risco a estabilidade das paredes da construção erguida nos anos de 1800.  

Aparentemente, a Fortaleza da Barra foi vítima de um momento de caos político-administrativo.

Àquela altura, o Pará tinha saído de longa intervenção federal, iniciada em 1930.

Mal se recuperara de um período no qual tivera no seu comando três governadores diferentes, em 41 dias, entre o final de outubro de 1945 e o início de fevereiro do ano seguinte.

Dois anos depois, num dia de chuva de 1947, uma fagulha de raio fez explodir a fortaleza.

Rocque não se conformou com a passividade dos administradores paraenses diante deste prejuízo sofrido por nosso patrimônio histórico.

E, duas décadas depois da destruição do forte, ainda não se acomodara.

Aproveitou seu período na presidência da Paratur para fazer uma consulta formal ao comando da Marinha Mercante em Belém.

Quis saber se os homens-rãs do comando militar conseguiriam localizar os canhões da fortaleza, que continuavam submersos nas águas da Baía do Guajará.

Animou-se, quando recebeu resposta positiva.

Infelizmente, nenhuma ação oficial foi desencadeada, diante da possibilidade de recuperação do bem histórico, descortinada por ele.

Rocque sofreu o enfarte que lhe seria fatal, vinte e oito anos mais tarde,.

E, ainda se mantinha animado por aquele sonho, cuja realização dependia da pressão da opinião pública sobre os administradores públicos.

Mas, a fortaleza e o círio não foram os únicos objetos de interesse e preocupação dele.

Roque estudou e pesquisou, ao longo de quatro décadas, a História da Cultura da Amazônia, com uma amplitude única e muita dedicação.

O que lhe permitiu produzir impressionante quantidade de obras, a partir dos anos 1962 e 1963.

Nesta fase, ele encerrou sua breve carreira de ficcionista, após ter lançado dois livros “O poço dos anseios perdidos” e “Logo depois das chamas”.

Em seguida, sozinho, ele preparou, a partir de então, três enciclopédias tendo como eixo temático o passado de nossa região:

1ª) “Grande Enciclopédia da Amazônia”, com 6 volumes, lançados em 1967 e 1968.

2ª) “Antologia da Cultura Amazônica”, com 9 volumes, lançados em 1969 e 1970.

3ª) “História dos Municípios do Pará”, com 5 volumes, lançados no período de 1979 a 1981.

Além disto, escreveu livros de pesquisa esparsos, também dedicados a temas amazônicos.

O fascinavam particularmente dois personagens.

O prefeito da Belle Époque de Belém, Antônio Lemos, considerado o melhor que a cidade já teve.

O líder do Movimento Tenentista de 1930, no Pará, Magalhães Barata.

Rocque havia estudado tanto a trajetória de Lemos que, ao ser convidado, em 1972, por Nélio Lobato, prefeito na ocasião, a preparar uma obra sobre ele, pôde entregar, poucas semanas depois, os originais de “Antônio Lemos e sua época– História Política do Pará”, livro, hoje, fundamental para quem estuda o personagem histórico.

Não é difícil imaginar o entusiasmo com que Rocque se lançou à preparação desta obra.

Em 1972, completava 60 anos a cena constrangedora de humilhação pública que Lemos sofreu, ao ser expulso do Pará.

Ele teve de ver destruída a casa na Avenida Gentil Bittencourt, onde ele viva com sua família.

Assim como a sede do jornal, “A Província do Pará”, na Praça da República, que ele havia transformado num dos mais importantes do nosso continente.

A ação – de violência inédita, até mesmo no conflitado ambiente político paraense -, foi desencadeada por seu inimigos, com apoio de parte da própria população de Belém, influenciada por uma campanha agressiva, movida de modo sincronizado, por quatro jornais.

Lemos, com mais de 60 anos de idade, foi apalpado de modo desrespeitoso, cuspido, e, empurrado, em via pública.

A este terrível drama, Rocque ainda retornaria em 1977, com a publicação de “A História da Província do Pará”.

Porém, tudo isto não era bastante para Rocque.

Ele ainda encontrou tempo para escrever também sobre o grande movimento de rebeldia social ocorrido no Pará.

Lançou “Cabanagem: epopeia de um povo”, em dois volumes.

Nesta sua abundante e valiosa produção, o jornalista-pesquisador introduziu uma inovação na cultura do Pará, ao usar recursos próprios da linguagem do Jornalismo no tratamento de temas do passado.

Evitando, assim, o estilo denominado, pejorativamente, de “tijolo acadêmico”, que tende ao hermetismo e torna truncada e desagradável a leitura de obras, por sobrecarregá-las com notas, de pé de página e final de capítulos.

Rocque, se tornou, deste modo, precursor e mestre, em nosso Estado, da geração de jornalistas brasileiros que introduziu clareza e leveza nas publicações da área de pesquisa histórica, sem se descuidar do rigor na apuração dos dados que veicula.

*Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista

Translation (tradução)

A Researcher Outraged by the Foolish Loss of Belém’s Fortress

Few people know that the Fluvial Procession of the Círio was the creation of a journalist.
Not just any journalist.

But a dedicated journalist and researcher of Pará’s past: Carlos Rocque.

