Meu amigo tem o coração batucado por resenhas. Sexta-feira, pra ele, não é dia: é senha. No grupo silenciado do WhatsApp, um emoji de copo levantado queria dizer churrasqueira acesa, cooler cheio e aquela playlist que começa em pagode, atravessa o brega paraense e desemboca no sertanejo que toma conta de qualquer quintal do Núcleo Nova Marabá. “O que acontece em Vegas, fica em Vegas”, repetiam como uma novena profana. E Vegas, entenda-se, não era cidade: era a sala ampla de uma casa na Folha tal, com sofá de canto, luz amarelada e um portão que regressa devagar, igual culpa.
Eles eram dezoito — às vezes vinte e um — homens muito bem-sucedidos. Empresários com agenda no bolso, advogados de terno leve apesar do calor, médicos que juravam chegar só “pra uma rápida”, servidores de alto escalão e um ou outro político em temporada de silêncio. Todos riam do mesmo jeito: com um olho na carne assando e outro na porta. As moças eram convidadas com discrição: amigas de amigas, presenças discretas que entravam com o mesmo sigilo com que saíam. O combinado valia há mais de dois anos, sólido como promessa de réveillon. Ninguém escrevia nomes; ninguém marcava a localização. Vegas, ali, era uma fé.
Até que, numa terça de mercado e trânsito lento na Transamazônica, Samanta, uma das moças da social mais comentada do mês, cruzou com a esposa do meu amigo no consultório de uma clínica da Folha 31. Eram amigas de academia e partilharam um banco de espera, desses que fazem a gente falar mais do que pretendia. Samanta começou com generalidades, mas a língua foi escorregando no sabão das confidências: “Ah, você não sabe… uma festona… muita gente conhecida…” A amiga franziu a testa. “Quem?” E Samanta, num impulso de sinceridade que a gente sempre confunde com coragem, soltou nomes. No meio deles, o do marido da amiga. O chão da clínica tremeu um milímetro; só quem já teve o mundo remexido por dentro percebe.
Naquela noite, a esposa traída não chorou. Abriu o notebook, pesquisou rastreadores, ligou para um primo que trabalha com segurança veicular e, até quinta, já havia um pontinho invisível conversando com o carro do marido. Às dezenove e quarenta do sábado seguinte, o pontinho estacionou na frente de uma casa de esquina, jambeiro derramando sombra sobre a calçada, na Folha que não convém numerar (de novo). Do lado de dentro, a algazarra boa da abundância: gelo tinindo, latas abrindo, vozes sobrepostas, gargalhadas que subiam por cima da cerca.
Ela entrou no auge da festa, como quem chega para a própria surpresa. O portão ainda recuava quando o silêncio, esse cão bem treinado, avançou na sala. Meu amigo segurou o copo no ar; os dezoito olharam para a mesma direção, como cardume. Ela caminhou sem pressa, olhou as taças, mediu os rostos, reconheceu dois, três, seis colegas de trabalho de alguém, um médico que já pediu exame pra ela, o advogado que já lhe explicou um contrato. Tirou da bolsa o rastreador, uma bolinha indigna, e pousou como quem devolve uma aliança sobre a mesa de centro. “Vegas?”, perguntou baixo. “Vegas é aqui mesmo?”
Ninguém respondeu. Um dos bem-sucedidos tentou uma piada, mas a boca desistiu no meio. Outro recolheu o celular, como se o aparelho fosse capaz de esconder o dono. O anfitrião tossiu. Alguém desligou a música com um toque seco, e o fim do refrão ficou colado no teto. A esposa respirou. “Não vim buscar ninguém aos gritos”, disse, “só vim lembrar que segredo de grupo não é ética, é comodismo. E que o combinado de vocês foi feito sem a parte mais afetada.” Pousou o olhar no meu amigo, que abaixou o copo, e por um segundo os dois pareceram um casal em ritmo de balanço, prestes a decidir se dançam ou se se afastam.
O inesperado, então, aconteceu: quatro mulheres que estavam na casa — as convidadas “discretas” — caminharam até a varanda. Uma delas, com as mãos firmes, abriu novamente a geladeira, tirou as latas de cerveja e as alinhou como soldados em formatura. “Moços, recolham o lixo”, disse, sem levantar a voz. A frase tinha a delicadeza agressiva de quem já cansou de decorar saídas secundárias. Outro silêncio. Até que um dos dezoito — o mais novo, o mais inquieto — pegou um saco preto e começou a recolher copos, guardanapos, garrafas. Os outros imitaram, desajeitados, como meninos que esqueceram a coreografia no dia da apresentação.
A esposa traída não fez cena. Sentou-se na beira do sofá, cruzou as pernas e encarou a sala que lentamente mudava de cor. O anfitrião desligou a churrasqueira. A fumaça, sem assunto, foi se despedindo do ar. Quando tudo estava em ordem, ela se levantou. “Não estou aqui para destruir carreira de ninguém”, disse. “Só pra avisar que acabou o folclore.” Olhou de novo para o meu amigo — meu amigo que sempre acreditou que as paredes grossas das casas da Nova Marabá eram mais grossas do que a própria consciência — e completou: “Vegas não é um lugar: é a desculpa.”
Foram embora quase todos, sem briga, sem porta batida. Ficaram dois ou três, os que ainda não sabiam como encarar o próprio reflexo. Eu, que cheguei tarde — chamado por mensagens truncadas —, encontrei meu amigo no portão, respirando uma serenidade que não combinava com a noite. “Acabou?”, perguntei. Ele sorriu curto. “Não sei se acabou a resenha ou se começou outra coisa.” A rua estava úmida, o jambeiro ainda pingava. No dia seguinte, circularam boatos de que o tal clube dissolveu-se por uns meses; depois, reinventou-se em almoços de domingo, dominó na varanda, crianças correndo entre cadeiras, um ou outro gole mais lento. Vegas, quando existe, muda de endereço para dentro do peito. E ali, meu amigo descobriu, não tem portão basculante que esconda.
* O autor é jornalista do CORREIO há 29 anos e publica crônica às quintas-feiras
Observação: As opiniões contidas nesta coluna não refletem, necessariamente, a opinião do CORREIO DE CARAJÁS.
O post Lei de Vegas entre os amigos da Nova Marabá apareceu primeiro em Correio de Carajás.