In 1986, he was in charge of the Companhia Paraense de Turismo (Paratur), Pará’s official tourism agency.

The politician who entrusted him with that responsibility was a still young governor, Jader Barbalho, a former student leader, elected to his first mandate by hopeful citizens who wished to see Pará freed from the old, corrupt, and entrenched political foxes who always found their way into public office.

Fifteen years after Rocque’s tenure at Paratur, a Belém newspaper published an article signed by that same politician titled “The Círio Festival”, in which he acknowledged the journalist-researcher’s merit in creating such a massive expression of religious faith.
He wrote:

“The historian Carlos Rocque, while presiding over Paratur, created the Fluvial Procession.”

Rocque died in 2000, still nourished by a dream he likely held even before leading Paratur: to see restored the Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, built in 1685 on the Guajará Bay, about eight kilometers from the entrance to Belém.

The fortress had a beautiful rounded design, similar to the equally ancient Forte de São Marcelo, in the Bay of All Saints, still elegantly facing Salvador today.
Belém’s fortification became known as the Fortaleza da Barra.
It was built with thirty-five cannons, following the project designed by the Portuguese military engineer Antônio Rodrigues Lameira de França.

For exactly 262 years, anyone arriving in Belém by ship or boat necessarily passed by it.
That ended in 1947, due to a foolish decision taken by the state administration at the time: transforming the old fortress into an explosives depot.

A move as asinine as a recent decision by members of the Legislative Assembly to renovate an annex of their building at Largo do Palácio—right next to the Solar do Barão do Guajará—risking the stability of its walls, which date back to the 1800s.

Apparently, the Fortaleza da Barra fell victim to a moment of political and administrative chaos. At that time, Pará had just emerged from a long federal intervention that began in 1930. The state had barely recovered from a period when, in the span of 41 days between late October 1945 and early February of the following year, it had three different governors.

Two years later, on a rainy day in 1947, a lightning spark caused the fortress to explode.

Rocque never accepted the complacency of Pará’s administrators regarding this devastating loss to our historical heritage. Two decades after the fort’s destruction, he was still restless. During his presidency at Paratur, he formally consulted the Merchant Navy command in Belém, asking whether the military frogmen could locate the cannons that remained submerged in the waters of Guajará Bay. He was encouraged when he received a positive response.

Unfortunately, no official action was taken despite the possibility of recovering this historical treasure.

Rocque would suffer the fatal heart attack twenty-eight years later, still fueled by the dream that depended on public opinion pressing the authorities.

But the fortress and the Círio were not his only concerns. Rocque studied and researched, for over four decades, the cultural history of the Amazon with unparalleled breadth and dedication. This allowed him to produce an impressive number of works starting in the early 1960s.

At that time, he ended his brief career as a fiction writer, after publishing two novels: The Well of Lost Longings and Shortly After the Flames.

From then on, working alone, he prepared three encyclopedic series focused on the region’s past:

  1. “Great Encyclopedia of the Amazon”, 6 volumes (1967–1968).
  2. “Anthology of Amazonian Culture”, 9 volumes (1969–1970).
  3. “History of Pará’s Municipalities”, 5 volumes (1979–1981).

He also wrote several individual research books on Amazonian topics.

Two figures particularly fascinated him: Antônio Lemos, Belém’s Belle Époque mayor, considered the greatest in the city’s history, and Magalhães Barata, leader of the 1930 Tenentista movement in Pará.

Rocque had studied Lemos’s trajectory so thoroughly that when, in 1972, he was invited by Mayor Nélio Lobato to prepare a book on him, Rocque was able to deliver the manuscript within weeks: “Antônio Lemos and His Era – The Political History of Pará”. Today, it remains an essential reference for those studying the historical figure.

It is not hard to imagine the passion with which Rocque dedicated himself to this work. In 1972, it had been sixty years since Lemos’s humiliating expulsion from Pará, during which his home on Avenida Gentil Bittencourt, where he lived with his family, was destroyed, as well as the headquarters of his newspaper, A Província do Pará, which he had turned into one of the most important in Latin America.

This unprecedented act of violence—even in Pará’s turbulent political environment—was unleashed by his enemies with the support of part of Belém’s population, influenced by a synchronized smear campaign across four newspapers.

Lemos, then over 60 years old, was groped, spat on, and shoved in public.

Rocque returned to this tragic episode in 1977 with the publication of “The History of the Province of Pará”.

Still, this was not enough for Rocque. He also found time to write about the great social rebellion in Pará, publishing “Cabanagem: Epic of a People” in two volumes.

In this abundant and valuable output, Rocque innovated Pará’s cultural scene by applying journalistic language to historical subjects. He avoided the so-called “academic brick” style, pejoratively labeled for its dense, hermetic, and tedious writing overloaded with footnotes.

In doing so, Rocque became a precursor and master in Pará of a generation of Brazilian journalists who brought clarity and lightness to historical research publications, without compromising rigor in verifying facts.

*Oswaldo Coimbra is a writer and journalist

(Illustration: Fortaleza da Barra, original layout)

The post Um pesquisador inconformado com a perda estúpida da fortaleza de Belém appeared first on Ver-o-Fato.